Por Gabriel Andrade Adelino1
Ah…, os anos 90!
Nunca fui muito fã de animes. Não que não tenha assistido aos desenhos que passavam na televisão aberta. Acho que carrego comigo as mesmas lembranças de qualquer um que tenha nascido na década de 90: voltava da escola, atirava a mochila em qualquer canto e ia correndo para o sofá assistir Dragon Ball e ajudar o Goku com a Genki Dama — mãos erguidas na sala, olhos grudados na tela. À época, ainda éramos capazes de nos divertir com um episódio de vinte minutos que não fazia a menor diferença na trama; uma preparação da preparação da preparação da luta final. Mas era mágico. A vida era mais calma; as tardes, mais longas e bonitas; até o céu parecia mais azul, e a grama, mais verde.
Acontece que o tempo foi passando, e junto com a minha capacidade de fazer amigos, perdi também a vontade de assistir outras animações. Meus colegas estavam sempre assistindo Naruto, One Piece e outros animes dos quais nunca consegui memorizar nem os nomes, enquanto eu, por motivos que não sei bem explicar, me afastei desse tipo de produção. Talvez fosse a sensação incômoda de que havia algo infantil demais naquele universo colorido e exagerado — Dragon Ball, mesmo sendo para crianças, ainda passava alguma mensagem interessante, seja de um pai tentando educar seus filhos e se sacrificar por um bem maior, ou um adolescente que precisa aprender a controlar sua raiva para não cometer nenhuma injustiça. Ou talvez fosse apenas uma incompatibilidade de gostos, não sei.
Por questões de gosto e de trabalho, acabei me aproximando da literatura clássica, do cinema e da filosofia — e me distanciando cada vez mais dos animes, com uma falsa impressão de serem obras menores. Até que, em meados de 2023, encontrei na internet algumas críticas sobre um tal Studio Ghibli. Suas animações estavam fazendo bastante sucesso nas redes sociais, mas não dei muita atenção, não assistia a nada parecido há mais de uma década. Vi algumas artes das produções mais famosas do estúdio — uma garotinha sentada num trem ao lado de um fantasma, uma criança ao lado de um bicho de pelúcia gigante, dois irmãos correndo atrás de vagalumes — e ignorei. Pareciam ser apenas para crianças. Mas o tempo foi passando e eu não parava de ouvir falar sobre esse tal Studio Ghibli. Até que um dia, procurando alguma coisa para assistir num sábado à tarde, vi o cartaz de uma das animações e resolvi dar uma chance. Como quem não quer nada, e já esperando me desapontar, dei o play em um filme chamado “Vidas ao vento”.
Ainda me lembro daquele dia. Era um fim de tarde de sábado, e o sol brilhava tímido no céu, iluminando a cidade sem muita força, criando uma atmosfera alegremente calma e melancólica, como nos quadros de Hopper. Queria apenas me distrair, mas acabei assistindo a um dos filmes mais profundos da minha vida. A história de um engenheiro aeronáutico que enxergava seu ofício como um trabalho quase artístico, à serviço do bem, mas que acaba vendo suas criações usadas como armas na Segunda Guerra — em meio a um drama pessoal tão bem construído como nos clássicos do cinema — me deixou sem palavras por alguns minutos. Aquilo era tudo, menos coisa de criança. Foi um dos filmes mais impactantes que eu já tinha visto.
Acabei descobrindo em Miyazaki algo diferente, uma animação adulta e realista em sua essência, mas inocente e bela em sua aparência. Ser um anime não diminuiu nem um pouco o impacto que aquilo teve em mim. Na verdade, como descobri depois, uma das características dos filmes do Studio Ghibli é que suas obras são maduras justamente porque não subestimam a inteligência do espectador, nem mesmo das crianças, e são corajosas o suficiente para não retratar de forma infantilizada nenhuma de suas histórias. E foi a partir daí que comecei a maratonar freneticamente, como um recém-convertido, tudo que o estúdio havia produzido.
E foi assim que cheguei, pouco depois, ao filme que interessa a este ensaio, Castelo no Céu, lançado em 1986. O que me chamou a atenção, além da beleza da animação, foi o fato de Miyazaki ter feito uma referência explícita a um clássico literário que eu já conhecia muito bem, Viagens de Gulliver, do irlandês Jonathan Swift. E é exatamente esse diálogo improvável entre um dos maiores satiristas da literatura clássica e um mestre japonês do cinema de animação, que trataremos aqui. Um, com seus escritos, satiriza a vaidade dos ditos sábios e a soberba dos impérios; o outro, com com seus desenhos, mostra o que sobra depois que a ambição se desfaz. Entre Swift e Miyazaki, reencontramos — por caminhos distintos — uma mesma crítica ao descolamento entre o saber e a vida real, à arrogância tecnológica e ao autoritarismo disfarçado de racionalidade.
