“Assim viveu Brás Cubas”, por Ricardo Matheus Gomes Botelho

Tarefa ingrata é eleger dentre os clássicos já publicados pelo Clube aquele que merece tal destaque que a sua leitura se impõe – numa ordem de preferência – sobre as demais. Apesar disso, para que eu não incorra no campo comum daqueles que respondem: – Bem, todos devem ser lidos, tomo a liberdade de eleger aquele livro que, a meu ver, melhor traduziu a forma mentis brasileira; apresenta-se como uma legítima herança ao Brasil testada pela pena e eternizada pela tinta de um dos homens que fincou a bandeira brasileira no solo dos imortais da literatura universal: Machado de Assis.

Adianto que a minha interpretação sobre certos aspectos do enredo são, por óbvio, fruto de um juízo subjetivo que pode não encontrar ressonância numa maioria de opiniões, estas igualmente subjetivas. Busco, porém, arrimo na lição do Poeta que inaugurou as edições deste Clube: penso que tais obras – que alcançaram o status de clássicos – em sua maioria não têm um sentido simples, mas plúrimo “o primeiro é o que se tem da própria letra, e o outro, o que tira o seu sentido daquilo que se diz pela letra. O primeiro chama-se literal, e o segundo, alegórico ou místico”. Destaco, pois, que dentre os quatros sentidos superpostos apontados por Dante, focar-me-ei no sentido moral para fundamentar o porquê o livro que eu escolhi deve ser lido.

Anotado isso, à primeira questão respondo: não pode deixar de ser lido Memórias Póstumas de Brás Cubas. À segunda questão, para a qual dedicarei os próximos parágrafos, pontuo que não o destaquei dentre os demais livros por ser ele o mais relevante, mas, repito, porque dentre todos os publicados, ele é talvez o de maior relevância ao brasileiro, menos por um critério nacionalista que por um estudo das cenas da vida brasileira.

A propósito das cenas da vida brasileira, cogitei em falar sobre as Recordações do Escrivão Isaias Caminhas de Lima Barreto, pois, sob certo aspecto, pareceu-me pintar um quadro mais amplo, porquanto a realidade de Isaias assemelha-se – ao menos materialmente – a maioria dos brasileiros. Embora ele tenha sido preterido, permita-me indicá-lo para leitura, sem contrariar a regra imposta de eleger “o livro”.

Ao cabo, porém, escolhi-o porque, além de retratar bem a cena da vida brasileira, há um desenho fiel da miséria humana e do seu comportamento: o leitor que se aventura pelas memórias do de cujus faz proveitosa visita a alguns dos acidentes do pecado humano pelos quais o protagonista passou em vida (orgulho, adultério, soberba, etc.) com a profundidade exigida em cada qual. É como um passeio guiado aos pontos turísticos da miséria da alma.

A fim de dissipar eventual névoa que encubra o sentido dos meus argumentos suso indicados, sou obrigado a esclarecer que não delimito geograficamente as memórias do finado Brás Cubas às fronteiras do Brasil, até porque ele mesmo pontuou que em suas memórias “só entra a substância da vida”, isto é, há aí uma universalidade e não a substância da “vida brasileira”. Penso que lê-lo contrariando essa premissa, seria como um vilipêndio aos seus devaneios póstumos ou seriam póstumos devaneios ou as duas coisas? bem, o falecido não se olvidou de relatar “o seu próprio delírio”.

Aliás, não que o defunto esteja se importando com o olhar da opinião que se estende ao território dos mortos, até porque ele mesmo sentenciou que “não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

Posto se tratar de memórias ornadas de universalidade, tem ao brasileiro um gosto especial, pois aquilo que é feito em casa sempre nos desperta o melhor dos sentimentos, mesmo nas almas mais contraditórias, a exemplo do aprendiz de niilista Arkádi Nikoláitch que, ao retornar à terra onde nasceu depois de um longo período distante de casa, experimenta tamanho prazer sensorial que o faz exclamar aos céus “não há lugar no mundo que cheire tão bem como aqui”. Pois bem, se indiquei um, indico dois: vale a leitura esse romance editado pelo Clube.

