A ascensão e a queda psicológica de Raskólnikov

Por Gabriel Andrade Adelino1

Entre todas as formas de arte, a literatura talvez seja a que mais intimamente se confunde com o tempo que abriga determinada obra. Sua matéria não se esgota na linguagem ou na imaginação, mas apresenta também o modo como uma época se pensa e se justifica. Diferente do jornalismo, que registra os fatos com pressa, ou das ciências sociais, que os dissecam com método, o romance lida com a espessura moral de um tempo, seus dilemas e suas idiossincrasias. Quando lemos um grande romance, para além de acompanhar a história de personagens fictícios, entramos em contato com uma maneira de ser no mundo, isto é, um modo de sentir, raciocinar, aspirar e falhar, que só é possível dentro de uma certa constelação histórica. Nesse sentido, cada personagem literário, seja Dom Quixote, Emma Bovary ou Raskólnikov, pode ser visto como uma espécie de alma coletiva, condensada numa única figura.

Quando Dostoiévski escreve Crime e Castigo, e concebe a figura de um jovem estudante que acredita poder matar em nome de uma teoria, o que se observa não é somente a dramatização fictícia de um personagem, nem apenas a construção de argumentos contra um crime. Ele está tornando visível um certo mal-estar do século XIX, um desconforto que não era apenas seu, nem apenas russo, mas europeu, moderno e, como o tempo mostrou, recorrente. Havia, principalmente naquela época, pessoas tão reais quanto os personagens do romance.

É nesse sentido que se pode falar da literatura como espelho. E é por isso que, muitas vezes, compreendemos melhor uma época lendo seus romances do que estudando suas estatísticas. O que o romance nos dá — e que falta ao discurso historiográfico — é a experiência encarnada de um tempo, ou seja, o modo como as ideias em circulação se infiltram nas vidas privadas e nas hesitações individuais.

Raskólnikov, nesse sentido, é uma espécie de arquétipo. Seu gesto, ao mesmo tempo frio e tresloucado, não pode ser reduzido a uma falha moral. O que o leva a matar não é o ódio, a vingança, a ganância ou a luxúria, mas uma ideia. Uma hipótese filosófica — como ele mesmo a define — que decide testar na prática. E o que Dostoiévski faz é acompanhar essa ideia desde sua formulação mais abstrata até a execução. O crime, no romance, é o ponto culminante de uma trajetória intelectual. E o que se explora ali é tanto a psicologia de um assassino quanto a genealogia de uma teoria.

Essa escolha narrativa não é gratuita. No século XIX, a figura do intelectual solitário — muitas vezes jovem, pobre, ressentido e embriagado por leituras — passa a ocupar lugar nas discussões públicas. A crença de que o mundo podia ser corrigido pela razão, de que os velhos códigos morais precisavam ser superados por uma ética mais racional, e de que o indivíduo esclarecido teria o dever de pensar por si mesmo, ainda que contra a tradição, tornava plausível a figura de alguém que considerasse o homicídio como uma experiência filosófica. Raskólnikov, sob esse aspecto, é mais um produto cultural que um mero criminoso. E o que Crime e Castigo nos oferece, ao narrar sua queda, é uma representação desse tipo — uma exposição dos seus pressupostos, dos seus impasses, das suas consequências.

Mas como se chegou a esse ponto? O que torna possível que um jovem universitário conceba o assassinato como uma prova de grandeza? Que tipo de imaginário — político, filosófico, social — torna verossímil a figura de um “homem extraordinário” acima das leis morais ordinárias? É esse o percurso que nos interessa aqui. Não vamos explicar um crime – essa tarefa nós deixamos para os ingleses – , mas tentar compreender uma mentalidade. Ver de que forma a figura do assassino racional é possível dentro de um certo horizonte histórico, e como esse horizonte se organiza em torno de promessas, frustrações e delírios próprios da modernidade europeia. A literatura, aqui, serve para nós como a arte que retrata uma época — com mais liberdade que a filosofia e mais humanidade que a sociologia. 

