Por Ana Júlia Galvan1
Quando um livro é adaptado para o cinema, é comum ouvirmos comentários de teor comparativo e até nos pegarmos cotejando a história contada no filme e no livro. Nada mais natural — afinal, muitas vezes, ao lermos o livro, criamos um universo em nossa mente e o experimentamos vivamente, emprestando às páginas as tintas de nossa própria imaginação e, assim, as expectativas que temos quanto à maneira de contar a história ou à importância de certos detalhes nem sempre são atendidas pelo filme. Não raro, as adaptações tomam liberdades que julgamos desnecessárias e até inconvenientes e, a nossos olhos, tornam-se pálidas imitações da obra original.
Entretanto, nem sempre é esse o caso. Há inúmeros exemplos de adaptações para o cinema que não só respeitam a obra original como, de algum modo, também a engrandecem — e o fazem justamente por se situarem não como uma obra derivada da primeira, mas sim como uma obra à parte.
Creio que o cerne da questão seja o seguinte: literatura e cinema são artes distintas. Esta pode parecer uma afirmação evidente e até tola; no entanto — e talvez o leitor o reconheça na própria experiência —, tal distinção nem sempre nos é tão evidente assim.
O cinema é a arte de mostrar sem necessariamente ter de falar — aliás, via de regra, as obras-primas do cinema o são porque, no casamento de imagem e som, condensam inúmeras camadas de significado. Coisas que, na escrita, podem levar parágrafos e até páginas inteiras para serem ditas, no cinema podem ser reveladas numa só imagem, sem palavra alguma a explicá-la ou a reforçá-la. Obviamente, isto pode ser uma vantagem ou uma desvantagem, a depender do quanto se queira revelar e de como tal revelação é conduzida.
Falei de longas descrições, mas faço um adendo importante: descrições pormenorizadas nos fazem vislumbrar a história na nossa cabeça em vez de tê-la pronta na tela — como dizia eu mais acima, fazem com que emprestemos as tintas de nossa imaginação à narrativa, o que, sem dúvida, estimula a mente, a memória e o raciocínio, precisamente porque exige mais esforço ativo. Além disso, tais descrições também nos permitem o contato com o que há de melhor no desembaraço, na engenhosidade e na criatividade humana quanto ao exercício das letras e o uso da escrita. Lendo um clássico, testemunhamos o que constitui uma boa história em forma e em conteúdo, bem como vislumbramos como o autor pensa, como fixa abstrações em palavras, como enxerga o mundo e como o expressa; e, com isso, ampliamos a nossa gama de experiências humanas possíveis, enriquecemos o nosso vocabulário e refinamos nosso pensamento — frutos que somente a literatura é capaz de proporcionar do jeito que nos proporciona.
O bom cinema, por sua vez, é capaz de delinear em uma única cena a personalidade, a profissão, os papéis sociais e até a satisfação ou a frustração que um personagem nutre pela sua situação. Se bem compostos, o ambiente (cenário) e o vestuário (figurino) de um personagem dizem muito sobre quem ele é, emprestando-lhe uma circunstância razoavelmente concreta, uma aparência muito convincente de vida e uma personalidade verossímil. Isso porque o cinema mostra, não diz. Na vida real, captamos significados explícitos e implícitos atentando aos menores detalhes de vestuário, de apresentação, de ordem ou desordem, de tom de voz e de linguagem corporal e, por meio dessas e de outras deixas, calibramos as nossas impressões; sabemos, por exemplo, que nem sempre o que alguém fala, por mais convincente que sejam as suas palavras, é congruente com a postura ou a intenção do sujeito. Os filmes, valendo-se de sua tecnologia de som e de imagem em movimento, lançam mão de muitos desses aspectos e não raro os potencializam por meio da fotografia, da montagem, da edição e das trilhas sonoras, com acréscimo de elementos que não estão presentes na vida real. Quem nunca se pegou andando pela rua a ouvir música e pensando: isso daria uma bela cena de filme?