Todavia se aquele que me lê é como Arkádi que não admite a si o extraordinário sentimento causado pelos ordinários adornos do lar, talvez se convença o leitor ao saber que, por se tratar das memórias de um defunto, temos na obra a exposição franca e o realce da mediocridade de um homem. Com efeito, trata-se de um defunto desatado das amarras do “olhar agudo e judicial” da plateia, agora no domínio da morte e distante da turba vem experimentando uma liberdade que não tinha em vida; aquelas revelações que fazemos à consciência, mas não as estendemos ao mundo, são aqui expostas sem maiores embaraços e delas podemos tirar algumas valiosas lições enquanto ainda vivos.

Conquanto o finado Brás não nos revele os detalhes do post mortem em si – objeto de curiosidade e fantasia de todo o gênero humano – ao menos compartilha conosco uma das virtudes que o indivíduo adquire ao pisar no domínio da morte: a franqueza.

Sem maiores rodeios, vamos ao nosso protagonista: em vida, foi homem medíocre; não foi mau, nem imoral, mas um mediano. Alcançou na morte o que passou longe em vida. Nesta, bacharelou-se em direito, sendo atestado pela Universidade, em pergaminho, numa “ciência que [ele] estava longe de trazer arraigada no cérebro”; conquistou o epíteto de Folião durante a formação acadêmica, haja vista a sua afetação à boêmia.

Ora, caso nosso herói fosse tentado por Mefistófeles, sua história teria fim já na primeira tentação na Taberna de Auerbach em Leipizig: ter-se-ia deixado laçar pelos desvarios da folia dos universitários e certamente tentaria reaver seu epíteto de folião, afinal admitiu o próprio defunto que era ele desejoso de “prolongar a Universidade pela vida adiante…” sem se dar conta que “o diabo esses rapazes nunca sentirão, embora os tenha já na mão”.

Não quero que o leitor me entenda mal, não estou a dizer que o finado Brás é menor que Fausto. Este apenas era mais apaixonado e ostentava um espírito interessado na Verdade; aquele, lado outro, teria o azar da pândega ser o principal e mais óbvio ópio da alma humana. Além disso, confesso que a comparação é injusta, pois no momento da tentação um já tinha a fronte marcada pelo tempo ao passo que o outro ainda estaria na mocidade e, como naturalmente se espera dessa época da vida, o “problema da vida e da morte” nunca está na ordem das ideias.

Não digo que o falecido não tenha passado de estroina a circunspecto quando mais velho e na velhice pudesse resistir aos encantos do Diabo, contrariando, assim, o senso de que o sexagésimo aniversário inaugura “época na qual raramente os homens modificam suas crenças”; parece-me que o senso não se aplica aos mortos.

Parece-me que na apresentação do extrato de sucessos e fracassos, o de cujus apôs como saldo negativo a ausência de filhos: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, deixando de ouvir a canção do tolo e tomando consciência de que, podendo, não cumpriu com o mandamento de “crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra e sujeitai-a”.

Dobro a aposta, porém, de que a possibilidade de reatar os anos de pândega e reivindicar o epíteto outrora ostentado sê-lo-ia irresistível ainda sexagenário.

Dizia, pois, que foi um homem medíocre, não tem lá as inclinações filantrópicas de um Santo Aleksei Karamázov que “se lhes caísse nas mãos uma grande fortuna, não hesitariam em oferecê-la à primeira pessoa que lha pedisse”. Ao revés, não se constrangeu em diminuir de três moedas de ouro – das cinco que trazia consigo – para um cruzado de prata a recompensa que julgou justa ao almocreve que lhe acudiu. Se a ocasião lhe permitisse achar no bolso alguma moeda de cobre, o finado ter-lho-ia dado. Vou além, tão mais feliz seria se ao meter as mãos na algibeira a encontrasse vazia, dando como paga ao almocreve tão somente uma palavra de agradecimento.

Novamente, porém, a comparação é injusta, porque enquanto aquele faz parte da casta dos “tolos de Cristo”, Brás foi apenas um rapaz latino-americano e não há nada de errado nisso. Aliás, o seu mérito está justamente nessa simplicidade: apresenta-nos um estilo genuinamente brasileiro, é engraçado e erudito na medida certa. É um reflexo do seu autor, afinal.