Um novo tipo de grandeza

A glória, durante boa parte da história europeia, esteve amarrada a formas mais ou menos estáveis de hierarquia. Ainda que alguns indivíduos se destacassem por coragem, inteligência ou feitos militares, era comum que a sua grandeza estivesse associada a algum tipo de mediação simbólica, religiosa ou social. O heroísmo, nessa lógica, era reconhecido por estar inscrito em uma ordem mais ampla. Servia-se à pátria, à fé, à monarquia, ao povo, à lei. Era difícil conceber a figura do herói como alguém que se bastasse a si mesmo. O prestígio ainda dependia de uma moldura. E essa moldura era fornecida por instituições que, embora em crise, ainda davam a aparência de continuidade.

Esse quadro começa a se desorganizar com o Iluminismo e, sobretudo, com a Revolução Francesa. O século XVIII, que já vinha formulando novas ideias sobre liberdade, progresso e razão, vê suas teorias ganharem forma em 1789. A derrubada da monarquia, o colapso das antigas estruturas de poder e o surgimento de uma nova classe política criam um ambiente onde o indivíduo, antes inserido em redes de pertencimento e obrigação, passa a se ver como centro de iniciativa e de vontade. A autoridade deixa de estar ancorada no nascimento e migra, pelo menos idealmente, para o mérito — ou para aquilo que se acredita ser mérito. O mundo, em poucas décadas, deixa de ser um palco onde os papéis estavam fixados, e se converte numa arena em que cada um, ao menos em teoria, pode lutar pelo protagonismo.

É nesse contexto que surge a figura de Napoleão Bonaparte, cuja trajetória pessoal se confunde com a própria ideia de que a glória pessoal pode ser conquistada com o suor das próprias mãos. Filho de uma família de origem modesta na Córsega, sem linhagem aristocrática nem heranças vultosas, ele rapidamente se transforma, por meio de uma combinação improvável de talento militar, senso político e ambição ilimitada, no homem mais poderoso da Europa. Seu exemplo, mais do que qualquer panfleto revolucionário, convence uma geração inteira de que o mundo não pertence mais somente aos príncipes, e que o destino já não depende de berço, mas de vontade. 

Alguns viram em Napoleão um usurpador brilhante, que substituiu o absolutismo hereditário por um autoritarismo plebiscitário. Outros o celebraram como símbolo máximo da energia individual, da autodeterminação levada ao paroxismo. Para o que nos interessa aqui, porém, não importa julgar Napoleão, mas entender o papel que sua figura teve no imaginário moderno. E a verdade é que ele tornou-se o paradigma do self-made man, o modelo daquele que vence por mérito. Alguém que encarna, ao mesmo tempo, a ascensão social e a ruptura com todas as formas herdadas.

Faço uma digressão: há filósofos que enxergam que toda a ideia de luta de classes só surgiu porque o homem comum passou a ter o vislumbre de uma vida melhor. Se antes um camponês aceitava sua condição com alguma resignação melancólica e até ressentida, é verdade, agora ele teria alguém para imitar. Como na famosa cena de Django livre, em que um escravo vê Django cavalgando rumo à sua liberdade, agora um homem comum via em Napoleão a possibilidade de alcançar a glória pessoal. Mas voltemos ao texto. 

Os autores franceses do século XIX captaram isso de forma notável. Balzac via em Napoleão uma espécie de espelho cínico da ambição burguesa. Suas personagens frequentemente admiram o imperador não pelos seus ideais, mas por ter feito do poder uma questão de estratégia. Já Stendhal, mais romântico, via no corso uma figura inspiradora — não pela política, mas pela vontade. Julien Sorel, seu jovem protagonista de O Vermelho e o Negro, lê com entusiasmo as biografias de Bonaparte e sonha repetir o feito. 

