Educar com os clássicos: ainda é possível? – Parte 2/4

Por Fábio Gonçalves1

Vimos na primeira parte desta série que a raiz do problema educacional brasileiro está na negligência ou na deficiência do ensino da linguagem, aspecto da formação humana que, desde a antiguidade grega, foi sempre tomado como fundamental.

Vejamos agora como o método clássico de ensino da língua se consolidou no mundo helenístico e tornou-se a base das chamadas artes liberais

Educação helenística: a hegemonia da palavra

Werner Jaeger, no seu clássico Paideia2, ensina como de época a época, dentro do mundo grego, a ideia de areté (virtude) foi ganhando novos significados. Veja-se que de Aquiles, em Homero, ao sábio contemplativo de Aristóteles vai enorme diferença. É que tanto as vicissitudes históricas foram exigindo certo tipo em detrimento de outro, quanto a compreensão mesma sobre as possibilidades humanas, a partir dos filósofos, foi ficando mais aguçada. 

No fim desse processo, a areté aristocrática de Homero e Tirteu, bem como a filosófica de Platão foram, em parte, vencidas pelo ideário de Isócrates, homem que ensinava retórica na Atenas do século IV, e que reunia em torno de si uma porção de jovens ricos ansiosos para adquirir o poder mágico da palavra, tão caro a quem quisesse prevalecer na acirrada Praça Pública e no Areópago. 

Quando, na geração seguinte, o mundo da pólis foi devastado pela avalanche imperialista de Filipe da Macedônia, essa educação, cuja finalidade era formar oradores prontos para o debate, embora tenha perdido sua finalidade prática mais imediata, pois a atividade política das cidades entrara em profundo declínio, ganhou em termos de refinamento, de definição de contornos. Já na aurora do helenismo, que foi a expansão do mundo grego até a Índia pelas armas e cavalos de Alexandre, fixou-se o modelo de ensino, com seus métodos e finalidades, que prevalecerá por séculos e séculos em todo o mundo Ocidental. Surge aí o que ficará conhecido como Educação Clássica. 

Diz Henri-Irénée Marrou3

“Somente a partir da geração seguinte à de Aristóteles e Alexandre o Grande a educação antiga se torna verdadeiramente uma educação, que atinge sua forma clássica e, em suma, definitiva." 

E continua a explicar o caráter menos cavaleiresco e político que erudito, ou, mal dizendo, mais intelectual e enciclopédico dessa perspectiva de ensino que se vai cristalizando:

[...] No decorrer dos séculos seguintes, a educação clássica acabará de perder muito do que podia restar do seu caráter nobre [...]; o papel da cultura física continua a apagar-se progressivamente (não, aqui e acolá, sem atrasos e resistências) em proveito dos elementos propriamente espirituais, e, no interior deles, o aspecto artístico e notadamente musical cede definitivamente passo aos elementos literários: a educação, embora permanecendo acima de tudo moral, torna-se mais livresca e, por consequência natural, mais escolar [...]”.4  

Com esse enfoque literário, cujo fim era fazer do jovem amplo conhecedor de seu idioma e da cultura na qual estava inserido, essa educação das cidades helenísticas, espalhadas pelo Oriente Médio, Egito e Grécia, tinha as duas primeiras fases iniciais especialmente voltadas para o domínio da linguagem.

Ensino primário

Por volta dos sete anos a criança era iniciada nas letras. Decorava o alfabeto, as sílabas, memorizava nomes de heróis, de sábios, de lugares. Depois, por meio de trechos separados em pequenas antologias, fazia os primeiros contatos com os escritores. E copiava os textos, os decorava, trazia uma porção deles na cabeça, desde cedo modelando suas formas de expressão com base nos melhores exemplos. Também precisava recitar de cabeça, com boa prosódia, as passagens estudadas. Ainda nessa etapa aprendiam os rudimentos de escrita. 

Ensino secundário

Toda essa fase inicial servia de preparo aos estudos secundários. Aí o adolescente ficava aos cuidados do gramático, mestre que se incumbia de iniciar os pupilos, de modo mais definitivo, nas letras e na alta cultura. Era tempo de ler, com atenção: Homero, Esopo, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Menandro, Aristófanes, Heródoto e uma porção de outros. 

Procedia-se a leitura minuciosamente comentada desses autores célebres. O professor esmiuçava os pormenores do texto, iluminava o que numa primeira lançada de olhos parecia obscuro, destrinchava o emaranhado sintático, explicava as figuras de linguagem, dava, no ato mesmo, os fundamentos da gramática, da semântica, e algo da estilística. Mais do que isso: era momento de o mestre introduzir os jovens no que havia de mais elevado naquela civilização, coisa que se fazia pela explicação de mitos, narração de biografias, alargamento do horizonte de referências históricas, geográficas, filosóficas e religiosas. 

Na desembocadura do método, tinha-se a interpretação moral, onde se esclarecia as virtudes de tal personagem, a beleza de tal ação, o sentido alegórico de tal passagem, as lições que os poetas, ainda que de modo simbólico, haviam ali deixado.

Após alguns anos assimilando as formas mais sofisticadas da língua e os elementos fundamentais da cultura — ficando o jovem, portanto, habilitado a ler e a imitar os clássicos —, depois disso, e também de tomar lições, parece que em menor grau, de geometria, aritmética, astronomia e música, ele, enfim, podia avançar aos estudos mais aprofundados dos vários ramos da ciência em voga.

Gramática: a arte de estudar os poetas

Ao longo de toda a história da pedagogia Ocidental veremos a aplicação desse mesmo método. Se os séculos vão fazer alterar-se alguma coisa na sistematização, nos meios e nos objetivos, a base permanecerá essencialmente a mesma: o domínio da linguagem e a inserção cultural por meio da leitura, análise e imitação dos principais poetas e prosadores. 

