Por Diego Grando1
Victor Hugo, em 1862, é um autor célebre e figura pública incontornável, e há motivos de sobra para isso: intelectual atuante, político que acabou exilado (desde 1851, primeiro em Bruxelas, por um ano, depois na ilha de Guernsey, de onde só retornaria à França em 1870), Hugo já havia ocupado a linha de frente do movimento romântico francês, sobretudo pela polêmica gerada por duas de suas peças de teatro, Cromwell (1927) e Hernani (1930), cujos prefácios são hoje considerados manifestos daquele movimento, havia feito um sucesso estrondoso com a publicação do romance O corcunda de Notre-Dame (1831), além de ter se tornado o poeta mais conhecido na França, depois da publicação de Odes e Baladas (1828), As Orientais (1829), As Folhas de Outono (1831), Os Castigos (1853), As Contemplações (1856) e A Legenda dos Séculos (1859). Por conta disso, não é exagero afirmar que Os Miseráveis foram a obra literária mais aguardada na França em todo o século XIX.
Tanto pela extensão do livro quanto pelas expectativas em torno dele, a publicação de Os Miseráveis ocorreu em três etapas, em abril, maio e junho de 1862, num total de dez volumes (dois para cada uma das partes), simultaneamente na França, Bélgica, Portugal, Itália, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Rússia, obedecendo ao seguinte cronograma:
- 3 de abril: I – Fantine
- 15 de maio: II – Cosette e III – Marius
- 30 de junho: IV – O idílio da Rue Plumet e a epopeia da Rue Saint-Denis e V – Jean Valjean
A recepção imediata fez jus às expectativas: resenhas e comentários críticos, dos mais elogiosos e entusiasmados aos mais polêmicos, pulularam na imprensa, não deixando dúvidas de que se tratava de um novo clássico que acabava de nascer. Selecionei e traduzi alguns trechos que dão a ver – além das diferenças em relação às formas de conceber e praticar a crítica literária jornalística em relação aos dias de hoje – a intensa movimentação que a publicação da Os Miseráveis gerou. Os textos originais estão disponíveis, em versão fac-similada, no site da biblioteca digital da Biblioteca Nacional da França2. Quando necessário, fiz alguns comentários para situar ou esclarecer determinados pontos. É interessante salientar que esse material, afora talvez alguns trechos do comentário de Baudelaire, nunca haviam sido traduzidos para o português brasileiro.
Boa leitura!
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1. Adolphe Gaïffe, La Presse, 2 de abril de 1862.
Os Miseráveis são o primeiro romance escrito por Victor Hugo desde O corcunda de Notre-Dame.
Não precisamos dizer o que O corcunda de Notre-Dame foi e é para a literatura deste século; seu sucesso foi à altura da obra: todas as figuras dessa epopeia admirável, Claude Frollo, Esmeralda, Quasímodo, Jehan, Phoebus, Paquette, etc., tornaram-se tipos populares; existem agora duas catedrais com o mesmo nome, ambas em granito.
Em O corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo, que é tão moderno pelo fundo, pela interpretação do tema, pela emoção do drama, está no passado pela data, pelo meio, pelas roupas. Em Os Miseráveis, ele terá esta novidade de ser contemporâneo ao mesmo tempo pelo fundo e pela forma, pela ideia e pelo fato, pela alma e pelos trajes. O corcunda de Notre-Dame é a ressurreição da Idade Média; Os Miseráveis são a vida do século XIX.
A todos os aspectos interessantes em termos de ação, análise, filosofia, estilo, invenção, paixão, que fizeram de O corcunda de Notre-Dame o maior sucesso desta época, Os Miseráveis acrescentam um interesse: a atualidade.
La Presse analisará incessantemente, com a devida atenção e respeito, esta obra capital do maior criador e maior escritor do nosso tempo. Hoje digamos apenas que todos os problemas dolorosos e todas as questões violentas do século XIX se acumulam nesses dez volumes sob a forma viva e dramática de personagens que entrarão na memória universal para nunca sair. Não é um detalhe irrelevante deste livro considerável a comovente grandeza desse pensador que, desterrado em um rochedo no meio do mar, preocupa-se unicamente com os males dos outros, curva-se sobre os deserdados, serve aos miseráveis; que, ferido, cura os feridos; que, sofrendo, consola.