Gulliver levanta voo antes de Miyazaki
Publicada em 1726, Viagens de Gulliver é uma desses clássicos que muita gente conhece só de nome, normalmente associado a um livro de aventuras infantis — o que é uma injustiça grave. Jonathan Swift, irlandês de temperamento ácido, escreveu para zombar dos vícios da sociedade europeia do século XVIII. Ali está tudo: a política farsesca, a ciência vaidosa, a filosofia desconectada da vida, o colonialismo civilizatório que só leva destruição e presunção. Swift não era um autor “engajado” no sentido moderno da palavra, mas um satírico puro-sangue, desses que atacam com ironia justamente aquilo que, à sua época, era tido como o orgulho do progresso humano.
A terceira parte do livro, que nos interessa aqui, leva o protagonista, Lemuel Gulliver, até uma ilha flutuante chamada Laputa. A ilha, sustentada por um complexo mecanismo de magnetismo e cálculo, sobrevoa o continente como sede de uma civilização dedicada ao saber. Seus habitantes são estudiosos e técnicos que se ocupam exclusivamente de questões abstratas — equações, teoremas, tratados de astronomia — e vivem tão absorvidos nessas especulações que precisam da ajuda de assistentes para manter a atenção durante as conversas.
A ciência praticada em Laputa é sofisticada em aparência, mas marcada por uma desconexão crescente com a realidade. Enquanto seus teóricos tentam extrair luz do sol a partir de pepinos ou determinar o movimento dos corpos celestes com precisão milimétrica, as populações nas regiões abaixo da ilha vivem à mercê das decisões tomadas no alto — decisões que, muitas vezes, se traduzem em escassez, instabilidade e domínio. Não é uma paródia qualquer, mas um retrato dos pretensos gênios que, armados de fórmulas e boas intenções, fazem do mundo um laboratório — com os outros como cobaias.
A crítica não poderia ser mais direta. Swift está zombando dos racionalistas cartesianos, dos cientistas da Royal Society, dos políticos que governam com ideias tiradas de tratados e não da vida real. Em Laputa, o saber virou fetiche, e a razão, um deus tirano. O rei usa a ilha flutuante para subjugar cidades rebeldes, lançando pedras do céu ou tapando o sol para forçar a rendição pela fome — uma metáfora nada sutil para os métodos do império britânico, que subjugava colônias com a mesma combinação de superioridade moral e brutalidade técnica.
Ao imaginar uma civilização que vive nas nuvens — literalmente — e despreza o mundo terreno, Swift revela o perigo do intelecto que se considera autossuficiente. Laputa representa, para além de apenas uma sátira aos cientistas distraídos, uma alegoria da elite ilustrada que, embriagada pelo próprio brilho, paira sobre o mundo como se não fizesse parte dele. E quando uma elite se descola tanto da realidade a ponto de flutuar, a queda é apenas uma questão de tempo.
Miyazaki redescobre Laputa (e o Japão)
Lançado em 1986, Castelo no Céu foi o primeiro longa-metragem oficial do Studio Ghibli, fundado naquele mesmo ano por Hayao Miyazaki e Isao Takahata. O filme já deixava claro, desde o título original (Laputa: Castle in the Sky), que havia ali uma referência direta a Jonathan Swift — o que, considerando o histórico literário de Miyazaki, não deveria surpreender ninguém. Ele mesmo declarou, em entrevistas, que tirou o nome da ilha flutuante de Viagens de Gulliver, embora tenha suprimido a palavra “Laputa” do título nas versões ocidentais, para evitar constrangimentos linguísticos.
A escolha de Miyazaki, no entanto, vai além de uma simples referência estética. Se Swift criticava o cientificismo estéril, a arrogância imperial e a razão desumanizada, Miyazaki retoma essas críticas e as atualiza para o cenário geopolítico do século XX. Em vez de um rei absolutista arremessando pedras sobre cidades rebeldes, temos militares e agentes do governo tentando reativar os poderes bélicos de uma civilização esquecida, com objetivos de dominação tecnológica que não fariam feio nos anos mais tensos da Guerra Fria. A Laputa de Miyazaki já não é mais um lugar habitado, mas um vestígio arqueológico de uma civilização que caiu por excesso de poder — como se o filme se passasse séculos depois da visita de Gulliver, quando o castigo da história já tivesse feito seu trabalho.
