capitu dança com bentinho, traiu?

Faz diferença saber se Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

Dom Casmurro, publicado em 1899, costuma ser lembrado como um mistério sentimental: Capitu traiu ou não traiu? Essa pergunta, no entanto, parece deslocar o eixo da obra de seu ponto central. Porque o que está em jogo no romance não é necessariamente a fidelidade de uma personagem, e sim o poder de um narrador, e de como ele consegue desviar a atenção do problema real para uma discussão menor. 

O que Dom Casmurro ensina, antes de tudo, é que a literatura, além de reproduzir a realidade, tem poder para reorganizá-la. E o responsável por essa reorganização é o escritor. No caso de Dom Casmurro, Machado dá este poder nas mãos do narrador.

A questão fundamental não está, portanto, no suposto adultério, mas na vontade de transformar uma vida em narrativa, de tentar encontrar, melhor dizendo, a narrativa de sua própria vida. 

Capitu, Escobar, José Dias, Dona Glória, todos os personagens existem apenas dentro da versão apresentada por Bento Santiago, e essa versão, desde a primeira página, é construída com um propósito claro: escrever para se justificar. Sua pena se move pelo esforço de quem, já velho e sozinho, tenta recuperar o fio da meada sobre uma história que já não conhece mais.

Ao contrário do que acontece nos romances de formação europeus, em que o protagonista narra sua vida como uma trajetória de amadurecimento e autoconhecimento, Bento escreve para reafirmar e confirmar uma suspeita. O relato parece ser escrito como um documento de provas como uma vítima. E se há algo de religioso nisso, não é o perdão, e sim o julgamento. 

Bento finge investigar e narrar tudo com a calma de quem conduz uma peça em que todos os elementos já estão dispostos a seu favor. A serenidade que exibe ao longo do romance não é bem a da paz interior, antes a da vitória narrativa, já que é ele quem controla tudo. 

Esse controle se dá sobretudo pela linguagem. A prosa de Dom Casmurro é feita de recortes, digressões irônicas, frases que se desdizem no momento seguinte. O narrador interrompe a si mesmo, duvida do que acabou de afirmar, acrescenta explicações supérfluas, e por aí vai. 

E com isso vai sugerindo ao leitor que não há necessidade de contestar o que está sendo dito. Cada capítulo opera como uma pequena armadilha de simpatia. O leitor é seduzido pela inteligência do estilo, pelo tom íntimo das confidências. Mas esse jogo de charme tem função estratégica. E quando, enfim, chega à cena decisiva, a do suposto olhar entre Capitu e Escobar, já não sobra mais espaço para duvidar. O leitor, ainda que relutante, foi conduzido até ali por uma narrativa que tornou o ciúme plausível.

Esse controle, essa obsessão, esconde um problema ainda maior que a suposta traição de Capitu. Bento, de tanto chafurdar na lama de insegurança que percorre seu espírito, perde o fio condutor de sua própria história. Ora, que sujeito normal construiria, já adulto, uma casa idêntica à que cresceu? Que escreveria um livro inteiro de memórias com tom ressentido e rancoroso contra a própria esposa, e até o próprio filho?

A estrutura do romance, sob esse aspecto, é uma excelente demonstração do poder da ficção. A escrita aparece como ferramenta de manipulação da memória e dos sentimentos. Bento mente ao dizer que está apenas contando o passado; ele está reescrevendo-o. E é nessa reescrita que se manifesta o talento maligno de seu estilo. Ele prepara o terreno lentamente para que o leitor conclua por conta própria aquilo que ele deseja que se conclua. E vai se perdendo ao longo de suas próprias invenções.

A literatura de Machado, nesse sentido, leva às últimas consequências a ideia de que escrever é reorganizar a realidade, e em Dom Casmurro essa ambiguidade está na própria relação entre leitor e narrador. Cada frase escrita por Bento Santiago parece estender a mão ao leitor ao mesmo tempo em que esconde um objeto na outra. Há charme e contenção, confiança e dissimulação. O texto se constrói como um jogo de espelhos, em que o leitor, ao procurar o rosto da verdade, vê apenas traços da mentira.

O narrador como criador da ambiguidade

Desde as primeiras páginas de Dom Casmurro, Bentinho adota o tom de quem precisa se justificar. Ao afirmar, logo no segundo capítulo, que não dirá se houve ou não adultério, ele anuncia a atmosfera que atravessará o livro inteiro, uma combinação de sugestão e isenção, em que a aparência de sinceridade encobre uma estratégia literária muito precisa. 

Bentinho escreve como quem rememora um passado bom e distante de sua vida, mas conduz suas lembranças com a habilidade de um advogado que escolhe cuidadosamente os fatos que deseja apresentar ao júri — um advogado que, igualmente, não leva em conta a verdade dos fatos, apenas aquilo que o beneficiará.