Mas digamos também que teríamos uma ideia muito equivocada do livro se acreditássemos que ele é triste e sombrio. Ele não é, em nada, voltado para a escuridão. O século atual vive nele em sua totalidade, com seus heroísmos e suas fraquezas, com seus esplendores e suas manchas. Tudo se encontra nele, a tristeza e a alegria; há tanto páginas divertidas quanto páginas pungentes; há tanto gargalhadas quanto soluços.
Não se trata de um livro de desalento; trata-se, ao contrário, de um livro de esperança, melhor ainda, de certeza. Há a doença, mas há a cura; há a noite, mas há o amanhecer. O corcunda de Notre-Dame era a noite profunda do passado; Os Miseráveis são o futuro que se ergue. […]
2. Henri Fouquier (sob o pseudônimo Colombine), Le Figaro, 13 de abril de 1862.
Li os dois volumes do Sr. Victor Hugo de uma só vez e num único fôlego. Li rápido, pensei longamente.
Como esse livro é o acontecimento do ano, peço permissão para dizer o que penso dele, devendo a meus leitores a verdade, a mim próprio a franqueza e o respeito pelo autor: há um modo de conciliar isso tudo.
Não farei a análise de uma obra que está nas mãos de todos e que está sendo traduzida para todas as línguas; seria um tempo perdido que pode ser melhor empregado.
Todas as feridas deste mundo estão expostas: a pobreza pungente, o trabalho negado ou insuficiente, uma mãe devotada à sua filha a ponto de se vender por ela, a prostituição para a mulher, última das misérias e último dos recursos. Para o homem, as galés, onde ele fica por dezenove anos: cinco por um pão roubado, quatorze por três fugas frustradas. Depois de sua liberação, depois da estrada livre e das longas jornadas, portas fechadas e rostos hostis por todos os lugares, e nenhuma maneira para o infeliz retornar, seja por virtude, esforço ou sacrifício, ao seu lugar perdido e à sua posição de homem entre os homens. Como um contraste consolador, um sacerdote que derrama prodigamente o tesouro das misericórdias divinas, mostrando aos miseráveis um Deus melhor que os homens, cujo paraíso é preferível à vida terrena. — Isso quanto ao assunto.
Uma simplicidade lapidada, imagens atormentadas, mas muitas vezes comoventes, frases às vezes obscuras, afetação ao dizer pomposamente coisas simples e ao dar à verdade mais óbvia uma roupagem que a deixa irreconhecível, efeitos preparados com grande antecipação e que chegam tarde demais; […] um abuso perpétuo de substantivos quilométricos e de adjetivos gigantescos, um mau gosto inevitável compensado por belezas de primeira ordem. — Isso quanto ao estilo.
O início, longo e arrastado, com seus detalhes comoventes e pinceladas arbitrárias. As cenas entre as cocotes e os estudantes tratadas com uma graça grosseira, uma leveza enfadonha, um ribombar de palavras barrocas, um esforço infeliz de alegria e uma ausência absoluta de espírito. […] Mas surgem então quadros de uma verdade impactante, descrições desoladoras, um interesse estranho que vai se infiltrando aos poucos e que domina totalmente o leitor; um esquecimento completo daquilo que não é o que estamos lendo, ficamos enfeitiçados e, mais do que isso, aterrorizados, embora resistamos e nos culpemos por estarmos cedendo; seguimos até o final devorando as páginas, nós mesmos tomando parte nessas lutas de vida e morte, ouvindo ressoar em nossa alma e em nossa carne aqueles gritos de angústia e desespero, assustados que estamos pelo horror e vencidos pela grandeza da obra. — Isso quanto ao efeito.
Corneille concebia seus heróis em proporções exageradas. Nisso Victor Hugo assemelha-se a Corneille, ele parece estar mais preocupado em forjar tipos do que em pintar pessoas que existiram, ele não toma caminhos já desbravados, nem sai em busca de uma observação banal, mas vai desproporcionalmente além dos personagens que cria, no sentido dos vícios ou virtudes que lhes dá; de tal modo que os contrastes são mais marcantes, o objetivo torna-se mais visível, e o pensamento emerge com mais clareza do labirinto dos acontecimentos ou das nuvens da frase.