Em verdade, Brás está mais para um Fiódor Pávlovitch Karamázov temperado e decotado da volúpia extremada – lembre-se, nosso protagonista é todo mediano – com a diferença de que este último teve o sobrenome Karamázov remido de toda a infâmia, justamente pelo seu terceiro legado, Aliocha, o qual, contrariando as expectativas de ter herdado todo o legado da miséria do pai, discursou à nova geração junto à pedra e, pela primeira vez, fez entoar em coro honrosamente o sobrenome Karamázov.

Definiu o Doutor Comum que “a justiça é o hábitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito”. Desse modo, após duas comparações injustas, nada mais justo que tentar dar ao defunto o seu quantum debeatur. Esclareço, portanto, que quando eu o chamo medíocre, não estou a desdenhá-lo. Em ato, foi medíocre. Em potência, porém, está entre os grandes e digo o porquê.

A propósito, optei deliberadamente por escolher a definição formulada por Tomás de Aquino, porque o defunto, em delírio, viu-se “transformado na Summa Theologica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampa”. Se “a ocasião faz o furto”, não pude deixa-la passar.

Despertou-se, após a morte da mãe, à “volúpia do aborrecimento”, sobre a qual não vo-lo direi, mas opto por provocar o leitor para que abra o livro e a busque por conta. Fato é que essa sensibilidade não o tornou poeta, tampouco se estendeu para além das fronteiras da sua própria consciência, ao menos em vida… foi sensível in potentia, et non in actu.

Disputou a paixão, dividindo-a em duas fases: “teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma… o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana”, morreu, contudo, sem um grande amor… amou in potentia, et non in actu.

A disputa acima descrita, porém, foi travada a altura da idade na qual os rapazes forçam converter o buço em bigode. O objeto da disputa foi Marcela, prostituta. Amou-a a seu modo. Tentou convencê-la a fuga do prostíbulo, mas não lha logrou e desiludiu-se. Anos mais tarde, contudo, a reencontra com o “rosto amarelo e bexiguento”, despida da sensualidade de outra época.

Ao modo brasileiro, Marcela é uma Emília de Fontaine e Brás um Maximiliano Longueville ambos às avessas, mas o reencontro entre ambos se equipara ao retorno deste último titulado par de França, com as adaptações brasileiras de estilo: despida da pompa, posto igualmente impactante, é menos dramática com temperos de comédia.

Ressalva justa seja feita em favor de Marcela. Esta, pela maturidade e malícias precocemente exigidas pelo estilo de vida, anteviu que seus defeitos, à época ainda eclipsados pela beleza da mocidade e pela sedução do seu brilho, seriam descortinados à primeira luz da idade mais avançada: era a velhice entrar pela porta e Brás sair pela janela.

Ruminou um sem-número de filosofias: das botas apertadas, concluiu que “são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata”, mas não se tornou filósofo… buscou a verdade in potentia, et non in actu.

Descortinou o que convencionou chamar de “solidariedade do aborrecimento humano”, movimento pelo qual, a partir de uma força impulsiva, seria possível fazer se tocar os extremos sociais, algo próximo à teoria dos seis graus de separação, sem, contudo, tornar-se sociólogo… leu a sociedade e suas relações in potentia, et non in actu.

Refletiu, ainda, sobre o destino do nariz e concluiu que o nariz é em si uma força capital e serve “para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades”. Eis a lição de que cada qual deve cuidar do próprio nariz.

Falou com propriedade sobre “a conjunção de luxúrias vadias” e sobre ela reservo algumas linhas. Franz Kafka retratou com excelência o moderno fenômeno da burocratização da vida privada e inovou ao traduzi-lo para o campo literário. Legou-nos um desenho da – à época – incipiente judicialização da vida privada, onde a esfera privada passou a ser constantemente considerada a partir dos mecanismos da vida pública, tão bem retratada na obra O Processo. Se indico dois, indico três: também vale a leitura.

Nesse sentido, Kafka apontou-nos o fenômeno ao passo que Brás descortinou a causa: eis aí a infame Conjunção de Luxúrias Vadias. Expostas as linhas, permita-me atar o nó.

