Machado de Assis era mesmo pessimista?

Por Fábio Gonçalves1

Fixou-se pela crítica literária a imagem de um Machado de Assis inegociavelmente pessimista, um schopenhaueriano puro-sangue, um galhofeiro à moda de Sterne ou Swift, que ria de todos por descrer de todos, do gênero humano inteiro. Não foi ele quem se gabou de não ter transmitido, para os filhos que não teve, o legado da nossa miséria? 

Desde que me interessei pela obra do Bruxo e fui ler o que dizia a seu respeito os seus mais autorizados intérpretes, foi esse o quadro que me ficou: um homem casmurro, como o seu protagonista; um sujeito zangado com o mundo e que olhava para toda a gente com os olhos oblíquos e um cinismo mal disfarçado no canto dos lábios. 

Era esse o quadro em minha inteligência até que eu lesse um artigo do grande linguista Gladstone Chaves de Melo que ecoava uma tese compartilhada com o seu amigo Gustavo Corção — não sei se a tese é deste ou daquele. Resumo o argumento: dizem eles que pintou um Machado pessimista quem considerou suas maiores realizações no conto e no romance, mas desprezou a pessoa inteira — com o resto da obra, com suas cartas, com os grandes amigos, com o amor que ele devotava à esposa Carolina. 

E vão dizendo mais coisas nessa linha até chegarem ao ponto principal: Machado, leitor admitido do Eclesiastes, achou a chave de leitura para esse livro aparentemente tão dissonante com a Palavra de Deus: todas as mazelas do mundo, evocadas pelo rei sábio, encontram resposta no Sermão da Montanha, pela boca da própria Sabedoria

Essa interpretação, afirmam ambos, consoante com o que diria décadas depois o jesuíta Raymond Pautrel, tradutor do livro salomônico para a versão francesa da Bíblia de Jerusalém, se acha numa crônica em que Machado narra as suas impressões ao entrar numa Missa, durante a Semana Santa de 1894:

Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.

— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 

— Vede a injustiça do mundo. ‘Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.’

— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males...

— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o reino do céu.

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão continuava. Bem aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos...”

A solução para o desconcerto do mundo e para o desassossego da alma estaria nesse discurso do Cristo, pregado às margens do Mar da Galileia para aquela multidão de tristes, doentes, pobres e injustiçados — imagem do gênero humano. 

*

Não pretendo criar novos argumentos à tese de Gladstone e Corção — o que seria petulante de minha parte. Mas creio que posso engrossar os mesmos argumentos dos mestres com um exemplo que talvez lhes tenha escapado. 

E o exemplo é o conto Viver!, datado de 1886. Trata-se de um conto dramático, teatral. O cenário é o fim do mundo. Contracenam duas figuras lendário-mitológicas: Ahasverus, o Judeu Errante, e Prometeu, Titã que teria fabricado o homem em argila e, mais tarde, presenteado sua criatura com o fogo divino (a alma, a ciência, o espírito), furtado do Olimpo — o que lhe rendeu os famosos grilhões e o castigo da águia que todos os dias lhe vinha comer o fígado. 

Ahasverus é o pessimista por excelência. Segundo a tradição, ele teria escarnecido de Jesus na via crucis, mandando que o Inocente, caído, exausto, não parasse. Uma voz, desde o Céu, pronto lhe baixou a sentença: “Vais andar sempre e sempre, sem cessar, até o fim dos tempos”. E desde então o homem saiu a errar pelo mundo, por todos os povos, por todas as épocas. 

No início do conto, que se passa no dia derradeiro, Ahasverus comemora a libertação: “o errante não errará mais”, desabafa, aliviado. E, observando o voo de duas águias, únicos viventes em todo o panorama, o homem, o último dos homens, adormece. 

Mas, logo uma voz o acorda. Ele desperta exasperado, temente que um irmão de espécie viesse prorrogar o seu fim. Surge então a figura de Prometeu, que ele primeiro julgou ser um anjo. Como fosse, não era homem. Não haveria prorrogações; alcançara mesmo o limiar da morte, conforme ambicionava há milênios. Assim relaxado, entabula conversa com o estranho. 