Victor Hugo não se compraz, como Eugène Sue, na pintura desoladora dos vícios e vilezas da humanidade, sem qualquer outra preocupação além de espalhá-los abominavelmente pelas páginas intermináveis de seus romances doentios; ele não é, como Balzac, um observador meticuloso, que trabalha com quantidade e precisão de detalhes, um conjunto majestoso, e que está mais preocupado com a pintura do que com a prova, ele acredita ter sido chamado para este mundo para uma missão regeneradora; ele exerce uma espécie de sacerdócio indulgente, deleita-se buscando reabilitações grandiosas, encontra desculpas para os vícios, uma razão para o crime existir ou não existir mais, ele redime pelo amor, salva pelo arrependimento e conduz seus heróis, através do cansaço e dos perigos de uma ascensão dolorosa, às alturas assombrosas das mais inacessíveis virtudes.
[…]Ninguém admira mais Victor Hugo do que eu: como escritor, ele está abaixo de muitos; como autor dramático, ele não está abaixo de ninguém; como poeta, ele é o maior desde a morte de Musset. Quantas alegrias devo a ele, quantas emoções que ainda me fazem tremer, quantos deleites sempre jovens e vivos! A idade não esfriou o seu ardor nem extinguiu a juventude do seu coração e as chamas do seu gênio! Ele trabalha mais do que nos primeiros tempos, agitando os fardos mais pesados e surpreendendo-nos com a grandeza da concepção e a potência do seu esforço. Ele transborda de seiva e de vida, fazendo crescerem ramos exuberantes como uma árvore que se cobrisse tanto de flores quanto de frutos e curvasse seus galhos para que todos pudessem colhê-los, ele tem certos tons que vão direto ao coração pelo caminho mais curto: para não o admirar, seria preciso ter perdido o amor pelo bem e o sentimento da beleza, e para não o amar, seria preciso não ter sido criança ou nunca ter sido mãe. […]
3. Jules Barbey d’Aurevilly, Le Pays, 19 de abril de 1862.
Aqui estão eles, finalmente, os famosos Miseráveis — famosos antes mesmo de terem nascido! Aqui estão eles, que há doze dias tomaram o mundo, fazendo-o ressoar como talvez nenhum livro jamais tenha feito… E não me espanta. Se nos déssemos ao trabalho de analisar o imenso burburinho que se criou em torno desse livro, veríamos que, no fundo desse barulho descomunal, há apenas algo muito natural, muito compreensível, muito pouco surpreendente — e que não depõe nem a favor nem contra a obra em si do Sr. Hugo. Com efeito, a posição atual do Sr. Hugo explica tudo. Imaginem só! O Sr. Victor Hugo! E o Sr. Victor Hugo trabalhando há dez anos — não! há vinte anos — não! há trinta anos — em uma obra em dez volumes que deve ser, como ele mesmo diria, a escada dos gigantes de sua glória; em um livro cuja pretensão, anunciada por trombetas enormes, é ser nada menos do que a Epopeia em prosa do século XIX!
[…]Trata-se, com efeito, de um sofisma — um longo sofisma, Os Miseráveis —, e um sofisma ainda mais capcioso porque apela à generosidade do coração. A ideia do livro (que irradia, pelo menos, nesses dois primeiros volumes, que só podem ser julgados como o pórtico de um monumento que iremos descobrir pouco a pouco), a ideia do livro não é nova. É aquela ideia que, há muito tempo, ai!, passa pela cabeça enfraquecida da humanidade, e que a perturba um pouco mais! A saber: que toda legislação penal deve desaparecer de nossos códigos civilizados e ser substituída pelo sentimento de humanidade, que bastaria para conduzir o mundo seja e reprimir o mal do homem. […] Mas essa tola e velha ideia, inofensiva em tantos livros estúpidos, perdeu sua tolice e sua senilidade pelo modo audacioso com que o Sr. Hugo a formula e a explora. Devo admitir: ele empreendeu essa exploração com um vigor e uma resolução que não recuam diante de nada, nem mesmo diante da diminuição dele próprio — pois, no interesse de sua ideia, ele degrada, a cada página, um talento de que em outros tempos teve orgulho, e se alia, de caso pensado, com a Vulgaridade, essa vileza literária que é o perdão, implorado de joelhos, por ter gênio, quando se tem… O propósito do livro do Sr. Hugo é explodir todas as instituições sociais, uma após a outra, com algo mais forte do que a pólvora — que explode montanhas —, com lágrimas e piedade. Ele disse a si mesmo, com alguma razão, que o que constitui a humanidade, em número e em público, são as mulheres e os jovens, essas mulheres temporárias, que com muita frequência permanecem mulheres por toda incapacidade de amadurecer e pobreza de espírito, e é sobre todos esses corações, mal encimados pela razão, que ele tentou agir… É para todos esses corações, impetuosa ou ternamente sensíveis, que ele combinou os efeitos de um livro, arranjado de modo a dar sempre razão àquele que a Sociedade pune, contra a Sociedade que o pune. Concepção, eu disse, desprezível, mas tornada formidável pela execução. Ora, ao ler essas palavras, que o Sr. Victor Hugo, pobre como pensador, não vá por isso se considerar um grande artista!