Na Rússia, o impacto desse imaginário foi, como sempre, mediado pela distância geográfica e pelo atraso institucional. Mas se as ideias demoravam a chegar, chegavam com redobrada intensidade. O entusiasmo juvenil da intelligentsia russa, impedida de participar da vida pública por causa da repressão czarista, encontrava nas ideias francesas uma via de sublimação. A leitura de Rousseau, de Voltaire, de Stendhal e Balzac inflamava os jovens. E o modelo napoleônico, filtrado por essas leituras, passava a operar como um horizonte desejável, um modelo mimético. O jovem russo — especialmente aquele sem recursos, mas dotado de alguma inteligência — passava a sonhar não com cargos públicos, mas com glória pessoal, mesmo que o custo fosse sangue e revoluções. E se a ascensão era bloqueada pelos mecanismos tradicionais, restava acreditar que uma ideia poderia, sozinha, abrir o caminho.

O protagonista de Crime e Castigo não parece ser apenas um jovem pobre em busca de algum sentido metafísico como é comum hoje em dia, mas alguém que internalizou profundamente esse imaginário da exceção. Seu crime é um gesto teórico, uma tentativa de verificar se pertence ao grupo dos “extraordinários”. Se é, como Napoleão teria sido, alguém autorizado a matar em nome de uma ideia. 

O tipo de mentalidade que sustenta essas figuras — individualista, racional, autoconfiante até o delírio — floresce, na Rússia, em solo preparado por décadas de repressão política e carência espiritual. É nesse encontro, entre uma teoria importada e uma juventude órfã de sentido, que Dostoiévski encontra seu tema. Antes de entrar no romance, será preciso entender melhor o tipo de racionalidade que sustenta esse gesto. 

A ideia como um vírus

Se a figura de Napoleão oferecia um modelo de ação, era inevitável que, em algum momento, surgisse também uma teoria para justificá-la. Gestos grandiosos, sobretudo os que desafiam convenções ou violam leis, raramente se sustentam apenas na vontade. É preciso que encontrem um sistema de ideias que lhes sirva de escora, ainda que improvisada. O século XIX, com sua abundância de doutrinas e sua confiança quase religiosa na razão, forneceu esse respaldo intelectual com generosidade. O Iluminismo, que começou como um movimento de crítica à superstição e à autoridade tradicional, desdobrou-se em sistemas filosóficos que, pouco a pouco, passaram a substituir os fundamentos religiosos por princípios racionais, e a tratar o mundo como um problema técnico a ser resolvido.

A matriz principal desse processo, sobretudo em sua versão mais agressiva, foi francesa. A herança de Descartes, Voltaire, Rousseau e dos enciclopedistas acabou gerando uma mentalidade que via na razão não apenas um instrumento de análise, mas um critério de julgamento absoluto. Todo erro humano, dizia-se com frequência, nascia da ignorância ou do preconceito. Bastaria esclarecer, educar, iluminar. O mal, em última instância, era um equívoco lógico — e, portanto, corrigível. Foi esse o espírito que, transposto à política, animou as reformas da Revolução Francesa e, mais tarde, inspirou as utopias socialistas. A ordem tradicional, com suas instituições envelhecidas e seus dogmas opacos, deveria ceder espaço a uma nova arquitetura moral, baseada na transparência dos princípios e na lógica da utilidade.

Com o tempo, essa mentalidade deslocou-se do campo das ideias para o campo da ação. Se os antigos princípios não resistiam ao exame racional, e se a nova ciência do homem prometia organizar o mundo de modo mais justo e eficiente, por que hesitar? Os projetos de reorganização social passaram a ser concebidos com uma linguagem de laboratório. Reformar significava reconstruir, reconfigurar, eliminar o que se julgava ineficaz ou arcaico. E, se necessário, destruir.

