Redação do CLC
Victor Hugo talvez seja o nome mais lembrado da literatura francesa. Seu rosto está nos manuais escolares, suas frases nas redes sociais, suas obras nos palcos e telas. Mas por trás do escritor venerado existe uma figura complexa: político destemido, poeta obsessivo, dramaturgo polêmico, e sobretudo um homem que moldou a própria vida ao redor da escrita. Hugo não escrevia apenas sobre o mundo — ele escrevia a partir do mundo, inscrevendo-se nele.
Seus livros não nasceram em abstrações literárias. Os Miseráveis emergiu da dor do exílio. Notre-Dame de Paris cresceu em meio ao debate sobre o patrimônio francês. Os poemas de As Contemplações foram escritos sob o peso de uma perda pessoal. Cada obra corresponde a uma etapa vivida, e é nessa relação orgânica entre biografia e bibliografia que está sua singularidade.
Este texto segue esse caminho: reconstrói a trajetória de Victor Hugo ao lado de suas criações. Da infância marcada por contrastes até a velhice consagrada, passando pelo fervor político, o exílio produtivo e os combates literários, cada momento de sua vida acendeu um novo livro. Conhecer o homem é compreender a força de sua obra — e vice-versa.
Primeiras palavras: o nascimento do escritor
Victor-Marie Hugo nasceu em 26 de fevereiro de 1802, em Besançon, durante o período pós-revolucionário francês. Filho de Léopold Hugo, general do exército de Napoleão, e Sophie Trébuchet, católica e realista convicta, cresceu entre duas visões de mundo em choque. As viagens da família pelo sul da Itália e Espanha, causadas pelas missões militares do pai, foram marcadas por instabilidade e pela ausência de raízes fixas — condição que ele converteria em introspecção e observação social.
Aos 11 anos, fixou-se em Paris com a mãe, após a separação dos pais. Desde cedo, interessou-se por poesia e se destacou em concursos literários. Na juventude, escrevia com disciplina, mantendo diários, redigindo versos, e construindo o que já parecia uma missão. Em seus cadernos, anotava que desejava ser “Chateaubriand ou nada” — uma afirmação que soava menos arrogante do que profética, considerando sua evolução posterior.
Sua estreia literária formal aconteceu em 1822, com Odes et Poésies Diverses, coletânea de poemas ainda marcada pelo estilo clássico e pelo espírito religioso herdado da mãe. A obra lhe rendeu uma pensão real, sinal do reconhecimento precoce da monarquia. Nesse momento, Hugo não era ainda o rebelde que se tornaria, mas um jovem alinhado ao conservadorismo do período restauracionista.
Com o tempo, no entanto, ele começou a se aproximar dos círculos românticos parisienses. Sua convivência com figuras como Sainte-Beuve, Lamartine e Vigny influenciaria o abandono do classicismo rígido em favor de uma literatura mais livre, emocional e politizada. Essa transição seria marcada por sua peça Cromwell (1827), que incluía um prefácio considerado um verdadeiro manifesto do teatro romântico francês.
O escritor maduro
A partir da década de 1830, Hugo se tornaria uma das personalidades mais visíveis da cena cultural francesa. Em 1831, publicou Notre-Dame de Paris, um romance que capturou o espírito da Paris medieval e serviu como alerta contra a destruição do patrimônio arquitetônico da cidade. Foi um sucesso imediato, consolidando sua fama como romancista. A obra apresentava temas que ele revisitava frequentemente: marginalização, destino, religiosidade e resistência ao poder.
Enquanto se estabelecia como romancista, Hugo também dominava a cena teatral. Peças como Hernani (1830) provocaram reações intensas, com aplausos e vaias dividindo o público e os críticos. O escândalo do teatro ajudou a solidificar seu nome, principalmente entre os jovens românticos que viam na peça um rompimento com o moralismo e a formalidade do teatro clássico.
Na vida pessoal, Hugo casou-se com Adèle Foucher em 1822, com quem teve cinco filhos. Seu casamento, porém, foi marcado por distanciamento emocional e relações extraconjugais, tanto dele quanto dela. Ao longo de décadas, manteve uma relação paralela com a atriz Juliette Drouet, que o acompanharia até a morte. Sua família foi também abalada por tragédias, especialmente a morte da filha Léopoldine, em 1843.
Nos anos seguintes, aproximou-se cada vez mais da política. Foi nomeado par da França em 1845 e, com a Revolução de 1848, eleito deputado na Assembleia Nacional. Nesse contexto, sua produção literária se tornava mais crítica, voltada à justiça social e ao debate político. As ideias que ele formularia com mais amplitude em Os Miseráveis começavam a ser gestadas nesse período de engajamento e contradição.