[…]Agora, meu trabalho está feito. Não omiti nada sobre esse Os Miseráveis, que pode vir a ter um grande sucesso, que até o tem, dizem, mas que nem por isso será um grande livro. O Sr. Hugo, não tenho dúvidas, arrastará consigo todos os espíritos ardentes e fracos, todas as almas de porteira, mais numerosas do que se imagina, […] enfim, todos os entusiastas chorões que se derramarão em lágrimas de admiração por Bienvenu, e que não sabem que aqui, entre nós, no terreno da realidade, havia, quando o Sr. Hugo escrevia seus Miseráveis, um verdadeiro sacerdote (o cura de Ars) mais sublime do que o seu, justamente porque era mais sacerdote e que, por isso, ele não teria querido copiar. Sim, o Sr. Hugo terá todo este mundo ao seu lado, e talvez (o que me faz lamentar ainda mais) os próprios governos que o deixaram tranquilo para atacar a sociedade e suas instituições salvadoras com essas lágrimas que ele só pensa em fazer correr para melhor afogá-la nelas!… Mas nada disso é motivo para que a crítica literária, que deve ser sempre também crítica moral, não dê sua palavra, e ela será clara: Os Miseráveis não são um belo livro e, além disso, são uma má ação.
4. Charles Baudelaire, Le Boulevard, 20 de abril de 1862.3
[Baudelaire começa seu artigo retomando um comentário que fizera, semanas antes, sobre algumas das obras anteriores de Hugo, concluindo da seguinte forma:]
A moral não entra nessa arte como um objetivo. Ela se mistura e se confunde com ela, como na própria vida. O poeta é involuntariamente moralista, por abundância e plenitude de natureza.
Há aqui apenas uma linha que precisa ser alterada; pois, em Os Miseráveis, a moral entra diretamente como um objetivo, como fica evidente, aliás, pela própria confissão do poeta, colocada, à guisa de prefácio, na abertura do livro:
Enquanto existir, pelo fato das leis e dos costumes, uma danação social criando artificialmente, em plena civilização, infernos, e complicando com uma fatalidade humana o destino que é divino;[...] enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, livros da natureza deste poderão não ser inúteis.
“Enquanto…” Ai de mim! Melhor dizer SEMPRE! Mas aqui não é o lugar para analisar tais questões. Nós queremos simplesmente fazer justiça ao talento admirável com o qual o poeta captura a atenção do público e a inclina, como a cabeça recalcitrante de um estudante preguiçoso, na direção dos abismos prodigiosos da miséria social.
[…]Será mesmo necessário fazer uma análise material de Os Miseráveis, ou melhor, da primeira parte de Os Miseráveis? A obra está atualmente em todas as mãos, e todos conhecem seu enredo e sua estrutura. Parece-me mais importante observar o método utilizado pelo autor para pôr em evidência as verdades das quais ele se colocou como seu criado.
Este livro é um livro de caridade, isto é, um livro feito para excitar, para provocar o espírito de caridade; é um livro que questiona, que apresenta casos de complexidade social, de uma natureza terrível e dolorosa, que diz à consciência dos leitores: “E então? O que vocêm acham disso? A que conclusão vocês chegam?”