Quando no século II antes de Cristo, em finais do período helenístico, surgiu a primeira gramática grega, Dionísio, o Trácio, famoso autor da obra, definiu a matéria nos seguintes termos: 

“A gramática consiste no conhecimento do que é dito, sobretudo pelos poetas e prosadores. São seis as suas partes: primeira, leitura cuidadosa de acordo com a prosódia; segunda, explicação das figuras poéticas; terceira, interpretação, em termos usais, de palavras raras e de argumentos; quarta, busca da etimologia; quinta, exposição da analogia; sexta; crítica dos poemas, que é a parte mais bela da gramática”.5

A definição mesma de gramática pronunciava um método e uma finalidade: o método era a leitura pormenorizada e comentada dos clássicos da literatura; a finalidade era o conhecimento profundo desses mesmos escritos. 

Mais tarde, já no século II depois de Cristo, no seio do Império Romano, o alexandrino Apolônio Díscolo, em sua obra Sintaxis, traçou com as seguintes linhas esse campo do conhecimento:

“Nos estudos anteriormente publicados, tratou-se, conforme a razão exigia, da doutrina relativa às palavras (o que, hoje, chamaríamos morfologia). A exposição presente compreenderá as construções possíveis com essas palavras tendo em vista a coesão da oração perfeita, o que me propus a explicar com todos os detalhes por ser da mais absoluta necessidade para a interpretação dos poemas”.6

“Para a interpretação dos poemas”. Do mesmo modo que a compreensão mais simples das palavras (morfologia), o entendimento das frases (sintaxe) se destinava à leitura e interpretação ótima dos grandes textos literários.

Educação da linguagem em Roma

Filhos espirituais da Grécia, os romanos tomaram de empréstimo, dentre tantas outras coisas, também a poderosa pedagogia helenística. 

Após uma série de adequações e arranjos, inclusive na criação de um cânone literário que inexistia até que o grego Lívio Andrônico, no século III a.C., vertesse Homero para o latim, Roma conseguiu pôr em funcionamento um modal de ensino que imitava à perfeição os procedimentos e objetivos da escola grega. Escreveu Marrou: 

“O ensino do grammaticus Latinus é, quanto aos métodos, o equivalente exato de seu confrade grego. Ele apresenta os dois aspectos característicos da gramática helenística [...] o estudo teórico da boa língua e a explicação dos poetas clássicos”.7

Daí em diante surgem os tratadistas, os estudiosos, os compiladores do novo conhecimento, os produtores de materiais didáticos. 

No século I a.C., Marco Terêncio Varrão dá aos romanos a primeira organização do ciclo de estudos que mais tarde receberá o título de Artes Liberais, conjunto de disciplinas — no caso de Varrão, nove — com as quais os jovens deveriam se ocupar, por vários anos, caso quisessem atingir uma formação moral e intelectual de excelência, e também se capacitar a ofícios mais nobres, como o direito, a medicina, a arquitetura.

No sopé dessa montanha de saberes achava-se a Gramática. No andar de cima, havia a Retórica, novamente prestigiada na República Romana do Fórum e do Senado. Dali subia-se ao patamar da Dialética. O trivium, as três vias, três disciplinas sucessivas destinadas ao domínio pleno da linguagem, pedagogia que já se insinuava na Grécia das pólis, ganhava aí sua expressão definitiva — depois consolidada, entre os séculos IV e V d.C., no poema alegórico didático As Núpcias de Filologia e Mercúrio, de Marciano Capella8.   

Já ostentando seus próprios poetas e prosadores de escol, um Virgílio, um Terêncio, um Cícero, os estudos da linguagem progridem nos fins da Roma Imperial, entroncamento com a Idade Média, e surgem aí algumas das gramáticas latinas clássicas que servirão como base de pesquisa e material de ensino na Europa cristã em nascimento: tem-se a Ars Minor e Ars Maior de Élio Donato, As Instituitiones Grammaticae de Prisciano, a Expositio Psalmorum de Cassiodoro.

Todas essas obras, é importante dizer, ainda que diferentes nos enfoques e propósitos, preservavam o entendimento de que a gramática era a arte e a ciência destinada à compreensão e imitação dos clássicos. Diz Cassiodoro:

"Gramática é a habilidade de falar elegantemente obtida do estudo de poetas e escritores famosos; sua função é compor em prosa e verso sem falhas; sua finalidade é agradar pela habilidade impecável da fala ou da escrita polida."9

  1. Fábio Gonçalves é escritor e professor. Tem publicado obras para o público adulto e infanto-juvenil, além de materiais didáticos voltados para o ensino da língua portuguesa. Recentemente, lançou o romance Uma Negra Comédia  ↩︎
  2. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
    ↩︎
  3. MARROU, Henri-Irénée. A História da Educação na Antiguidade Clássica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973. ↩︎
  4. Ibidem.
    ↩︎
  5.  DIONÍSIO, O TRÁCIO. Gramática. Madrid: Editorial Gredos, 2002.
    ↩︎
  6. APOLONIO DÍSCOLO. Sixtasis. Madrid: Editorial Gredos, 1987. ↩︎
  7. Ibidem.
    ↩︎
  8. No caso, ele apresenta sete, não nove Artes Liberais: além do trivium, trata também do quadrivium, disciplinas que se ocupam do mundo sob o aspecto das quantidades, movimentos e proporções, as já mencionadas geometria, aritmética, astronomia e música.
    ↩︎
  9. CASSIODORUS. Institutions of Divine and Secular Learning and On the Soul. Liverpool: Liverpool University Press, 2004.
    ↩︎

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