Exílio e reinvenção: a literatura como refúgio
O golpe de Estado de Luís Bonaparte em 1851 colocou Hugo em rota de colisão com o novo regime. Recusando-se a reconhecer o imperador, partiu para o exílio voluntário. Viveu primeiro em Bruxelas, depois nas ilhas britânicas de Jersey e Guernsey, onde passou quase vinte anos. Foi um tempo de isolamento político, mas de extraordinária fertilidade literária.
Durante o exílio, Hugo escreveu Les Châtiments (1853), obra de poesia satírica em que ataca ferozmente o Segundo Império. Ali, o poeta abandona qualquer tom ambíguo: transforma sua pena em arma política. Também escreveu Les Contemplations (1856), marcado por uma dor íntima e intensa após a morte de Léopoldine, onde a poesia se torna forma de luto e transcendência.
Sua obra mais ambiciosa, Les Misérables, foi escrita entre 1845 e 1861, e publicada em 1862. O livro narra a trajetória de Jean Valjean em meio a um sistema de exclusão, injustiça e redenção. A recepção foi intensa — aclamado por uns, acusado de sentimentalismo por outros. Mas o impacto foi imediato, tornando-se um dos romances mais lidos da história literária francesa.
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Hugo também se dedicou à ficção marítima com Les Travailleurs de la mer (1866), ambientado em Guernsey, e L’Homme qui rit (1869), que reflete sua visão crítica da aristocracia britânica. Publicou ainda obras espirituais como La Fin de Satan e Dieu, que ficaram inacabadas, mas revelam seu interesse por misticismo e metafísica.
Esse período em Guernsey foi também um momento de introspecção visual: Hugo desenhava compulsivamente, criando imagens densas e simbólicas, muitas vezes mais experimentais do que sua literatura. Vivia recluso, mas nunca isolado do mundo. Sua casa em Hauteville House, hoje museu, era também um observatório político e poético.
O que Hugo fez pela Literatura francesa?
Victor Hugo ocupou com maestria os três grandes campos literários: a poesia, o teatro e o romance. Em cada um deles, deixou contribuições que ajudaram a transformar tanto a forma quanto o conteúdo da literatura moderna.
Na poesia, transgrediu os moldes neoclássicos e deu ao verso francês uma nova plasticidade. Obras como Les Orientales (1829), Les Feuilles d’automne (1831) e La Légende des siècles (1859–1883) exploram temas que vão da natureza à história universal. Seus poemas dialogam com a tradição lírica, mas também com o engajamento ético.
No teatro, rompeu com a rigidez das unidades aristotélicas. Peças como Lucrèce Borgia e Ruy Blas introduziram um novo pathos trágico, mais próximo das paixões humanas do que dos ideais heroicos clássicos. A recepção foi mista, mas o impacto no teatro francês foi duradouro: sua defesa da liberdade formal abriu caminho para novas experimentações.
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Já na prosa, Hugo tornou-se um marco. Seus romances são monumentais, tanto no volume quanto no alcance temático. Trabalha a marginalidade social, a cidade como personagem, os dilemas éticos, o papel das instituições e o tempo como força histórica. Ao fazê-lo, criou um modelo de romance total, em que o individual e o coletivo se cruzam o tempo todo.
Sua linguagem, por vezes acusada de excessiva, responde a uma ambição: fazer da literatura um espelho das tensões do mundo. O exagero, nesse caso, não é falha, mas reflexo da tentativa de captar o que escapa às formas moderadas. Hugo não buscava equilíbrio, mas verdade — mesmo que incômoda.
Por que ainda lemos Hugo?
Mais de um século após sua morte, Victor Hugo continua a provocar, inspirar e dividir. Seus livros seguem sendo lidos, adaptados, relidos. Suas ideias reaparecem em novos contextos, muitas vezes com urgência renovada. A pergunta que se impõe não é por que ele foi importante, mas por que ainda é.
Sua obra não nos oferece respostas fáceis. Ela exige tempo, atenção e disposição para entrar em um universo onde o bem e o mal não são absolutos, e onde o sofrimento não é ocultado, mas revelado como parte da condição humana. Essa honestidade continua desconcertante.
Talvez Hugo sobreviva justamente porque escreveu com intensidade, imperfeição e sinceridade. Porque seus personagens são profundamente falíveis, mas absolutamente reais. Porque acreditou, até o fim, que a palavra poderia alterar o destino. E isso — num tempo de ruídos e silêncios — ainda importa.
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Referências
Bibliothèque nationale de France (BnF). Manuscrits et éditions originales de Victor Hugo. Gallica.bnf.fr.
Robb, Graham. Victor Hugo: A Biography. W. W. Norton & Company, 1997.
Grossman, Kathryn. The Later Novels of Victor Hugo: Variations on the Politics and Poetics of Transcendence. Oxford University Press, 2012.
Bell, David. Victor Hugo and the Romantic Drama. Routledge, 2002.