Por Bernardo Lins1
A casa do atridas
A tragédia grega é um gênero teatral que se define, antes de tudo, pelo momento e o lugar de sua encenação. Com efeito, ela é formada por peças que foram encenadas nas Dionísias urbanas, um festival celebrado anualmente em Atenas durante a primavera. Ali, três tragediógrafos eram escolhidos para apresentar, cada um, três peças trágicas e um drama satírico (uma peça menor e de tom mais leve, com um coro representando sátiros), que poderiam ou não ter relação entre si.
Das trinta e duas obras que nos restaram, apenas três, escritas por Ésquilo (Agamêmnon, Coéforas e Eumênides) foram apresentadas em um mesmo dia e narram uma história contínua. Juntas, elas formam a única trilogia completa que chegou até nós, a Oréstia (ainda que nos falte o drama satírico, que, como alívio cômico, contava uma outra história, a estadia de Menelau e Helena no Egito quando voltaram de Tróia), que foi encenada em 458, dois anos antes da morte de Ésquilo, e que conta as desventuras da casa de Atreu desde a morte de Agamêmnon até a absolvição de Orestes no tribunal de Atenas.
Para entender melhor essas peças e o seu sentido profundo, devemos primeiro conhecer a perturbadora história da família dos atridas, a começar por Tântalo, um herói que, ao tentar enganar os deuses, é um dos poucos condenados a sofrer suplícios no Hades. Segundo uma das versões do mito, Tântalo ofereceu um banquete aos deuses em seu palácio e, para mostrar que era capaz de enganá-los, matou seu próprio filho, Pélops, para servir sua carne como prato principal. Os deuses descobriram a trama e, após reconstruírem Pélops, amaldiçoaram Tântalo, que, quando morreu, passou a viver em uma região do Hades repleta de árvores frutíferas e água a padecer de fome e sede, pois a bebida e os alimentos continuamente lhe escapavam, o que me parece ser um eloquente símbolo do desejo insaciável do homem corrompido.
Pélops continua o ciclo de transgressões familiares. Querendo se casar com Hipodâmia, cujo pai, o rei Enomau, exigia que os pretendentes o vencessem, sob pena de morte (pois um oráculo predissera que seria morto pelo genro), numa corrida de bigas, ele suborna Mirtilo, o condutor do carro real, para sabotar o veículo durante a disputa. Em consequência, o rei morre na corrida e Pélops foge com Hipodâmia. Durante a fuga, Mirtilo, que estava com eles, tenta violentar a princesa e, por isso, Pélops o lança de um precipício no mar. Ao morrer, o condutor amaldiçoa Pélops e toda sua descendência.
Na geração seguinte, os filhos de Pélops, Atreu e Tiestes, como resultado das maldições acumuladas, passam a disputar o trono paterno em Micenas, a mais poderosa cidade grega da época. Por sugestão de Tiestes, eles decidem que o reino irá para quem conseguir o velo de um cordeiro de ouro. Atreu o obtém, mas sua própria esposa, Aerope, entrega-o a Tiestes, que era seu amante. Os deuses então, indignados com a trapaça, fazem o sol se pôr ao leste, manifestando o desejo de que Atreu se torne o rei, o que de fato acontece.
Desejando vingança pela traição do irmão, Atreu arquiteta um plano: convida Tiestes e seus filhos para um banquete, sob o pretexto de reconciliação. Em seguida, mata os jovens e serve a carne deles para o pai, sem que este saiba o que está a acontecer. Quando finalmente descobre o que Atreu fez, Tiestes o amaldiçoa, bem como os seus descendentes. Depois, seguindo o conselho de um oráculo, gera um filho com sua própria filha, que havia sobrevivido ao massacre, e prepara a criança para vingar a família. Esta criança é Egisto, que terá um papel fundamental na Oréstia.
Atreu, por sua vez, tem dois filhos, Agamêmnon e Menelau. A princípio, tudo parece ir bem para os irmãos. Agamêmnon, governando Micenas, torna-se um rei poderoso e Menelau, rei de Esparta, desposa Helena, a mais bela mulher do mundo. Mas a sorte deles começa a mudar quando Menelau hospeda em seu palácio o príncipe troiano Páris. Este, auxiliado por Afrodite, seduz Helena e foge com ela para Tróia. Menelau, desejando recuperar a esposa, solicita a ajuda do irmão, que reúne um exército liderado por heróis de toda a Grécia para auxiliá-los.