Sua posição de memorialista, que parece casual ou até melancólica, oculta um controle rigoroso sobre o que é lembrado e sobre o modo como a lembrança é organizada. A memória, em seu relato, nunca aparece como uma ferramenta neutra, mas como instrumento maleável, moldado por ressentimentos e afetos antigos que ainda o perseguem. 

Cada capítulo curto, cada digressão inesperada, cada interrupção no fio da narrativa contribui para criar um efeito de hesitação, como se a história avançasse sem sair do lugar, girando em torno de um núcleo que o narrador se recusa a encarar diretamente. Bento prova, na forma com que conta do seu passado, que realmente perdeu o fio da meada.

A estrutura do romance reforça essa impressão. Em vez de uma cronologia firme ou de um argumento bem traçado, o que encontramos é um percurso feito de desvios, correções, interjeições e comentários laterais, em que o avanço da narrativa importa menos do que o modo como ela é conduzida. 

O que parece improviso revela-se cálculo. Bentinho escreve como quem compartilha lembranças, mas constrói, com precisão, uma defesa emocional em forma de livro, sem se importar muito com a realidade, ou com a sua própria sanidade.

A linguagem acompanha esse movimento. O narrador hesita, se contradiz com elegância, emprega expressões modestas que disfarçam seu desejo profundo de ser compreendido, se não perdoado. Ao narrar, não procura compreender o outro, compreender Capitu, Escobar, ou quem quer que seja, apenas convencer o leitor de que suas impressões, por mais ambíguas que sejam, sustentam uma verdade emocional.

Capitu e a arte da sugestão

Capitu, embora central no enredo de Dom Casmurro, permanece quase inteiramente silenciosa. Tudo o que sabemos dela nos chega através de Bentinho, e é justamente esse filtro que transforma Capitu em uma figura ambígua. Ela é construída como uma espécie de ausência, mas uma ausência que ocupa o centro do romance.

Ao descrever Capitu, Bentinho recorre constantemente a metáforas ambíguas. Fala em “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, compara-a ao mar, a esfinges, a criaturas mitológicas. Esses recursos, que poderiam sugerir fascínio, operam antes como sinais de desconfiança. Ele retira de Capitu qualquer traço concreto, substituindo o rosto por um conjunto de imagens sedutoras e inquietantes. Assim, ela se torna um espelho em que o narrador projeta sua insegurança.

Não há um momento decisivo em que o leitor possa confirmar ou negar a suposta traição. O romance não apresenta provas concretas. E mesmo as suspeitas mais fortes não se baseiam em fatos objetivos, mas em suspeitas cotidianas. 

Quando Escobar morre, por exemplo, o olhar de Capitu em direção ao cadáver é descrito como um olhar de forma “fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas”, e Bentinho, décadas depois, interpreta esse olhar como confissão, quando pode ter sido muito bem um mero olhar de tristeza natural pelo falecimento de um amigo.

O mais revelador, talvez, é que Capitu nunca reage com indignação, até o fim da história. Não briga, não confronta, não tenta desfazer o mal-entendido. Sua passividade até funciona como uma provocação silenciosa, e faz com que o leitor se pergunte por que ela não se defende, ao mesmo tempo que desconfia da narrativa que a acusa. 

Nesse jogo, Capitu escapa de Bentinho e do leitor. Qualquer tentativa de defini-la resulta numa nova metáfora, numa nova imagem que a afasta de uma verdade única.

Uma longa justificativa de si mesmo

No fim de Dom Casmurro, a pergunta sobre a traição de Capitu deixa de importar. O que realmente chama atenção é o que acontece com Bentinho enquanto escreve suas memórias. Ele começa tentando dar sentido à própria história, mas termina preso dentro dela. Em vez de organizar a memória, ele se embaraça com ela; em vez de encontrar respostas, constrói um labirinto.

Aos poucos, o livro deixa de ser um relato sobre outra pessoa e se transforma numa longa justificativa de si mesmo. A escrita, que poderia servir para esclarecer as coisas, vira um modo de fugir da realidade. O que era para ser uma busca pela verdade acaba se tornando uma obsessão por controle. E quanto mais ele tenta convencer, menos parece compreender o que viveu.

Bentinho perde Capitu, mas perde também a si próprio. Aquela casa que reconstrói, idêntica à antiga, não é um ato de nostalgia. É um sintoma. Ele tenta reviver um tempo que não existe mais, como se pudesse refazer a juventude e corrigir o passado com palavras. Mas tudo o que consegue é repetir, em voz cada vez mais baixa, a mesma dúvida que nunca soube enfrentar.

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Por Bernardo Lins

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