Além disso, Miyazaki, ambientalista convicto, injeta em sua Laputa uma dimensão ecológica ausente na versão de Swift. A cidade flutuante, embora tecnologicamente avançada, é também um jardim suspenso, onde a natureza retomou seu lugar com serenidade quase sagrada. As árvores crescem entre as colunas em ruínas, os pássaros constroem ninhos entre as engrenagens, e robôs cuidam das flores. Nesse mundo, a tecnologia que servia à destruição convive agora com o silêncio da natureza, como um lembrete melancólico de que talvez o mundo não precise de tanto progresso, mas apenas de algum juízo. O mais interessante, ou irônico, é que a ilha de Laputa, em Castelo no céu, é um reino tão distante da humanidade que é tida como um mito — como se a possibilidade de haver harmonia entre tecnologia e natureza fossem coisas tão distantes do nosso horizonte de consciência que mais parece piada que uma possibilidade real.
O contraste, no entanto, parece ser proposital. Se Swift denunciava o ridículo da razão desencarnada, Miyazaki denuncia o horror da razão instrumentalizada — aquela que, munida de engenhos, mísseis e promessas de prosperidade, se lança contra tudo o que é vivo e vulnerável. Não por acaso, o vilão do filme, um burocrata com vocação para tirano, acredita que quem controlar Laputa controlará o mundo. Uma frase que poderia ter saído, com mínimas adaptações, de um gabinete em Washington ou Moscou, em plena década de 1980. Ao recuperar a imagem de Laputa, é como se Miyazaki erguesse uma continuação simbólica da crítica de Swift, agora transposta para um novo século.
Duas Laputas, a mesma tolice humana
Embora Castelo no Céu não siga diretamente a trama de Viagens de Gulliver, a presença de Laputa como ponto central da narrativa basta para estabelecer um paralelo entre as duas obras. O filme se passa, por assim dizer, muito tempo depois da passagem de Gulliver — quando o mundo que ele conheceu já caiu no esquecimento, e o que resta da antiga ilha flutuante é mais mito do que realidade. Na versão de Swift, Laputa é avistada por Gulliver depois que seu navio, desviado por uma tempestade, é abordado por piratas. Ele acaba em uma rocha solitária, de onde vê a ilha suspensa. Em Castelo no Céu, é também após uma tempestade que Laputa é vista pela primeira vez. O pai de Pazu, personagem que é só mencionado, fotografa a cidade do alto de um dirigível, e a imagem — que muitos desacreditam — se torna a gênese de uma busca que atravessa o filme inteiro.
Tanto Gulliver quanto Pazu são personagens movidos por uma inquietação que ultrapassa a lógica. Ambos perseguem algo que, para os outros, soa fantasioso. A figura de Pazu — assim como a de Sheeta, a menina que traz consigo uma herança enigmática — é marcada por esse impulso de descoberta e de afirmação de identidade por meio da aventura. Como no livro, os piratas também aparecem, no entanto, no lugar do capitão holandês que comanda os bandidos no livro, o filme nos apresenta Dola — uma matriarca de cabelo vermelho que mistura aspereza de comando com uma espécie de instinto maternal disfarçado.
A estrutura das Laputas também apresenta paralelos. Swift descreve uma ilha com vários níveis, escadas e galerias. Já a Laputa de Miyazaki, embora esteja em ruínas, ainda carrega essa sensação de camadas — com templos, raízes, robôs e torres circulares que lembram construções religiosas ou antigas fortalezas. A estética da cidade, com seus jardins suspensos e resquícios de tecnologia, remete tanto às cidades imaginadas por artistas como Bruegel quanto ao expressionismo arquitetônico de Metrópolis, de Fritz Lang. Superfície e profundidade se alternam, e o que parece utópico na chegada se revela, aos poucos, como o resíduo de algo que não soube se sustentar.
As duas obras carregam também uma dimensão política clara, ainda que expressem isso por meios distintos. Na obra de Swift, a crítica colonialista é mais explícita, e a seção sobre Laputa foi, inclusive, censurada à época, por conter uma metáfora evidente sobre a relação entre os colonizadores britânicos e a Irlanda. Laputa, nesse caso, representa o poder que impõe sua presença sobre cidades rebeldes como Lindalino, que por sua vez reage com engenhos próprios para repelir a ameaça. Em Miyazaki, o gesto é mais contido, e como em tantos de seus filmes, Castelo no Céu carrega uma crítica ao militarismo, à ganância e à guerra industrializada. A cidade flutuante, em vez de um ideal de civilização, torna-se uma herança perigosa — desejada por militares e agentes do governo que buscam nela uma forma de poder absoluto.
Se Swift denuncia o ridículo de uma razão desconectada do mundo, Miyazaki apresenta o esvaziamento de um poder que não resistiu ao tempo. Em um caso, temos a sátira do presente. No outro, as traças do passado. Mas ambas as Laputas, em seus diferentes contextos, orbitam uma mesma desconfiança, a de que há algo intrinsecamente instável nas civilizações que constroem seu valor muito acima da terra firme.