Nada é simples, contudo, para a casa de Atreu. Quando o exército grego reúne-se em Áulis para zarpar para Tróia, a deusa Ártemis impede que os ventos sejam favoráveis à navegação. Durante um mês, o imenso exército permanece imobilizado, com as provisões diminuindo a cada dia, em uma situação de crescente tensão. Então, o adivinho Calcas revela que Ártemis, para permitir a partida da frota, está a exigir o sacrifício da filha de Agamêmnon, Ifigênia. Desesperado, Agamêmnon aceita fazer o sacrifício. Depois da morte da jovem, os ventos voltam a soprar e os gregos partem para Tróia. Desde então, Clitemnestra, mãe de Ifigênia, passa a nutrir desejos de vingança contra seu esposo Agamêmnon.
O Agamêmnon
A primeira peça da trilogia, Agamêmnon, começa com uma cena em que um vigia, cujo posto fica no telhado do palácio, aguarda um sinal luminoso indicando a queda de Tróia. Com efeito, Clitemnestra arquitetara um engenhoso sistema de sinais de fogo, transmitidos de torre em torre desde Tróia até Argos (algo parecido com o que vemos no segundo filme da trilogia do Senhor dos Anéis, A Duas Torres), que lhe permitiria saber quase que imediatamente da vitória dos gregos, de modo a preparar-se para o retorno do marido. É que enquanto este estava ausente, ela governava, na versão de Ésquilo, a cidade de Argos (e não Micenas), junto com Egisto, que havia se tornado seu amante, repetindo o adultério de Tiestes com a esposa de Atreu.
O vigia avista o sinal e avisa Clitemnestra. Na próxima cena, entra o coro, formado por anciãos que, por causa da idade, não puderam ir para a guerra. Em seu canto, eles relembram o sacrifício de Ifigênia, contando que Ártemis se enfurecera com Agamêmnon no momento em que este viu duas águias devorando uma lebre prenhe, um presságio do futuro saque de Tróia. Como interpreta Elizabeth Vandiver (Greek Tragedy), tudo indica que Ártemis estava enfurecida não com algo que Agamêmnon havia feito, mas com o que futuramente faria na guerra.
O coro afirma que Agamêmnon é inocente da escolha terrível a que se viu obrigado a fazer, ainda que isso não o exima das consequências de suas ações. Então aparece Clitemnestra, que anuncia aos anciãos o retorno dos gregos. Ainda que seja a grande vilã da peça, seu tom é de sabedoria e moderação. Ela lhes diz que os gregos devem ser modestos na vitória para que tenham um bom retorno e afirma que uma guerra que não respeita os deuses dos vencidos é perigosa para os vencedores. Essa é uma fala impactante: a audiência conhecia bem o mito de Tróia e sabia que o saque da cidade fora bastante violento.
O coro considera sua fala prudente, mas não acredita que Tróia tenha caído, dizendo que as mulheres costumam a acreditar em rumores com facilidade, o que é um notável exemplo de ironia trágica, já que Clitemnestra é, na verdade, mais astuta do que eles. E, de fato, logo chega um arauto que confirma que os gregos venceram. Clitemnestra, com palavras de duplo sentido, parece se alegrar com a notícia.
Quando Agamêmnon chega, trazendo a princesa Cassandra, filha de Príamo, como prisioneira de guerra, seu tom é também de moderação. Ele se lamenta por ter causado, com a intenção de expiar a injustiça cometida por Páris, uma destruição muito maior. Clitemnestra vai ao seu encontro, falando de sua miséria na ausência do marido, e pede aos servos que espalhem mantos púrpuras no chão para ele caminhar, de modo que seus pés não pisem no chão. Seu pedido contém um profundo simbolismo: à primeira vista, é um modo de honrar o rei que retorna. Mas também é sinal de que ele não chegará a pisar verdadeiramente no solo pátrio. Além disso, a cor púrpura evoca sangue, prenunciando seu assassinato iminente.
Agamêmnon reluta em caminhar sobre os mantos, afirmando que esse é um tratamento adequado apenas aos deuses. Para Hubert Dreyfus (Aeschylus’ The Oresteia), ele não aparece aqui como um herói que perece pela própria arrogância por ter, como ensina Aristóteles na Poética, cometido hybris (uma desmedida). Sua fala indica um homem sensato, consciente de seus limites e admirado pelo coro, ainda que, como o personagem ambíguo que é, também seja cruel a ponto de matar a filha.