É importante perceber que essa forma de pensar não era, em sua natureza, necessariamente brutal. Tratava-se, em grande parte, de um otimismo epistemológico. A crença de que a razão, desimpedida por tradições obscuras, poderia enfim governar o destino humano. Mas é justamente essa crença que, ao ser radicalizada, acaba por abrir caminho a justificações morais antes impensáveis. Se o bem é aquilo que maximiza a utilidade ou promove o progresso, e se a razão pode medir esse progresso com alguma precisão, então um ato violento pode ser considerado moralmente legítimo, desde que seus efeitos sejam considerados positivos. A velha distinção entre meios e fins torna-se mais flexível. O que importa, ao fim, é o saldo.

Na Rússia do século XIX, essas ideias não chegaram em sua versão mais sofisticada. O ambiente cultural do país, ainda marcado pela censura czarista, pela ausência de instituições liberais e por um sistema educacional profundamente desigual, fazia com que as teorias europeias fossem recebidas mais como slogans do que como doutrinas articuladas. Os escritos de Rousseau, Fourier, Proudhon ou Saint-Simon eram lidos em cópias clandestinas, mal traduzidas, comentadas entre estudantes, e convertidas em panfletos ou parábolas revolucionárias. A intelligentsia russa, formada em grande parte por jovens universitários filhos de pequenos funcionários, abraçava essas ideias com uma mistura de desespero social e entusiasmo metafísico. E era nesse ambiente — de miséria urbana, de marginalização política, de falta de horizonte prático — que a lógica racionalista se transformava em febre.

Diferente do ceticismo francês, que muitas vezes mantinha um espírito irônico ou moderado, o racionalismo russo assumiu feições fanáticas. A razão, ali, já não servia apenas para criticar as estruturas existentes, mas para substituí-las. E, no vácuo deixado pela religião, pela tradição aristocrática e pelo colapso das antigas formas de autoridade, ela se apresentava como único critério absoluto. Era preciso, portanto, medir todas as ações humanas segundo sua funcionalidade.

Foi nesse contexto que autores como Dostoiévski perceberam o perigo — não apenas do radicalismo político, mas da mentalidade que o sustentava. Uma lógica aparentemente coerente podia, aos poucos, corroer os fundamentos da consciência individual, como no caso de Raskólnikov.

E esse experimento está alicerçado numa distinção que lhe parece fundamental, a de que existem dois tipos de pessoas — as ordinárias, que vivem dentro dos limites da moral comum, e as extraordinárias, que têm o direito, ou mesmo o dever, de ultrapassá-los em nome de algo maior. Essa distinção, embora nunca tenha sido formalmente aceita por nenhuma escola filosófica, era bastante familiar à retórica revolucionária da época. Napoleão, por exemplo, era citado como caso exemplar. Alguém que, ao ultrapassar os códigos convencionais, teria realizado algo de valor histórico incontestável. E, se a história o perdoou, por que não perdoaria a outros?

Dostoiévski conhecia bem esse tipo de argumentação. Criou personagens que levavam essas ideias até o fim, e que, ao fazê-lo, revelavam suas consequências interiores. Um dos alvos mais explícitos de sua crítica foi o escritor Tchernichévski, autor do romance panfletário O que fazer?, em que se descreve um mundo ideal organizado por indivíduos virtuosos, guiados por princípios científicos e racionais. Para Dostoiévski, esse tipo de otimismo era não apenas ingênuo, mas perigoso. Porque eliminava a culpa. E com ela, eliminava a alma.

Raskólnikov, ao conceber sua teoria, acredita que o problema do bem e do mal pode ser resolvido por uma equação. Se matar uma velha usurária e redistribuir seu dinheiro gera mais benefício do que mantê-la viva, então o gesto é justificável. O que está em questão não é a intenção, nem a dignidade da vítima, mas o resultado. O indivíduo passa a agir segundo uma lógica impessoal, que parece legítima justamente por ser impessoal — por excluir afetos, vínculos, remorsos.