[…]É bastante evidente que o autor quis, em Os Miseráveis, criar abstrações vivas, figuras ideais, cada uma delas representando um dos principais tipos necessários para o desenvolvimento de sua tese, e alçá-las a uma altura épica. Trata-se de um romance construído à maneira de um poema, e no qual cada personagem é excepcional apenas pelo modo hiperbólico com que representa uma generalidade. O modo como Victor Hugo concebeu e ergueu esse romance — e como o jogou em uma fusão indefinível, para fazer dele um novo metal coríntio, os ricos elementos geralmente dedicados a obras especiais (o sentido lírico, o sentido épico, o sentido filosófico) — confirma, mais uma vez, a fatalidade que o levou, quando jovem, a transformar a antiga ode e a antiga tragédia, até chegar aos poemas e aos dramas que conhecemos hoje.
[…][Depois de analisar o personagem Jean Valjean e sua transformação em M. Madeleine:]
O capítulo que reconstitui — minuciosamente, lentamente, analiticamente, com suas hesitações, suas restrições, seus paradoxos, suas falsas consolações, seus artifícios desesperados — a disputa do homem consigo mesmo (Uma tempestade sob um crânio) contém páginas que podem orgulhar para sempre não apenas a literatura francesa, mas até mesmo a literatura de toda a Humanidade pensante. É glorioso, para o Homem Racional, que essas páginas tenham sido escritas! Levaria muito, mas muito, muitíssimo tempo, para encontrar em outro livro páginas comparáveis a essas, nas quais está exposta, de modo tão trágico, toda a espantosa Casuística inscrita, desde o Princípio, no coração do Homem Universal.
[…]Os Miseráveis são, portanto, um livro de caridade, uma advertência atordoante a uma sociedade muito apaixonada por si mesma e muito pouco preocupada com a imortal lei da fraternidade; um apelo em defesa dos miseráveis (aqueles que sofrem com a miséria e que a miséria desonra), proferido pela voz mais eloquente deste tempo. Apesar de tudo o que possa haver de trapaça deliberada ou de parcialidade inconsciente no modo como, aos olhos da filosofia mais estrita, os termos do problema são formulados, nós cremos — exatamente como o autor — que livros dessa natureza nunca são inúteis.
Victor Hugo é a favor do Homem e, no entanto, não está contra Deus. Ele confia em Deus e, ainda assim, não se volta contra o Homem.
[…]Ele acredita que o Homem nasce bom e, no entanto, mesmo diante de seus desastres permanentes, não acusa a ferocidade nem a maldade de Deus. […]
5. Alfred Auguste Cuvillier-Fleury, Journal des Débats, 29 de abril de 1862.
Este livro será o martirológio dos infelizes, aqueles que a sociedade castiga depois de os ter corrompido, que ela faz mergulhar na ignomínia por meio da necessidade, que ela abandona, ainda crianças ou já adultos, e depois estigmatiza para se dar ares de justiça.
[…]Não quero opor, com a intenção de esmagar uma com a outra, as duas caridades que parecem estar em disputa hoje no mundo: a caridade socialista e a caridade cristã. A caridade cristã mostra o céu ao infeliz, aliviando sua miséria; a caridade socialista ensina os homens a buscar seu paraíso na terra. Uma torna leve o fardo da indigência, mostrando-a como uma provação passageira; a outra torna-o odioso, atribuindo-o a uma distribuição injusta do patrimônio comum pelas mãos de alguns poucos. […] O cristianismo afirma que seu reino não é deste mundo, e nem por isso dedica-se menos ao alívio das misérias humanas. O socialismo aspira aos prazeres palpáveis de um reino imediato. Enfim, essa desigualdade imemorial das condições humanas, nascida de tantas causas inevitáveis, é para a caridade cristã tão somente a ocasião para verter abundantemente o bálsamo de seus consolos e de sua generosidade. Já para a caridade socialista, ela serve de pretexto para uma guerra mortal contra a sociedade moderna.
