“Quincas Borba”, de Machado de Assis, como você nunca viu

Redação do CLC

Machado de Assis não escrevia romances apenas para contar histórias — ele escrevia para desvendar o ser humano. E para isso, usava um recurso que poucos dominaram com tanta elegância: a intertextualidade. Em Quincas Borba, publicado em 1891, essa habilidade atinge um ponto alto. O romance, que à primeira vista narra a ascensão e queda de um homem simples, é na verdade uma sofisticada tapeçaria de ideias, alusões filosóficas, ironias literárias e críticas sutis ao pensamento de sua época.

Ao longo da obra, Machado evoca nomes como Camões, Dante, Cervantes, Shakespeare, Kant, Voltaire e até Poe — mas nunca de forma aleatória. Essas referências são muito mais do que citações: são fios ocultos que sustentam a crítica machadiana à vaidade, ao cientificismo, ao sentimentalismo burguês e à moral de conveniência. Elas estão ali para dialogar com os leitores mais atentos, revelando camadas de significado que escapam numa leitura apressada. 

Este artigo é um mapa para esse labirinto: aqui, destrinchamos as 15 referências mais importantes de Quincas Borba1, mostrando onde aparecem, por que estão ali, e o que nos dizem sobre os personagens, a sociedade e — principalmente — sobre nós mesmos.

As 15 principais referências literárias em Quincas Borba

1. A Bíblia — Isaías 55, 1-2

“...que pareciam repetir a exortação do profeta: Todos vós que tendes sede, vinde às águas.”

Capítulo III, página 15

A citação bíblica aparece de modo lírico, quando Rubião conhece Sofia e interpreta seu olhar como um chamado à plenitude. Contudo, esse tom quase sagrado é imediatamente desmontado pela frivolidade da paixão que se inicia.

Machado usa a Bíblia aqui não como reverência, mas como contraste. Ele mostra como até os símbolos mais elevados podem ser reinterpretados por paixões banais e ilusões de desejo, evidenciando a distância entre a linguagem e a verdade.

2. Lord Byron e Gonçalves Dias

“...fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias…”

Capítulo VI, página 19

Esses dois poetas, ícones do romantismo inglês e brasileiro, são tratados como vidas descartáveis dentro do raciocínio utilitário do Humanitismo. A frase serve para ilustrar a indiferença da “natureza universal” à perda do indivíduo, por mais ilustre que seja.

Machado está zombando da lógica mecanicista do Humanitismo, que nivela todos os seres humanos — inclusive gênios — à condição de obstáculos fisiológicos. É uma crítica mordaz ao racionalismo que desumaniza em nome de um suposto bem maior.

3. Luís de Camões — Elegia XI

“...para usar a linguagem do grande Camões: ‘Uma verdade que nas cousas anda, que mora no visíbil e invisíbil.’”

Capítulo VI, página 21

Aqui, Machado insere um verso erudito no meio de um discurso insano. A frase de Camões é usada por Quincas Borba para definir a substância única e eterna de seu sistema filosófico. O contraste entre a nobreza do verso e a ideia absurda de que a guerra é benéfica revela o caráter farsesco da doutrina.

Ao evocar Camões, Machado dialoga com a tradição épica portuguesa para questioná-la. O que antes era grandeza e verdade universal torna-se uma citação instrumentalizada para justificar o egoísmo e o delírio.

4. Dom Quixote — Miguel de Cervantes

“Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna...”

Capítulo VI, página 22

Essa passagem é usada por Quincas Borba para ilustrar sua ideia de que os indivíduos são bolhas transitórias e que só a essência (ou o “princípio”, Humanitas) é permanente. A comparação com o livro de Cervantes tem um duplo sentido: enquanto serve como ilustração didática, também evoca a figura do cavaleiro louco, espelhando a própria condição mental do personagem.

A citação insinua que, assim como o personagem de Cervantes, Quincas Borba vive em um mundo distorcido por sua ideologia. Essa referência torna-se assim uma chave sutil para interpretar o Humanitismo como uma loucura travestida de doutrina universal.

5. Santo Agostinho — Confissões

“Sou Santo Agostinho. [...] Ambos furtamos: ele, em pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. [...] Enfim, ele pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no cap. XVI, livro VII das Confissões...”

Capítulo X, página 26

A comparação entre Quincas Borba e Santo Agostinho é feita de forma irônica e delirante. O filósofo louco reivindica para si a mesma trajetória espiritual do bispo de Hipona, conhecido por sua conversão após uma juventude libertina. A referência à célebre cena das peras roubadas simboliza o reconhecimento do pecado como inclinação à maldade gratuita.