Por que Laputa caiu (ou: a inevitável decadência dos idiotas com poder demais)
A queda de Laputa, em Swift, não ocorre de forma literal. A ilha permanece suspensa no ar, mas o mundo que ela representa já mostra sinais de desgaste. Não há desmoronamento, mas um certo esvaziamento interno. Os sábios continuam absortos em experimentos cada vez mais inúteis, tentando domesticar a natureza com métodos que servem apenas para alimentar sua própria vaidade. A população abaixo da ilha, em Balnibarbi, vive à sombra dessa sabedoria desconectada, e o que sobra para eles é apenas a escassez. Em certo momento, Swift descreve o uso militar de Laputa, em que os governantes, ao enfrentar cidades rebeldes, descem a ilha até que ela encubra o sol, trazendo fome e doença. Se ainda assim a cidade resiste, há pedras. E se as pedras não bastam, há a ameaça final de esmagamento.
Esse é o ponto de ruptura. Não porque a ilha de fato caia, mas porque, ao usá-la como ameaça, o rei revela que não governa mais pelo saber, mas pela força. Laputa, que antes se justificava por sua superioridade intelectual, passa a depender da intimidação. A inteligência pragmática se degrada em mecanismo de dominação, e é nesse momento que surgem as brechas. Os habitantes de Lindalino, uma das cidades ameaçadas, aprendem a se defender. Desenvolvem engenhos próprios, interferem no magnetismo que sustenta a ilha e obrigam o rei a recuar. A queda, assim, é moral e política. Vejam se isso não parece uma fábula do cenário político global do século XX.
No filme de Miyazaki, a queda é mais concreta. Quando Sheeta e Pazu chegam à cidade, já encontram uma civilização extinta. Há beleza, mas não há vida, e o que existia ali se esgotou. O momento de tensão surge apenas quando Muska, o agente do governo, tenta ativar os antigos sistemas bélicos de Laputa para usá-los como arma de controle, numa alusão à corrida bélica na guerra fria. A cidade, que parecia esquecida, volta a ser perigosa. É nesse ponto que Sheeta recita o feitiço da destruição, quebrando o núcleo de energia que sustenta o centro militarizado da ilha. E é curioso notar que, no fim, o que permanece flutuando é justamente a parte da cidade tomada pela vegetação — a área onde os robôs cuidavam dos jardins. O que cai é a parte que ainda representava poder.
Há também uma inversão moral que aparece de maneira discreta. Os piratas, que inicialmente parecem oportunistas, são, aos poucos, revelados como os únicos personagens dispostos a proteger as crianças. Dola, a líder da trupe, age por interesse, mas não ultrapassa certos limites. Já os militares, em nome da ordem, não hesitam em destruir. Em momentos decisivos, são os piratas que hesitam diante da violência, enquanto o governo segue adiante.
Se na obra de Swift Laputa continua intacta, mas perde o controle, em Miyazaki a cidade se parte, mas retém algo de sua dignidade. E talvez o que as duas obras compartilhem, nesse ponto, seja a constatação de que nenhum projeto civilizatório se sustenta apenas pelo que constrói. É também pelo que escolhe abandonar.
Nosso eterno fascínio pela perfeição
No fundo, me parece que as duas obras tratam de uma mesma inclinação nossa, a de imaginar que é possível criar, longe da terra, um refúgio perfeito, uma inteligência superior, um poder imune às misérias humanas. Um lugar limpo, livre da sujeira do chão, onde só o espírito (ou a ciência, ou a tecnologia, ou o progresso) reina. Mas não demora muito para descobrirmos que, onde há gente, há tropeço. E onde há utopia elevada demais, há sempre a possibilidade de queda. Ambas histórias parecem tratar do eterno fascínio humano por querer erguer no céu aquilo que não soube sustentar em terra firme.
Tanto Viagens de Gulliver, quanto Castelo no céu, continuam mais atuais do que nunca. Enquanto Swift ri dos homens com suas máquinas pretensiosas, Miyazaki parece mais inclinado a observar o que restou delas, com certa pena e afeto. Ambos entendem que toda grande construção humana — seja uma cidade nas nuvens, seja uma ideologia terrestre — carrega em si o germe da própria queda.
Talvez seja por isso que ainda precisamos tanto dos dois. Porque o mundo continua cheio de Laputas novas — umas com drones, outras com algoritmos, todas flutuando sobre a realidade com ares de superioridade. E talvez a única forma honesta de lidar com isso seja continuar fazendo o que esses dois autores propõem, cada um à sua maneira, que é rir, observar, duvidar, e, se necessário, puxar a tomada. Afinal, entre a sátira e a animação, sobra uma lição sutil: o problema nunca foi construir castelos no céu, mas querer morar neles para sempre.
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- Gabriel é redator, publicitário e roteirista. ↩︎