[…]O Sr. Hugo não fez um tratado socialista. Ele fez algo que, sabemos por experiência própria, é muito mais perigoso. Ele renovou, em 1862, sob um regime bastante diferente, as tentativas que marcaram os primeiros passos do socialismo, em plena liberdade, sob o reinado anterior. Ele introduziu a reforma social no romance; deu-lhe a vida que ela não tinha nos enfadonhos tratados em que sua doutrina é difundida de forma obscura — e, junto com essa vida, o movimento, a cor, a paixão, o prestígio, a publicidade ilimitada, a popularidade em larga escala, a difusão em todos os níveis e em todas as camadas. Ele não apenas pôs o talento mais vigoroso a serviço de suas ideias, mas desta vez as envolveu, para tentar obter o respeito dos homens, com um manto religioso. A religião é boa em todos os lugares, se for sincera. Já disse suficientemente que não suspeito da sinceridade do Sr. Victor Hugo; já mostrei suficientemente o quanto o liberalismo mais radical pode tomar emprestado das ideias cristãs.
[…]Se a Revolução de 89 foi bem feita, foi contra esses excessos da justiça, essas vinganças da sociedade, essas iniquidades da opinião, essas insolências da fortuna que ela foi feita. Quem é que, hoje, se sente ameaçado pelas vinganças da sociedade? O princípio de que a lei pune, mas não se vinga, é o próprio bê-á-bá da jurisprudência francesa. Quem é que se sente esmagado sob o peso do poder e da riqueza? Qual é o operário inteligente, honesto e trabalhador que, sem riqueza, com seu instrumento de trabalho à mão, não se sente igual a um duque perante a lei, e que suportaria a afronta de um senador? Vocês são todos reis!, dizia-se aos operários nas conferências de Luxemburgo. Se nossa nação tem um defeito desde 89, não é a baixeza dos inferiores; seria, isso sim, o excesso contrário. Nobre defeito, no fim das contas! A baixeza, entre nós, às vezes está no alto, nunca embaixo.
[…]O livro do Sr. Victor Hugo, ao qual nos reservamos o direito de retornar dentro de poucos dias, esse livro, inspirado por um pensamento honesto, habilmente coberto com um verniz religioso, cheio de calorosas sugestões da filantropia moderna, hábil em repetir, de tempos em tempos, os mais doces timbres da caridade cristã — esse livro, a despeito de tudo, por sua tendência demasiadamente declarada, não é apenas o trabalho de um escritor; é o ato de um homem, eu ia dizer o ato de um partido, uma verdadeira demonstração de 1848. É tarde para isso. A liberdade política precisa de outros defensores e de amigos menos perigosos…
6. Albert Glatigny, Diogène, 4 de maio de 1862.
Analisar Os Miseráveis não é o que pretendo fazer. Quando deles se diz, como é lindo!, ainda não se disse o suficiente. Há obras que é impossível contar e glorificar, de tanto que elas estão além de nós. Só concebo um artigo digno sobre um livro como esse com a condição de que seja escrito pelo próprio Victor Hugo. Apesar de sua harmonia divina, Os Miseráveis estão além do alcance dos olhos. Eles são como aquelas montanhas que nos esmagam e nos aniquilam por sua grandeza assustadora — diante delas trememos, sentimos medo e nos colocamos de joelhos.
[…]Faz muito tempo que Victor Hugo está fora do campo da discussão; um livro escrito por ele é algo já censurado antes de sua publicação. As obras-primas anteriores impõem respeito àquele que vem completá-las. Permitam-me apenas dizer qual foi a minha impressão de absoluta e soberana alegria ao ler Os Miseráveis: é como uma obra escrita sob luz intensa.
Uma imensa bondade caía do firmamento,
diz A Legenda dos Séculos. Nada me parece exprimir melhor o efeito produzido sobre aqueles que sentem, que admiram e que esperam, do que este verso. De cada página, de cada linha, a mesma bondade, a mesma alegria, derramam-se com igual esplendor. É fulgor do sol ao meio-dia, quando ele está no ponto mais alto do céu, quando ele não declina, quando ele já não pode ir além. Tanto pior para os cegos voluntários, escondidos no porão nessa hora — eles não o terão visto, e não serão os que enxergam que pagarão por isso.