Com tudo isso, não quero dizer que uma arte é melhor do que a outra; meu intuito é antes reforçar a noção que afirmei mais acima: literatura e cinema são artes distintas e, como tal, devem ser tomadas de maneiras diferentes. Nas adaptações, ainda que haja o ponto de interseção que é dado pela mesma história, a obra cinematográfica de adaptação será, necessariamente, distinta da obra literária adaptada — e é bom (e, com sorte, mutuamente enriquecedor) que assim o seja. O bom filme é uma obra em si, conquistando o próprio espaço mesmo que seja uma adaptação literária, da mesma forma que o bom livro não pede por um filme nem nada extra que o complemente.
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Valendo-me da minha paixão e da minha relação próxima com ambas as artes, decidi trazer uma pequena lista de adaptações de obras literárias para o cinema que valem a pena ser assistidas. São obras que se sustentam por si, de modo que não é necessário ter a preocupação de ler o livro antes — porém, a experiência poderá ser ainda mais enriquecedora se o leitor deste pequeno ensaio decidir ser também leitor das obras literárias que ensejaram tais adaptações.
- O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972)
Baseado na obra homônima de Mario Puzo, o célebre O Poderoso Chefão é um dos clássicos do cinema e talvez o caso mais conhecido de adaptação. Vito Corleone é chefe de família…e de famiglia. Após um atentado contra a sua vida, de retaliação em retaliação inicia-se uma verdadeira guerra entre as Cinco Famílias — máfias que misturam relações de sangue e negócios escusos. Na tentativa de pôr um fim aos conflitos abertos, Don Corleone passa o comando dos negócios ao filho Michael, inicialmente relutante, e testemunhamos a transformação deste no novo líder.
- Touro Indomável (Martin Scorsese, 1980)
Baseado em Raging Bull: My Story, livro de memórias do campeão de boxe Jake LaMotta, conta a história de um boxeador (Robert De Niro) brilhante nos ringues, mas com uma vida atormentada. O seu sucesso e a sua ruína se dão pelos mesmos motivos: o seu temperamento explosivo, a ira e o descontrole em várias searas. Com o passar do tempo, porém, a vida vai lhe mostrando possibilidades de redenção.
- Doutor Jivago (David Lean, 1965)
Yuri Jivago, médico e poeta, tem a vida completamente transformada pela Revolução Russa e pela guerra civil subsequente. Em meio às profundas transformações da época, apaixona-se por Lara Antipova, enfermeira num hospital de campanha em que trabalha durante a Primeira Guerra Mundial. Adaptado da obra do autor russo Boris Pasternak, o filme acompanha as vidas desses dois personagens — e o romance que atravessa as décadas, mesmo sob as turbulências e os perigos da época.
- Madame Bovary (Claude Chabrol, 1991)
Adaptado do clássico homônimo de Gustave Flaubert, Madame Bovary conta a história de Emma e das maneiras que ela encontra de aplacar o tédio profundo que sente vivendo em uma pequena cidade francesa com o seu marido, o médico Charles Bovary. Ambiciosa e hedonista, Emma acaba se colocando numa série de situações cada vez mais complexas e moralmente questionáveis. Nesta adaptação dirigida por Chabrol, Isabelle Huppert encarna perfeitamente o tédio sentido por Emma (e, mais tarde, o seu desespero!).
- O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976)
O oficial Giovanni Drogo é enviado a uma fortaleza remota, diante de um deserto e em área fronteiriça ao território dos tártaros. Os homens que lá servem passam os dias preparando-se para uma possível invasão — ameaça sustentada por rumores constantes trazidos por mensageiros a cavalo, vindos de longe, de territórios em que talvez haja, de fato, conflito em curso. Adaptado da obra de Dino Buzzati, o filme é uma belíssima meditação sobre expectativas e a implacável passagem do tempo.
- O Beijo no Asfalto (Bruno Barreto, 1981)
Num ato de compaixão para com um moribundo desconhecido, Arandir dá-lhe um beijo. O ato, no entanto, será utilizado contra ele por sujeitos da mídia e da polícia, que precisam de uma fagulha qualquer para “sacudir a cidade”. Acompanhando o desenrolar da situação, vemos o quanto forças externas são capazes de incutir a dúvida até mesmo nas pessoas mais próximas. A adaptação de Barreto da peça de Nelson Rodrigues conta com um elenco excelente e, sendo extremamente fiel ao texto original, empresta a seus personagens contornos que os aprofundam. (O leitor interessado em Nelson Rodrigues também poderá ler esta publicação que fizemos aqui no blog do CLC sobre as peças do autor.)