O que Dostoiévski propõe, ao criar a história de Raskólnikov, não é uma moralização do gesto, mas um exame rigoroso de suas premissas. Ele não antecipa o castigo ou distribui lições, apenas segue o personagem até o fim de sua lógica. E, ao fazer isso, mostra como uma ideia pode, aos poucos, ocupar todos os espaços da mente — até que já não reste mais ninguém ali dentro, exceto a ideia. O crime, portanto, não é um ato tão surpreendente. É apenas o desfecho de uma análise lógica.

É essa lógica que Dostoiévski dramatiza. E é contra essa lógica — mais do que contra um crime isolado — que o romance se organiza. A figura de Raskólnikov não representa apenas um desvio patológico, mas a realização extrema de uma mentalidade. Uma mentalidade que, tendo perdido a fé, a tradição e o senso de limite, encontra na razão um substituto absoluto. E que, ao fazê-lo, acaba legitimando gestos que, fora desse contexto, pareceriam monstruosos.

Mas para entender plenamente esse tipo de personagem, é preciso observar mais de perto o solo psicológico em que ele se forma. Porque a ideia, por si só, não mata ninguém. O que a torna perigosa é o modo como se aloja numa consciência solitária — e como, ali dentro, pode crescer sem freio. 

Raskólnikov: o homem que queria ser uma ideia

O romance de Dostoiévski não apresenta, de imediato, a tese que o move. Não se inicia com uma confissão ou uma epifania, mas com o caminhar lento e hesitante de um estudante pelas ruas abafadas de São Petersburgo, envolto em pensamentos fragmentados e num mal-estar que parece físico, moral e metafísico ao mesmo tempo. 

As ideias que ocupam a mente de Raskólnikov — e que o levarão ao crime — não aparecem como conceitos previamente elaborados. Surgem, antes, como rumores internos, conversas ouvidas ao acaso, obsessões que se repetem, imagens recorrentes, e, sobretudo, como um incômodo que vai ganhando forma aos poucos, como se o próprio personagem estivesse tentando entender o que pensa enquanto pensa. 

Essa febre, que se manifesta em delírios, indica que a ideia, ao contrário do que muitas vezes se pressupõe, não atua como causa exterior ou justificativa posterior, mas como estrutura interna de percepção. Raskólnikov não concebe uma tese para, então, colocá-la à prova. Ele filtra os acontecimentos ao redor até que se encaixem em sua hipótese — ou, melhor dizendo, até que a realidade se curve à necessidade de confirmação que essa hipótese exige.

Dostoiévski trabalha esse processo com notável precisão narrativa. Em vez de um arco claro de queda e redenção, o romance oferece uma sequência de desajustes, hesitações, lapsos e reiterações. O crime, por exemplo, não é descrito como o ápice dramático de uma trajetória ascendente. Ele acontece quase como uma interrupção súbita, fruto de um acúmulo que não é totalmente consciente. E, depois dele, o enredo não se organiza segundo a lógica clássica do castigo ou da fuga, mas sim como uma série de reações internas — que vão do torpor à paranóia — em que o personagem tenta, retroativamente, justificar o gesto já cometido.

É esse movimento — de tentativa de coerência a posteriori — que dá ao romance sua tensão mais sutil. Raskólnikov não deseja apenas escapar da punição. Ele precisa, sobretudo, preservar a integridade da ideia. Precisa acreditar que aquilo que fez não foi apenas um erro, mas um gesto coerente com uma estrutura racional. E, por isso, recusa-se a aceitar interpretações morais ou sentimentais. Quando é confrontado por Sônia, por exemplo, sua maior resistência não está no reconhecimento do mal, mas na admissão de que seu pensamento era frágil. 

Essa insistência em manter a ideia viva, mesmo quando os efeitos práticos dela são desastrosos, revela um traço importante da organização subjetiva de Raskólnikov: o desejo de ser um princípio. De não apenas agir segundo uma teoria, mas de encarnar uma. Essa ambição, que poderia parecer meramente intelectual, adquire contornos existenciais no romance. Porque o que está em jogo, para ele, é a possibilidade de haver um critério interno que sustente sua identidade. Quando ele mata, não está punindo a velha, nem mesmo testando a sociedade. Está tentando provar algo sobre si. E o fracasso dessa prova, aos poucos, o enlouquece.