No entanto, ao colocar a citação num contexto de insanidade, Machado descredibiliza o que poderia ser um paralelo elevado, transformando-o em paródia. Essa apropriação invertida mostra como o Humanitismo — filosofia fictícia de Quincas Borba — se serve de um vocabulário metafísico para legitimar absurdos e delírios narcisistas.

6. Voltaire — Cândido / Pangloss

“A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire…”

Capítulo XI, página 29

A referência a Pangloss, personagem otimista que acredita viver “no melhor dos mundos possíveis”, serve aqui para ironizar as ideias de Quincas Borba, que até no leito de morte defende suas convicções. Voltaire usou Pangloss para satirizar o otimismo filosófico, e Machado retoma esse sarcasmo ao compará-lo ao delírio de seu personagem.

É uma alusão direta ao absurdo de defender racionalmente o sofrimento. A frase final de Quincas Borba transforma sua morte em um ponto de crítica à cegueira ideológica, fazendo eco à crítica iluminista de Voltaire.

7. Candaules – Heródoto

“Era assim um rei Candaules…”

Capítulo XXXV, página 53

A referência ao rei lídio, que exibia sua esposa nua a terceiros, é feita em relação a Palha, marido de Sofia. A analogia reforça a ideia de que Palha exibe a beleza da mulher como se ela fosse uma extensão de sua riqueza e sucesso.

Machado insinua uma crítica à objetificação feminina e ao narcisismo masculino. A história antiga é transposta para o cenário carioca do século XIX com sutileza, servindo como comentário irônico à hipocrisia moral da elite urbana.

8. O Corvo – Edgar Allan Poe

“Quoth the Raven: Nevermore.”

Capítulo XXXVII, página 54

Esse verso célebre de Poe é usado por Dona Tonica ao observar que nunca mais conquistará o amor de Rubião. A escolha do poema, traduzido pelo próprio Machado anos antes, revela o tom trágico-cômico da personagem: enquanto ela se imagina numa cena melancólica e gótica, o leitor percebe o excesso e a afetação de sua dramaticidade.

A intertextualidade com Poe confere densidade à cena, mas também a relativiza. Tonica, figura quase caricata, transforma o sublime em patético. Machado subverte assim a gravidade do original, extraindo humor e compaixão de sua paródia melancólica.

9. Otelo – William Shakespeare

“Castas estrelas! é assim que lhes chama Otelo, o terrível...”

Capítulo XL, página 57

A frase ocorre num momento de forte tensão entre Rubião e Sofia. Após uma tentativa de sedução, Rubião contempla o céu e reflete sobre o valor simbólico das estrelas. A citação a Otelo, tragédia marcada por ciúme e violência passional, adiciona uma nota sombria ao episódio, sugerindo que há algo inquietante por trás da aparência contemplativa da cena.

Shakespeare serve aqui como espelho dos impulsos de Rubião. A referência à “castidade” das estrelas – expressão usada por Otelo antes de assassinar Desdêmona – contrapõe o desejo latente do personagem com a aparência de pureza do ambiente. Machado joga com esse contraste para sugerir que, mesmo nas aparências mais sublimes, pode haver sombras morais.

10. Tristram Shandy – Laurence Sterne

“...e Tristram Shandy, o jovial.”

Capítulo XL, página 57

Logo após citar Otelo, o narrador menciona Tristram Shandy, romance satírico e digressivo de Sterne. A justaposição é notável: de um lado, o trágico Otelo; do outro, a leveza cômica de Tristram. O efeito é duplo — afasta a cena de qualquer unidimensionalidade emocional e destaca o próprio jogo intertextual machadiano.

Sterne, aliás, é um antecessor natural de Machado: ambos são mestres do humor irônico, da digressão narrativa e da quebra da linearidade. Ao invocá-lo, o autor parece dar um piscadela ao leitor sofisticado, convidando-o a não se levar tão a sério — nem os personagens, nem a própria narrativa.

11. Endimião & Diana – Mitologia Clássica

“O mito de Diana descendo a encontrar-se com Endimião bem pode ser verdadeiro…”

Capítulo XL, página 57

A imagem do encontro mitológico entre a deusa da lua e o pastor adormecido aparece durante uma cena de flerte entre Rubião e Sofia. A referência cria uma atmosfera de romance sublime, mas logo é corroída pela realidade: a paixão é unilateral, e a sedução se dá em meio a hesitações e silêncios.

Ao invocar um mito clássico de beleza e desejo imortal, Machado ironiza a idealização amorosa. Rubião quer ser Endimião, mas é apenas um homem vaidoso e iludido, e Sofia, longe de ser deusa, é uma mulher ambígua e estratégica. A distância entre o mito e o cotidiano amplia a crítica social e psicológica da narrativa.