- Os Miseráveis (Bille August, 1998)
A obra de Victor Hugo inspirou muitas adaptações ao longo das décadas, dentre as quais esta se destaca. Preso por roubar pão para dar de comer a sua família, Jean Valjean sofre tratamento horrendo nas mãos de Javert, um policial inclemente que parece usar de todas as oportunidades para importuná-lo e torturá-lo. Fugindo da prisão, chega à casa de um padre que o recebe e impede que a polícia o capture novamente. Tal gesto de compaixão faz com que Jean Valjean queira recuperar a dignidade perdida — e mesmo redimido perante a sociedade, ainda é perseguido pelo antigo carrasco.
- Tubarão (Steven Spielberg, 1975)
Adaptado do romance homônimo do autor Peter Benchley e outro clássico do cinema, Tubarão conta a história de uma pequena cidade turística no litoral que sofre com os ataques de um tubarão-branco que parece ter vindo para ficar. O chefe de polícia da cidade, um biólogo marinho e um caçador reúnem-se e partem num pequeno barco na esperança de dar um jeito na situação.
- White Dog (Samuel Fuller, 1982)
Adaptado do romance autobiográfico de Romain Gary, o filme conta a história de um pastor alemão branco que é atropelado por uma jovem atriz. A moça leva-o ao veterinário e procura pelo seu dono, sem êxito. Vendo-se sem saída, decide adotar o cão. Percebendo o seu comportamento extremamente agressivo, ela o leva a um centro de treinamento de animais — e lá descobrirá que o seu agora amado cão fora treinado para atacar pessoas negras. O filme aborda de maneira muito elegante a questão do racismo e do ódio — e questiona se comportamentos aprendidos com esses fins podem ser desaprendidos.
- …E O Vento Levou (Victor Fleming, 1939)
Adaptado do romance de Margaret Mitchell, …E O Vento Levou conta a história de Scarlett O’Hara, filha mimada de um latifundiário rico que tem de lançar mão de inúmeras estratégias de sobrevivência após a sua família perder tudo durante as batalhas da Guerra Civil Americana, bem como dos romances e separações por que Scarlett passa. Um clássico do cinema.
- Os Pássaros (Alfred Hitchcock, 1963)
Outro clássico do cinema, dirigido por um diretor célebre e muito prolífico, Os Pássaros é baseado num conto de terror de mesmo título da escritora britânica Daphne du Maurier. Melanie Daniels viaja para uma cidadezinha do litoral para encontrar-se com Mitch Brenner, homem que conheceu pouco antes numa pet shop. Tão logo chega lá, eventos estranhos ocorrem: pássaros em revoadas põem-se a atacar as pessoas de maneira repentina, violenta e misteriosa, o que é motivo de pânico entre os moradores.
- O Homem Que Não Vendeu Sua Alma (Fred Zinnemann, 1966)
O Homem Que Não Vendeu Sua Alma é o título da peça de Robert Bolt, da qual este filme é uma adaptação. O enredo é baseado na vida de Sir Thomas More, Lorde Chanceler inglês sob o rei Henrique VIII — aquele que, querendo divorciar-se da esposa para casar-se com outra mulher, declara-se chefe da Igreja da Inglaterra e exige que Sir Thomas o reconheça como tal; porém, reconhecê-lo vai contra a consciência do Lorde Chanceler, que não cede à pressão nem mesmo diante da ameaça derradeira.
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Com esta breve lista, espero ter inspirado no leitor o desejo de conhecer os filmes e os livros citados. Literatura e cinema não são excludentes de modo algum — e só terá a ganhar aquele que, já sendo leitor de clássicos, busque também se inteirar das obras-primas do cinema!
Gostou dessa reflexão?
Assista nosso vídeo especial sobre a disputa entre cinema e literatura.
- Ana Júlia Galvan é escritora, tradutora literária (do inglês e do francês) e estudante das artes. É formada em Cinema e Realização Audiovisual pela Universidade do Sul de Santa Catarina e mestre em Estudos da Tradução pela University of Ottawa. Escreve sobre arte, cultura e coisas da vida no Periódico da Ana (newsletter) e tem “conversas interessantes com pessoas interessadas” sobre obras de arte no Entremeios (canal no YouTube). Natural de Santa Catarina, mora no Canadá desde 2017. ↩︎