A deterioração de Raskólnikov não se dá por um arrependimento súbito, mas por uma exaustão contínua. A mente, saturada por sua própria teoria, começa a ruir, e ele mesmo, de forma inconsciente, começa a se sabotar e dar pistas para que o descubram. O pensamento, que deveria sustentar a ação, torna-se um fardo. A ideia, que prometia elevação, afunda-o num estado de delírio que o afasta tanto da realidade quanto de si mesmo. 

A solidão como marca do homem moderno

A figura de Raskólnikov não surge como uma anomalia no campo da literatura nem como uma invenção isolada de Dostoiévski. Ela pertence, por assim dizer, a uma linhagem de personagens do século XIX que encarnam uma mesma crise de pertencimento. São homens que, embora inseridos em sociedades razoavelmente organizadas e densamente habitadas, vivem num regime de desligamento interior que os afasta tanto da comunidade concreta quanto das tradições espirituais herdadas. Trata-se de uma solidão que não depende da ausência de vínculos objetivos, mas de um descompasso entre o sujeito e o mundo que o cerca — mundo este que já não oferece direções seguras nem impõe barreiras morais suficientemente sólidas para conter suas angústias.

Esse tipo humano tem raízes, por exemplo, na literatura francesa. Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, representa um novo ideal de grandeza deslocado da ação pública para a superação individual. Marcado por inteligência precoce e ressentimento social, movimenta-se entre as classes com frieza calculada, sem mediações afetivas. Sua trajetória não se pauta por códigos compartilhados, mas por um impulso interior que opera sem freios externos. Mesmo suas hesitações são menos morais do que estratégicas. Sua alma inteira se organiza como uma torre sem janelas.

Outro exemplo, mais pragmático, é Eugène de Rastignac, especialmente em O Pai Goriot. Vindo da província, descobre que a mobilidade social depende menos de virtudes que de estratégias. A famosa cena em que desafia Paris do alto de Montmartre — “A nós dois, agora” — condensa sua posição, a de que o mundo é um obstáculo a ser vencido, não um espaço de convivência. O sucesso, aqui, é uma tarefa solitária.

Esses personagens já não se realizam por inserção em uma ordem mais ampla — moral, política ou religiosa. Os valores herdados perderam o poder de articular uma visão coerente de mundo, e os novos aparecem como promessas vagas ou projeções subjetivas. O herói burguês do século XIX, como observou Lukács, é um solitário porque vive numa sociedade onde a totalidade se dissolveu. Ele já não participa de uma epopeia, mas protagoniza um drama individual.

Leia o ensaio completo de Lukács sobre Dostoiévski aqui.

No caso russo, essa condição é levada ao extremo. Raskólnikov, embora movido por ideias que circulavam nos panfletos e discussões acadêmicas de seu tempo, elabora sua teoria em isolamento quase absoluto. Suas conversas são monólogos disfarçados. A ausência de um ambiente dialógico, que permita o confronto de ideias e o amadurecimento moral, transforma o pensamento num sistema fechado. A mente, desprovida de atrito, converte-se numa espécie de laboratório onde a realidade é apenas um dado auxiliar. 

É aqui que Lukács identifica o traço mais perturbador desses personagens. Eles vivem, segundo ele, num “estado de experimento”. Não buscam transformar o mundo, como faziam os revolucionários clássicos, nem redimir uma comunidade, como os heróis épicos. O que desejam, acima de tudo, é experimentar a si mesmos — testar os limites da própria subjetividade e provar que são capazes de sustentar uma ideia até as últimas consequências. Trata-se de uma forma peculiar de niilismo, que não nega necessariamente os valores em nome do caos, mas que os substitui por um ideal de coerência interna. 

