Educar com os clássicos: ainda é possível? – Parte 1/4

Por Fábio Gonçalves 1

O problema2

A pedagogia brasileira das últimas décadas deixou de fornecer aos alunos aquilo que sempre foi considerado o alicerce mesmo da boa educação: o domínio da linguagem. E por isso a inteligência nacional, ano após ano, tem se afundado nas brumas de uma espécie de era das trevas. 

Um estudo de 2015, intitulado Um século de ganhos no QI global: uma meta-análise do Efeito Flynn (1909-2013)3, conduzido por Jakob Pietschnig e Martin Voracek da Universidade de Viena, nos revelou um dado assombroso: dos 31 países investigados, com representantes de todos os continentes, somente no Brasil se constatou, nos últimos cem anos, uma queda no QI médio da população. 

E não se trata de problema socioeconômico. O Efeito Flynn, fenômeno identificado pelo psicólogo americano James R. Flynn, da Universidade de Chicago, indica que há um aumento progressivo no QI da população mundial na medida em que se vai melhorando as condições nutricionais e de acesso à renda. Entre 1901 e 2000, o PIB per capita no Brasil cresceu 12 vezes — de R$516 para R$6.056. Somos, portanto, o único país do mundo que ficou, a um tempo, mais próspero e menos inteligente.   

Os alunos brasileiros têm ocupado repetidamente as últimas posições nos testes internacionais, inclusive em matéria de linguagem. Nas avaliações internas, temos taxas apavorantes de analfabetismo funcional, que é a incapacidade de ler, com plenitude de compreensão, textos simples escritos na língua materna — e isso depois de longos e longos anos de estudos formais. 

Consequência disso, nossa produção acadêmica tem baixíssima relevância; nossa política, nossas leis e nossa justiça são feitas quase sempre por semiletrados; nossa literatura há tempos não nos dá gênios como os que, há menos de meio século, eram lidos e apreciados até pelas massas. 

Em um cursinho, ensinando redação a alunos provenientes de escolas públicas da capital de São Paulo, estado mais rico da federação, deparei-me com centenas de vestibulandos que não logravam construir uma única frase coerente — o que dirá um texto inteiro, como a prova demanda. Há defeitos elementares. Pecam na ortografia, na pontuação, na sintaxe fundamental, na semântica. Receberam, por alto, um modelo apostilar de dissertação, e só, é tudo; é a bagatela de conhecimento com que terão de se virar na faculdade, no trabalho, enfim, no curso de suas vidas. 

Tudo isso porque a pedagogia contemporânea, feita por um punhado de especialistas fechados em convicções sectárias, arredios ao debate, ciosos de seu exclusivismo que já vai beirando o totalitário, sonegou-lhes a base, o alicerce: o domínio da língua.

E essa interpretação do problema não é nenhuma novidade. 

Entre as décadas de 40 e 80 do século passado, o grande filólogo Gladstone Chaves de Mello, dos últimos cultores do idioma, militava obstinadamente por melhorias nos métodos escolares de ensino da linguagem. Escreveu livros neste sentido; falou na imprensa; fez o que lhe estava ao alcance. 

Advogava, o mestre, por um ensino da língua que escapasse dos macetes e regrinhas exigidos nos concursos públicos e vestibulares, e das garras de revolucionários que, em cátedras cada vez mais numerosas, iam convencendo estudantes, incluindo futuros professores, de que não se precisava absorver o legado da língua, que não carecia mostrar respeito e admiração aos escritores clássicos, que as normas eram apenas imposições tirânicas, e não produto de longa tradição, feita e refletida por literatos e gramáticos comprometidos com a construção e preservação do idioma.

Como alternativa a esse duplo erro, ele falava de um ensino da leitura e da escrita que tivesse como centro textos de alto valor literário, textos que deveriam ser frequentemente lidos, declamados, copiados e memorizados; textos dos nossos gênios que serviriam como matéria-prima para os estudos gramaticais, semânticos e estilísticos. 

Quer dizer, assistindo à nossa lenta e melancólica marcha ao precipício da ignorância, puxada por artífices de uma educação postiça, politiqueira e completamente desviada de suas finalidades originais, o professor Gladstone, não sabemos com que grau de consciência, sugeria que voltássemos ao método clássico de ensino da língua. 