Agamêmnon também diz, por ter sido chamado de bem-aventurado, retomando um lugar-comum da cultura grega, que aparece em outros textos como a História de Heródoto (no famoso diálogo entre Creso e Sólon) e a Ética a Nicômaco de Aristóteles (livro I), que nunca se sabe se alguém foi verdadeiramente feliz até que termine sua vida. E, de fato, sem que ele saiba, sua fala parece se aplicar a si mesmo: ele é o vencedor de Tróia, mas não durará muito tempo em seu próprio palácio.
Clitemnestra, em resposta, lhe diz que Príamo, o rei troiano, não teria esse pudor. Ésquilo aqui está, em um claro exemplo do etnocentrismo grego, a apresentar o que ele entendia ser a diferença entre os povos do Oriente (Tróia ficava na Ásia menor), que divinizam os seus governantes, e os atenienses, com sua democracia. Agamêmnon cede à esposa, afirmando, em uma frase cuja verdadeira dimensão ele não é ainda capaz de compreender, que a deixará vencer, e entra no palácio.
Enquanto isso, Cassandra fica parada na porta, como se fosse um personagem silencioso, algo típico nas tragédias de Ésquilo. Clitemnestra, de maneira pretensamente gentil, diz a ela que a escravidão é terrível, mas que ser uma serva de uma casa real não é tão ruim assim. Também a convida a entrar, pois o sacrifício está sendo preparado. Ela se refere, primeiro, ao sacrifício ritual em agradecimento ao retorno de Agamêmnon, mas também ao sacrifício do próprio Agamêmnon que em breve se realizará. Cassandra permanece silenciosa, sem responder ao convite. Ela sabe, pois, o que acontecerá, que ela também morrerá. Pois, segundo o mito, ela recebeu de Apolo o dom da profecia, mas ao recusar ser sua amante, foi amaldiçoada por ele. A partir daí, ninguém mais acredita em suas previsões.
Clitemnestra desiste de esperar por uma resposta, acreditando que a princesa não entende grego, e entra no palácio. Em seguida, em uma cena de profundo impacto dramático, Cassandra começa subitamente o seu canto de lamento, no qual profetiza não apenas a iminente morte de Agamêmnon, mas a sua também. O coro a ouve, atônito. Esse é o momento em que a catástrofe poderia ter sido evitada, mas, como o esperado, ninguém acredita no que ela diz. Cassandra, então, afirmando que perdeu tudo no saque de Tróia e que irá encarar o seu destino com a cabeça erguida, levanta e se dirige ao palácio, caminhando rumo à própria destruição. Ela é aqui a maior representante, nesta peça, da grandeza do herói trágico grego, aquele que sofre, com dignidade, aquilo que lhe cabe.
Como é típico em uma tragédia, a cena seguinte, a do assassinato, não é vista pelos espectadores. Clitemnestra põe termo a seu plano dentro do palácio. A plateia apenas ouve os gritos das vítimas, o que torna a cena ainda mais impactante. O coro também ouve os gritos e debate o que fazer, mas, no fim, permanece paralisado pela indecisão, como uma assembleia que, de tanto discutir, deixa passar o momento da ação.
Clitemnestra aparece em cena com os corpos de Agamêmnon e Cassandra. Quando vai contar como cometeu o assassinato, ela fala do sangue que jorrou sobre sua face, como a chuva fecundando a terra, uma metáfora com conotações sexuais que sugere o prazer quase erótico que teve naquele momento. Ao mesmo tempo, assevera que é isenta de culpa. Foram os deuses e a necessidade de vingar Ifigênia que a levaram a cometer o crime. Tal como com a Medeia de Eurípides, a Clitemnestra de Ésquilo manifesta a corrupção de sua alma ao revelar sua incapacidade de tomar responsabilidade por seus próprios atos.
Já a deformação da alma de Egisto, tão consumido pelo desejo de vingança quanto a amante, é de outra natureza. Depois que ele finalmente aparece e proclama que os deuses vingaram os crimes de Atreu, o coro o acusa de covardia por deixar uma mulher fazer o trabalho sujo. Egisto é um manipulador, mas também um homem fraco. Como resposta, ele ameaça o coro com sua guarda, mas Clitemnestra intervém, pedindo, novamente em uma atitude de moderação, o fim da violência (sua personalidade complexa, tal como Ésquilo a constrói, é um dos pontos altos da obra). Ela e Egisto retornam ao palácio e a peça termina.