7. Paul de Saint-Victor, La Presse, 1º de outubro de 1862.
Eu estaria chegando um pouco atrasado, caso se tratasse de outra obra, para falar sobre Os Miseráveis, de Victor Hugo. Mas os grandes livros são pacientes, porque são imortais. Não falta momento oportuno para aquilo que dura. O sucesso foi imenso, sem dúvida misturado com polêmicas e recusas. Este gênio poderoso tem o dom de agitar todas as ideias pelas quais ele passa. Seus encantamentos são realizados em meio à tempestade; o tumulto é o acompanhamento de suas obras. […] O poeta é tão forte e tão absoluto, ele reúne tanta admiração e atrai tantos antagonismos, é tão impossível permanecer indiferente diante dele, que aqueles que não aceitam sua dominação literária como uma realeza devem suportá-la como uma tirania.
Se seus poemas e seus dramas, que levantavam apenas questões de arte, desencadearam tempestades, o que se poderia esperar dessa enorme epopeia de Os Miseráveis, que remexe, revira e cava em todas as direções as misérias sociais, ou seja, aquilo que há de mais suscetível e de mais inflamável no mundo? Acusaram tanto o fundo quanto a forma, a escolha do tema e a veemência do artista. — A primeira acusação é inadmissível. Em todos os tempos, os grandes escritores apertaram e fizeram gritar as feridas de seu século; é privilégio deles e é dever deles. As tragédias reais, como as do teatro, devem despertar o terror para inspirar a piedade.
[…]Quanto à execução de Os Miseráveis, é certamente algo de uma beleza terrível e de uma energia incomparável. Não é a um tal pintor que se deve pedir tons suaves. A força é a própria essência desse grande espírito; ele deixa marcas profundas em tudo aquilo que toca; sua pena se estende sobre as coisas como a garra do leão sobre a areia. Mas justamente o que me impressiona nesse amontoado de misérias tão corajosamente expostas é a imparcialidade que as domina, a serenidade que ali reina, a inteligência superior que as observa e que sabe, quando necessário, absolver a causa pelo efeito. Há uma escolha a fazer na infinidade de ideias que preenche esse livro. Algumas delas, de nossa parte, nós não poderíamos aceitar; mas o que permanece acima de qualquer ataque, além de qualquer controvérsia, é a pureza de sua intenção, a elevação de seu ponto de vista, a moderação de seus julgamentos, a benevolência, que é sua alma e que a preenche com seu brilho. Ele exalta a compaixão, nunca apela ao ódio; ele não divide, reconcilia; ele perdoa muito, porque compreende tudo. Saímos de sua leitura entristecidos, mas não irritados. Os Miseráveis são, acima de tudo, um livro de boa vontade. […]
Referências:
BACH, Max. Critique et Politique: La Réception des Misérables en 1862.
Pmla/Publications Of The Modern Language Association Of America, [S.L.], v. 77, n.
5, p. 595-608, dez. 1962. Modern Language Association (MLA).
http://dx.doi.org/10.2307/460408.
HUET-BRICHARD, Marie-Catherine. La polémique et ses paradoxes: Barbey et Les
Misérables. Littératures, [S.L.], v. 58, n. 1, p. 13-24, 2008. PERSEE Program.
http://dx.doi.org/10.3406/litts.2008.2248.
LAROCHE-SIGNORILE, Véronique. «Ce livre est d’un grand effet»: parution des
misérables le 3 avril 1862. Le Figaro. Paris, 2 abr. 2024. Disponível em:
https://www.lefigaro.fr/histoire/archives/2017/04/02/26010-20170402ARTFIG00122–
les-miserables-vu-par-le-figaro-ce-livre-est-d-un-grand-effet.php. Acesso em: 12
maio 2025.
- Diego Grando é poeta, tradutor e professor de Literatura, com pesquisas na área de Escrita Criativa e Ensino de Literatura. Com seu livro Spoilers, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura de 2018 na categoria Poesia. Desde 2012, integra o elenco do Sarau Elétrico. ↩︎
- Todos os textos traduzidos, bem como as versões fac-similadas presentes neste artigo, foram retirados da biblioteca digital da Biblioteca Nacional da França, disponíveis no link: https://gallica.bnf.fr/accueil/fr/html/accueil-fr ↩︎
- Le Boulevard, 20 avril 1862 ; Baudelaire, Œuvres complètes, éd. Claude Pichois, Gallimard, « Bibliothèque de la Pléiade », t. II, 1976, p. 220-224. ↩︎