A linguagem na educação clássica

Ferido em sua honra, Aquiles, o melhor combatente grego nos campos de Troia, retirou-se para sua tenda e recusou-se a continuar lutando sob as ordens de Agamenon, general que o havia traído e humilhado. 

Como os troianos de Heitor avançassem rapidamente, já ameaçando destruir as embarcações inimigas, Agamenon, em ato de desespero, enviou até Aquiles, a fim de com ele celebrar as pazes, uma comitiva de homens ilustres. 

Fazia parte do grupo um velho sábio de nome Fênix. 

Fênix foi tutor de Aquiles. Por muitos e muitos séculos preservou-se entre as famílias nobres o costume de deixar a formação dos seus filhos aos cuidados de um preceptor. Esse mestre, é claro, tinha que ele próprio ter as qualidades de um homem superior segundo as exigências de seu tempo. E, no tempo de Aquiles, era tido como excelente quem fosse, de uma só feita, irrepreensível nos combates e eloquente nas assembleias. 

É isso que Fênix relata ter ensinado ao seu pupilo. 

Esse diálogo consta no Canto IX da Ilíada, poema que inaugura a tradição literária do mundo ocidental.  

Mas, para os gregos, Homero não se tratava de literatura qualquer, dessas que puxamos da estante numa tarde preguiçosa para fins meramente recreativos. Otto Maria Carpeaux4, dos maiores críticos da história, ensina que os épicos homéricos — a Ilíada e a Odisseia — tinham para os gregos o valor sacro de Bíblia. E não é que fosse Bíblia no sentido de guardar a verdade revelada, ou de narrar episódios que equivalessem à Paixão de Cristo. Em termos de crenças e práticas religiosas, as fontes gregas eram mais ou menos dispersas, porquanto não houvesse um sacerdócio oficial de uma religião coerentemente organizada. Homero é Bíblia em termos de fonte de autoridade, em matéria de formação, de ensino de virtudes, de aspirações humanas mais elevadas. Eis aí a importância desse discurso de Fênix na tenda de Aquiles. 

O rei dos mirmidões, como já foi dito, era o principal guerreiro heleno nas terras de Príamo. Aquiles era a imagem do homem que possuía a areté (ἀρετή), termo que comumente se traduz por virtude. Era o arquétipo do homem virtuoso, o modelo a ser imitado pelos jovens que, como ele, quisessem em vida saborear as delícias da kléos (κλέος), a glória. E a fórmula para tornar qualquer jovem num Aquiles estava na Ilíada, na boca do velho sábio que forjara o herói. 

É verdade que estava ali de maneira pouco didática. Do texto, não se depreende toda uma pedagogia, um projeto educacional que se pudesse aplicar imediatamente. Mas havia um norte. 

A paideia (παιδεία), ou seja, a formação integral do homem conforme concebida pelos gregos, se se quisesse plena, deveria consistir na lapidação do corpo e da alma: a excelência do corpo ficando provada pela capacidade nos esportes e na guerra; a excelência da alma ficando atestada, por um lado pelas atitudes nobres e magnânimas, por outro pela capacidade de perceber, apreender e se exprimir — o que deveria ser feito com clareza e desenvoltura. 

Temos, portanto, pari passu com o aperfeiçoamento físico, a formação da linguagem na base mesma do ideal grego de educação, ideal esse que venceu os séculos e o espaço, e se tornou, com certas ressalvas, acréscimos e adequações, o ideal de todo o Ocidente, por muitos e muitos séculos.

  1. Fábio Gonçalves é escritor e professor. Tem publicado obras para o público adulto e infanto-juvenil, além de materiais didáticos voltados para o ensino da língua portuguesa. Recentemente, lançou o romance Uma Negra Comédia ↩︎
  2. Este artigo foi originalmente publicado no livro Domine a Arte de Ler. Em nosso blog, estará dividido em 4 partes para leitura, sendo esta a primeira. ↩︎
  3. PIETSCHNIG, Jakob e VORACEK, Martin. One Century of Global IQ Gains: A Formal Meta-Analysis of the Flynn Effect (1909–2013). In: Perspectives on Psychological Science, 2015, Vol. 10(3) 282–306.
    ↩︎
  4.  CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol 1: A Antiguidade Greco-Latina. São Paulo: Leya, 2012.
    ↩︎

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