As Coéforas
O segundo momento da Oréstia, única trilogia de Ésquilo que chegou até nós, são as Coéforas. A peça se passa dez anos depois dos eventos anteriores, e seu título faz referência às escravas que trazem oferendas ao túmulo de Agamêmnon e formam o coro. A história parte do seguinte:: Orestes, que era criança quando seu pai, Agamêmnon, foi assassinado, foi enviado para ser criado na corte do rei Estrófulo da Fócida, casado com a sua tia, Anaxíbia. Agora, já adulto, ele está de volta a Argos, acompanhado de seu primo Pílades, em busca de vingança.
A peça se inicia com Orestes diante do túmulo do pai. Ali, ele faz um voto de vingá-lo e deixa, como sinal, uma mecha de cabelo. Entra o coro das coéforas, acompanhando Electra, a irmã de Orestes, levando as libações a Agamêmnon. O rito foi uma ideia de Clitemnestra, após ter sonhado com uma serpente amamentando em seus seios, uma clara referência ao medo que tinha do retorno do filho, o que a levou a querer apaziguar o espírito do marido que ela assassinou.
Quando chega ao túmulo, em uma cena não muito verossímil mas de grande impacto (pois é uma das mais famosas cenas de reconhecimento da literatura grega), Electra encontra o cabelo, que percebe ser semelhante ao seu, e vê pegadas similares às suas. Quando ela entende que Orestes provavelmente esteve ali, ele, que estava escondido, se revela. Juntos, os irmãos lamentam o destino e fazem uma prece para que a alma do pai os ajude. Orestes então conta o seu plano, que tem sua parcela de ironia dramática: ele planeja apresentar-se como um mensageiro que traz a notícia de sua própria morte. Uma vez dentro do palácio, na presença dos dois, ele os matará.
É exatamente o que acontece. Clitemnestra, que, também de um modo não muito verossímil, não reconhece a princípio o próprio filho, recebe as notícias de sua suposta morte com uma não muito convincente expressão de pesar. Quando Egisto aparece, Orestes o mata. Clitemnestra entende o que está a acontecer e tenta encontrar um machado para atacá-lo. Mas ao se deparar com ele, apela para sua misericórdia, pedindo que tenha piedade dos seios que o amamentaram – uma referência ao sonho do início da peça, deixando implícito que Orestes é, para ela, neste momento, como uma serpente. Também se defende dizendo, tal como na peça anterior, que não foi ela, mas o destino que matou Agamêmnon.
Diante da mãe, Orestes hesita. É nesse momento que se revela a profundidade de seu dilema. Os costumes de seu tempo demandavam que ele matasse o assassino de seu pai. Mas este assassino é sua mãe, que ele tem o dever de poupar. É o seu próprio código cultural que o leva a essa encruzilhada, a respeito da qual, no entanto, ele tem que decidir. Então, em uma cena paralela à de Cassandra na peça anterior, Pílades, que o acompanhava e que parecia ser um personagem silencioso, toma a palavra e nota que foi Apolo que o mandou se vingar. Orestes, assim, supera sua dúvida e mata Clitemnestra.
Em seguida, novamente em paralelo com a peça anterior, Orestes aparece em cena com os corpos de Clitemnestra e Egisto e diz ao coro que tinha o direito de matá-los. Mas, ao contrário da mãe, que não reconhece em nenhum momento a própria culpa, Orestes começa a sofrer uma crise de consciência. Ele diz temer a loucura, afirmando ser como um condutor de carruagem que saiu dos trilhos. Ele também passa a ver as Erínias, divindades ctônicas da mitologia grega que perseguem aqueles que cometeram crimes contra os pais, e entende que elas irão persegui-lo. O coro não as vê, mas Orestes, asseverando que elas são reais, foge. O coro, lamentando-se pelos acontecimentos, imagina se a maldição da casa de Atreu terá fim.