Esse tipo de mentalidade pressupõe uma certa solidão existencial. Não é questão de temperamento ou circunstância, mas de época. A modernidade fragmentou os referenciais comuns, desarticulou os papéis herdados e ofereceu ao indivíduo uma liberdade que se confunde com abandono. Sem tradição vigorosa, o sujeito passa a construir sua identidade com os escombros das doutrinas disponíveis — muitas vezes, sozinho.

Em Crime e Castigo, o isolamento de Raskólnikov é que cria condições de possibilidade de sua teoria. É perdido sem seus pensamentos que sua hipótese se fortalece, e a ideia, privada de oposição, torna-se absoluta. Assim, a mente perde a capacidade de reconhecer o outro como mais do que um obstáculo; a ação deixa de ser diálogo com o mundo e vira reflexo de um delírio autocentrado. O crime não resulta de impulsos irracionais nem de miséria extrema. Surge da junção entre racionalidade desvinculada da experiência e solidão radical. Não é um surto, mas uma conclusão lógica — ainda que fundada sobre uma premissa falsa.

O que resta de humano em Raskólnikov

Depois do crime, não há paz, nem qualquer sensação de ter vencido uma prova. Raskólnikov não sente, a princípio, arrependimento, mas uma espécie de desgaste interno, como se algo tivesse se desfeito dentro dele e não encontrasse mais forma. Ele tenta seguir vivendo como antes, arrastando-se pelas ruas, repetindo a teoria que o havia levado ao crime, buscando entre conhecidos algo que a legitime, mas as palavras já não soam com a mesma nitidez, e a lógica que antes sustentava sua certeza agora parece atravessada por um remorso que não cessa. A febre, os delírios, o isolamento — tudo isso indica um corpo que já não suporta manter a rigidez da ideia que o moveu. Não se trata de confissão, nem de conversão, muito menos de culpa no sentido moral ou religioso do termo. O que se percebe é apenas um cansaço crescente, uma espécie de falência silenciosa da alma, como se sua identidade, construída sobre um princípio abstrato, não tivesse resistido ao contato com o real.

É nesse ponto que Sônia se torna uma presença importante. Ela não surge como resposta pronta, nem necessariamente como chave simbólica para a redenção. Ela apenas aparece e permanece. Não propõe um novo sistema, não tenta desmenti-lo. Lê um trecho do Evangelho, mas não exige que ele entenda. Escuta mais do que fala, e não recua diante do que ele é. Durante muito tempo, Raskólnikov não sabe o que fazer com isso. Ele continua oscilante, dividido entre o orgulho ferido e a exaustão íntima que já não consegue esconder. Mas à medida que os dias avançam, algo começa a mudar.

A viagem à Sibéria, que poderia parecer o cumprimento de uma pena, não vem carregada de simbolismo moral. Ele vai como quem se entrega a um caminho que já não sabe nomear, sem pressa, sem certeza, sem promessa. Ali, entre os condenados, Raskólnikov passa a experimentar uma vida que já não precisa ser explicada. Trabalha, convive, silencia. Escreve para Sônia. É um tempo sem grandes acontecimentos, mas com pequenos desvios que, pouco a pouco, insinuam a possibilidade de um recomeço. Em certo momento, sem anúncio, ele chora. Não se trata de epifania nem de reconhecimento explícito do erro. É apenas uma abertura — talvez mínima, mas definitiva — para uma sensibilidade que resistia a nascer.

Ao final, o que resta não é a imagem de um homem purificado, tampouco a lição de que o sofrimento traz sabedoria. Raskólnikov não se torna exemplar. Continua marcado pelo que fez, pela teoria que quis encarnar, pela solidão que construiu. Mas algo nele cedeu. E é essa brecha, pequena, demorada, sem espetáculo, que dá ao romance sua conclusão mais alta. A ideia, que o isolava, cai por terra. E o outro, que antes era apenas instrumento ou obstáculo, passa a ter algum valor real.

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  1. Gabriel é redator, publicitário e roteirista. ↩︎

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