O grosso do diálogo resume-se na defesa de duas posições: Ahasverus, depois de ter assistido a toda história humana, aurora depois de aurora, dia após dia, constata que a vida é um tédio. E tudo o que diz em favor dessa ideia, podemos dizer, são desdobramentos dos primeiros capítulos do Eclesiastes:

“Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem, aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Felizes os que só leram a vida em um capítulo. Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos?”

O Titã lhe diz, à guisa de consolo, que ao contrário de todos os homens, que viram da vida um único capítulo, a ele foi dado o privilégio de ler o livro inteiro. Mas isso não muda a conclusão do velho, que viveu milênios para confirmar a verdade que o filho de Davi constatou em poucas décadas: “não há nada de novo debaixo do sol”. 

Diz Ahasverus, logo depois de revelar ter vivido milhares de anos: 

“Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência”.  

É a encarnação do pessimismo. 

Do outro lado, temos o autor da humanidade, que, em defesa de sua obra, vai tentando atenuar o azedume do ancião. Mostra-lhe que ao lado do negativo há o positivo; que, na experiência humana, há constante oscilação de bem e mal, justiça e injustiça, júbilo e miséria. E lembra-lhe que o seu castigo privou-lhe dessas vicissitudes e que isso lhe granjeou a possibilidade de ser o homem mais sábio de todos os tempos, um Fausto sem Mefistófeles; um Sócrates sem Xantipa e cicuta. Em resumo, o deus queria convencer o homem de que seu infortúnio, se visto desde um ponto de vista mais elevado, deveria ser lido como privilégio e graça.  

Mas o velho é inflexível. E torna-se tanto mais arredio quando descobre a identidade do interlocutor:

AHASVERUS -Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga?

PROMETEU - Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.

AHASVERUS - Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?

PROMETEU - Foi o meu crime.

AHASVERUS - Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.

Desvairado, ameaça o deus com uma nova punição:

“O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses”.

É a revolta não só do pessimista, mas do gnóstico, daquele que acredita ser o mundo obra de um deus sádico que desde o além delicia-se do nosso mal. 

Ora, até esse ponto, tudo leva a crer que que o errante morrerá assim: gnóstico, pessimista, um misantropo de papel passado, um Machado de Assis de vestibular. 

E vai nessa toada até que Prometeu, figura evidentemente cristológica — o criador dos homens, o servo sofredor que dá a vida pela criatura — lhe anuncia novos céus e nova terra. Mais ainda: antecipa que o velho será rei de uma nova humanidade; o rei eternamente glorioso de uma raça perfeita. O judeu vai cedendo na incredulidade:

“Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? Eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim”.

O entusiasmo abre alas à eloquência. Prometeu vai narrando as boas novas e o homem, antes apressado para a morte, passa a experimentar uma ânsia de vida: 

PROMETEU - A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.

AHASVERUS - Verei ainda este imenso céu azul!

PROMETEU - Olha como é belo.

AHASVERUS - Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...

PROMETEU - Auroras sobre auroras.

O velho cede. Ele, que de raiva já ia reatando Prometeu nos antigos grilhões de Vulcano, solta o deus e fica prestes a louvar-lhe, inebriado de suas palavras, de seu evangelho… 

Mas, no fim, era tudo sonho. 

Ahasverus, que dormia sobre uma rocha, desperta no mesmo fim dos tempos, em presença das mesmas águias. 

Todavia, o sonho o traiu. A inconsciência revelou — como sói fazer — seus anseios mais íntimos, suas esperanças profundas. As águias, como nas fábulas, conversam:

Uma águia - Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.

A outra - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.

*

Pode-se tirar muita filosofia deste conto ou mesmo desse arrazoado das aves. Para o nosso propósito, fica a conclusão:

O homem é pessimista e detesta a existência se se fecha neste mundo. Aberto à esperança da vida nova, a vida perfeitíssima do Céu, o sofrimento, a injustiça, o tédio, tudo se relativiza e se pinta de cores melhores. 

Ou poderíamos dizer: Salomão cura-se de suas angústias sentado diante do Mestre que diz amorosamente à multidão: “Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus…” 

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  1. Fábio Gonçalves é escritor e professor. Tem publicado obras para o público adulto e infanto-juvenil, além de materiais didáticos voltados para o ensino da língua portuguesa. Recentemente, lançou o romance Uma Negra Comédia   ↩︎
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