As Eumênides
Se, na primeira peça, a situação trágica é criada e, na segunda, Orestes é convocado a decidir o que fazer a respeito dela, nas Eumênides, a deusa Atena lhe vem em socorro e o salva da aporia em que foi colocado. Com efeito, a encruzilhada na qual se encontra revela uma tensão no próprio âmbito divino: por um lado, foi Apolo que o ordenou vingar o seu pai, sob a pena de morrer de uma dolorosa doença caso não o fizesse; por outro, por ter matado sua mãe, ele está sendo perseguido pelas Erínias. O grande ensinamento de Ésquilo, em sua trilogia, é que o dilema de Orestes é insolúvel a partir do esquema arcaico da justiça e que, por isso, deve-se inventar um novo sistema. O dever de vingança deve ser retirado dos herdeiros da vítima e entregue à sociedade como um todo. Um sistema penal deve ser inaugurado.
A peça começa em grande estilo: os deuses, que eram apenas mencionados nas peças anteriores, aparecem como personagens. Também Clitemnestra retorna brevemente, como um fantasma. Orestes buscando auxílio de Apolo vai até Delfos. O deus o recebe e o envia à Atena, que está em Atenas. No momento do párodo, vemos que as Erínias, que, nas Coéforas, foram vistas apenas por Orestes, formarão nesta peça o coro. Relatos antigos afirmam que a sua caracterização cênica foi tão impressionante que causou desmaios na audiência durante a encenação.
Elas são despertadas pelo fantasma de Clitemnestra e vão atrás de Orestes. Ele, no entanto, consegue chegar em Atenas. Ali é defendido por Atena, que propõe uma solução: haverá um julgamento, que ela presidirá. Apolo será o advogado de defesa e as Erínias, as acusadoras, enquanto o júri será composto por cidadãos atenienses. Ésquilo apresenta esse julgamento como se fosse o primeiro realizado em Atenas, uma versão mitológica da origem do tribunal do Areópago, que, nas palavras de H. D. Kitto, aparece aqui como o protótipo de todos os tribunais, uma instituição divina que serve como barreira contra a violência, a anarquia e o despotismo. Através dele, por meio da astúcia de Atena, a ira, que até então era o instrumento da justiça, dará lugar ao lógos.
É exatamente o que vemos acontecer. Em vez de um novo ciclo de vingança, durante o julgamento de Orestes, temos os discursos de Apolo e das Erínias que apresentam suas razões. Depois deles, os jurados votam, mas o resultado a que chegam é um empate, um símbolo da dificuldade do caso que estão a avaliar. Atena então dá o seu voto de desempate e absolve Orestes – eis a origem da expressão voto de Minerva (a deusa correspondente à Atena na mitologia romana). As Erínias se enfurecem, mas a deusa lhes faz uma proposta: que, de perseguidoras, elas se transformem em protetoras de Atenas. Elas aceitam e se tornam as Eumênides, as benevolentes.
A Oréstia
É nesse momento, com o qual a peça termina, que entendemos o sentido profundo da trilogia. Nela, temos a narrativa da transição crucial pela qual passou a cultura grega, em um processo que durou séculos, de uma cultura da vingança pessoal para uma cultura da justiça institucionalizada. Como nota Dreyfus (Aeschylus’ The Oresteia), após muito sofrimento, a cultura se transforma e se torna mais adequada para casos limítrofes como esse. A partir daí, a vingança privada, um costume antigo entre os gregos, será superada pelo Direito. Os tribunais existem para interromper esses ciclos intermináveis de violência que destroem comunidades. Essa é a lição que Ésquilo constrói nessas peças, que terminam, assim, como uma celebração do sistema jurídico de Atenas.A Oréstia é um dos grandes momentos da literatura mundial. Seu estilo, lírico e elevado, e intensamente poético nas extensas passagens do coro que, na sua encenação na Atenas do séc. V a.C., foram cantadas, acompanhadas pela dança deste mesmo coro e pelo estridente som do áulos (um instrumento de sopro formado por dois caniços), é inigualável. Por termos as três peças completas, podemos perceber como nelas temas e motivos como a responsabilidade e a culpa, os ciclos intermináveis de vingança, a profecia e a ação dos deuses vão se desenvolvendo, com grande habilidade artística. H. D. Kitto (A Tragédia Grega) dizia que a grande questão de Ésquilo é o homem diante de seu destino. Lendo o drama de Orestes sob essa perspectiva, compreendemos por que estas obras permanecem como uma das reflexões mais profundas de nossa tradição literária sobre a condição humana.
- Professor de Grego Antigo na UFMG. Escreve no https://noitesaticas.substack.com/ ↩︎