12. Alexandre Dumas – O Conde de Monte Cristo

“Ultimamente, ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai...”

Capítulo LX, página 90

Machado menciona de forma breve, mas significativa, Alexandre Dumas (pai), autor de clássicos como O Conde de Monte Cristo e Os Três Mosqueteiros. Essa leitura por parte de Rubião sugere não só seu gosto pela grandiosidade e aventura, mas também a influência de narrativas de vingança e reviravolta de fortuna — temas que ecoam sua própria transformação de modesto professor a herdeiro milionário.

A ironia aqui é fina: enquanto Dumas narra o triunfo de um herói injustiçado, Rubião acredita viver uma versão pessoal desse épico — mas sua ascensão é absurda, baseada em um testamento de um louco. Ao evocar Dumas, Machado aponta para a distância entre os grandes feitos da ficção romântica e os pequenos ridículos da vida real. Rubião, leitor de aventuras, será derrotado por sua própria ingenuidade.

13. Immanuel Kant

“O gato, que nunca leu Kant, é talvez um animal metafísico.”

Capítulo LXXXI, página 114

A frase surge em um momento de introspecção de Rubião, em que ele divaga sobre o casamento como modo de restaurar a “unidade perdida” da existência. A menção a Kant aparece como ironia: se até um gato pode ser metafísico sem conhecer o filósofo, talvez as ações humanas também dispensem fundamentos tão elevados quanto os que a filosofia oferece.

Machado brinca com a tradição filosófica alemã, sugerindo que há uma metafísica espontânea nas ações do cotidiano, independente de leitura ou formação. Ao mesmo tempo, critica a pretensão dos discursos eruditos em explicar a alma humana, jogando luz sobre a complexidade das emoções e motivações de Rubião — que, nesse ponto da narrativa, está completamente imerso em desorientação emocional e filosófica.

14. Fontenelle – “Para as rosas, o jardineiro é eterno”

“Para as rosas, escreveu alguém, o jardineiro é eterno.”

Capítulo CXXXVIII, página 192

Essa citação é atribuída a Fontenelle e ressurge no contexto das reflexões de Rubião sobre amor e memória. O aforismo sugere que quem cultiva o belo permanece vivo no objeto de seu cuidado — ideia romântica e sentimental.

Em Quincas Borba, porém, esse tipo de frase serve mais para ilustrar a ingenuidade do personagem do que uma filosofia de vida coerente. Rubião agarra-se a máximas poéticas como quem se agarra a tábuas de salvação — e Machado, com elegância, revela o vazio dessas tentativas.

15. A Divina Comédia – Dante Alighieri

“Dante, que viu tantas cousas extraordinárias…”

Capítulo CXL, página 200

A menção a Dante ocorre quando Rubião, já em franca deterioração mental, tenta organizar sua visão de mundo. O nome do poeta florentino aparece como símbolo da mente que compreende os mistérios do universo e da justiça divina — em oposição ao caos moral em que Rubião se encontra.

Com essa referência, Machado contrapõe a clareza da estrutura moral dantesca com a confusão ética do mundo moderno. Rubião não é um novo Dante, mas alguém perdido no inferno da própria vaidade. A sugestão é clara: na ausência de princípios firmes, resta apenas o delírio travestido de lucidez.

A costura invisível de Machado

Machado de Assis costura essas referências com tamanha sutileza que muitos leitores as atravessam sem percebê-las. Mas é justamente essa tessitura literária que dá densidade ao romance. A loucura de Quincas Borba, a ingenuidade de Rubião, a duplicidade de Sofia — tudo isso é iluminado por outras histórias e ideias.

Ler Quincas Borba com atenção às suas referências é como abrir janelas em uma casa antiga: a luz revela novas dimensões, detalhes escondidos, e uma beleza ainda maior. Por isso, em nossa edição de Quincas Borba, fizemos questão de acrescentar uma série de notas de rodapé que auxiliam o leitor na identificação de cada intertextualidade, para uma leitura ainda mais rica.

Para conhecer nossa edição de Quincas Borba, clique aqui!

  1. Todas as citações realizadas neste artigo foram retiradas da seguinte edição: 
    Machado de Assis. Quincas Borba. Edição crítica anotada por Rafael D. de Souza. Dois Irmãos, RS: Clube de Literatura Clássica, 2025. ↩︎

Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anterior
6 livros clássicos curtos e avassaladores

6 livros clássicos curtos e avassaladores

Há livros com poucas páginas, mas com profundidade suficiente para marcar uma

Você também pode gostar
Total
0
Share