Dona Plácida – mulher paupérrima, afeita às crendices populares, de tal modo que não poderia “ver um sapato voltado para o ar”, a quem o falecido aproveitou-se da miséria para convertê-la em cúmplice da sua luxúria – confidenciou sua sofrida história de vida ao protagonista. Sozinho o falecido chegou à seguinte conclusão:

Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.

Fruto de um romance reto, sem profundidade; produto de uma satisfação de lascívia; de uma troca de fluídos; trazida ao mundo para compartilhar a miséria da vida com os autores de seus dias – e não me refiro necessariamente à miséria material, embora Brás esteja a ela se referindo, mas sim à moral.

Tem-se aí a causa do fenômeno retratado por Kafka: em razão dessa liquefação nas relações sociais, as famílias expõem-se às intrusões de uma “Autoridade” – equidistante e imparcial – que, substituindo o abrigo ideal da intimidade familiar onde as decisões deviam ser tomadas, em seu lugar passa a tomar as decisões pela família. Um estrito exercício de jurisdição: substitui a vontade da família pela sua vontade. Um breve cotejo no volume de demandas de família em trâmite na justiça brasileira, amplamente divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça, é o bastante para constatar a infeliz realidade, cuja causa o protagonista identificou.

No fim, é um jogo ganha-ganha: ganha o casal que conjuga suas luxúrias e terceiriza a responsabilidade dos seus atos ao experimentar suas consequências. Em seguida, culpam-se uns aos outros ou unem-se na culpa e jogam-na a terceiros – à vida, à sociedade, à terra, ao sol; ganha o estado, com números para se autopromover.

Pudesse eu humildemente complementar, diria para que não percamos de vista o Prólogo no Teatro de Fausto: “E muita ação! É o que mais se requer! Vem ver a gente, e ver muito é o que quer. Se apresentardes quantidade à vista, para que se encha a multidão de pasmo, fareis também de muitos a conquista: amar-vos-ão com entusiasmo. A massa só se empolga pela massa”.

Pois bem, o falecido identificou a causa do que viria a ser um fenômeno jurídico moderno, mas nem por isso se tornou jurista… in potentia, et non in actu. Em síntese, foi homem mediano e em nada alcançou a excelência, nem na vida política que escolheu seguir: diplomou-se deputado, mas não logrou o ministério nem a reeleição.

Se a essa altura o leitor ainda não se convenceu do valor da obra, arrisco alguns argumentos utilitaristas: posto os numerosos capítulos, são curtos, pois “capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem… não, não nos alonguemos o capítulo”.

Além do formato pequeno do livro, o protagonista é homem prático, que descortinou sua potência aos leitos de suas memórias, porém resumiu seu ato a decorar fórmulas, esqueletos, embolsar “três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para despesas da conversação”, em suma, o bastante para o homem prático com alguma inclinação intelectual.

Não fosse suficiente, o autor remete-nos a capítulos anteriores ou quando quer atar ideias distantes entre si, no melhor estilo “relede o capítulo tal”, “se o leitor lembra do capítulo tal” e et cetera, ou quando quer arrematar reflexões outrora iniciadas. Aproveite a obra sem qualquer mediação, pois foi escrita no nosso vernáculo.

Em suma, trata-se de um tesouro brasileiro que mesmo quando lido no sentido mais superficial – o literal –, diverte. Se, porém, lido camada por camada, percebe-se fácil o porquê da sua vitória sobre o tempo e justifica sua posição entre os universais. Um legítimo estudo dos costumes, de uma filosofia social. Encontramos aí um homem completamente exposto, desatado das hipocrisias sociais, expondo o íntimo de sua consciência.

Total
0
Shares
Anterior
“Por que ler Hamlet?”, por Letícia Rafaela Baeta Neto

“Por que ler Hamlet?”, por Letícia Rafaela Baeta Neto

O rei está morto

Próximo
“A Redenção pelo Sofrimento: Por que ler Crime e Castigo?”, Por Thamara Chaves

“A Redenção pelo Sofrimento: Por que ler Crime e Castigo?”, Por Thamara Chaves

Entre os livros editados pelo Clube de Literatura Clássica, “Crime e

Você também pode gostar
Total
0
Share