Por Ana Júlia Galvan1
Quanto mais falo na internet sobre escrever, mais observo algo que me é muito interessante: de todas as artes, a literatura talvez seja a que mais permita o ingresso de qualquer um que nela deseje ingressar, dado que o custo de entrada é baixo: em rigor, precisa-se apenas de papel e lápis para começar. No entanto, talvez seja a expressão artística em que mais se sofre — para começar, para perseverar, para integrá-la na vida cotidiana; são muitos, e reais, os sofrimentos — o que leva a pensar se a escrita, de fato, é algo para todos.
Bem, podemos pensar que talvez a escrita como elevada expressão artística não seja para todos; talvez seja coisa para “escolhidos” — talvez não valha a pena nem tentar começar, podem pensar alguns, e com certa razão: começar a escrever comparando-se aos grandes escritores é uma bela receita para o fracasso e para a frustração.
Entretanto, creio que a escrita seja ferramenta muito útil num processo fundamental para todos: o conhecimento de si.
Diários, cadernos e a escrita livre
Se o leitor for como eu e se aventurar em pesquisas internet afora sobre o hábito da escrita, verá que é muito comum a indicação de cadernos de notas, de cadernos de estudos, de diários, dos tais bullet journals. Tentei já muitas vezes manter um diário, mas sempre fracassei — escrever pela noite? Durante o dia? Quando? E o que é relevante? Nunca funcionou bem para mim, pois a ideia de diário sempre me pareceu misteriosa demais. Também nunca consegui fazer nem sequer um caderno de estudos bem organizado — os interesses e as leituras acabam se confundindo…—, e ainda menos um bullet journal: os modelos deste me parecem tão cheios de esmero e de decorações exuberantes que só a ideia de tentar reproduzir algo semelhante me desmotiva. Além do mais, o destaque para os “acessórios” — as mil formas de organizar, de decorar, de separar em cores esquemáticas… — sempre me pareceu uma forma esteticamente agradável de tomar o escasso e precioso tempo da escrita propriamente dita.
Eu já escrevia, mas não tinha a frequência que desejava ter e isso me era um incômodo recorrente. Fazia tempo que, sem o saber direito, eu buscava um formato simples que me permitisse fixar na rotina o hábito da escrita. Assim, quando deparei com a ideia de páginas matinais — que não exigiam mais que papel e lápis —, fiquei verdadeiramente empolgada e resolvi experimentá-la.
As primeiras páginas da manhã
Salvo engano, quem primeiro cunhou este nome foi a autora Julia Cameron, em seu famoso e excelente livro O Caminho do Artista. Nele, Julia defende que a escrita é ferramenta fundamental para qualquer um que queira construir uma vida permeada de criatividade, sendo ou não sendo, desejando ou não desejando ser artista.
A prática das páginas matinais tem como fundamento o seguinte: ao acordar, antes de interagir com o mundo, escreve à mão três páginas sobre o que vier à cabeça. A proposta é essa mesmo: nenhum assunto é proibido e são pouquíssimos os limites impostos. A finalidade deste exercício é liberar o fluxo criativo; por isso, Julia recomenda fortemente que essas páginas não sejam escritas com o intuito de serem mostradas a ninguém (na verdade, a autora diz que, depois de escritas, podemos fazer o que bem entendermos com elas, inclusive descartá-las).
Pois bem. Quando comecei a escrever as páginas matinais, ainda não tinha lido o livro de Julia Cameron — segui orientações gerais de conhecidos que as faziam e pus-me a deitar a caneta sobre o papel todos os dias, logo ao despertar, escrevendo de três a quatro páginas por manhã enquanto sorvia um cafezinho, antes de me lançar às demais atividades do dia.
De início, sentia-me travada e mesmo tímida — era-me difícil encontrar um assunto e, quando o tinha, era-me difícil não cair na armadilha de tentar escrever “bonito”, de soar bem, de escrever de maneira polida, como se alguém mais fosse ler o que eu escrevia ali. Porém, o exercício é diário e a repetição vai, inevitavelmente, nos despojando do que não é essencial: não demorou para que eu me cansasse da pose que queria sustentar para mim mesma e para que passasse a tentar estabelecer diálogo com uma parte mais profunda de mim. Em coisa de poucas semanas, percebi-me sozinha, o que me foi salutar: sabendo-me só naquele momento e naquela página, pude começar a me abrir de verdade, falando de minhas frustrações e de minhas esperanças, de minhas chateações e de minhas alegrias, dos planos para o dia e dos fatos da rotina.
Aos poucos, fui percebendo que o que eu tinha diante de mim não era apenas uma página em branco: era uma chave para uma realidade mais profunda do que aquela em que eu me acostumara a viver.
Efeitos inesperados
Com o correr do tempo e a continuidade do ato, comecei a notar claramente certos “efeitos colaterais” inesperados: passei a sentir-me menos ansiosa com os afazeres do dia; mais concentrada nas tarefas de toda sorte; as reclamações recorrentes foram diminuindo, porque agora eu as exprimia em recolhimento — e, sobretudo, as investigava sem temer a vulnerabilidade da exposição. Passei a entender certos padrões de comportamento, meus e alheios, e a enxergar contornos mais claros nos meus pensamentos; a ter ideias e fala cada vez mais alinhadas uma à outra, a expressão tomando formas mais adequadas ao conteúdo. Comecei também a fazer planos e a estabelecer metas. Passei a sentir-me mais próxima de mim mesma e, no lugar da expressão postiça feita para impressionar, vi surgir uma expressão bem mais autêntica.
Além disso, percebi-me constante — coisa essencial para quem tem ambições literárias, intelectuais, artísticas, pois esses todos são trabalhos que exigem perseverança. Escrever as páginas matinais não me era necessariamente agradável no momento da escrita, mas me trazia um benefício maior à medida que o tempo passava. Manter a frequência diária era uma pequena vitória sobre o meu comportamento passado e reiterava o meu compromisso com a vida que eu queria ter.
Era como se, pela primeira vez, eu experimentasse a escrita como ferramenta de desenredar pensamentos e até de terapia.
Sejamos sinceros
Além da clareza e da constância, um outro efeito colateral inesperado, mas muitíssimo bem-vindo, começou a aparecer cada vez mais forte: a sinceridade. Não me refiro à rispidez que muito se confunde com sinceridade, mas sim à lisura no reconhecimento do que penso e do que me é genuinamente importante. A partir desse reconhecimento — que é percepção, entendimento e admissão —, torna-se cada vez menos penosa a construção de uma visão de futuro, porque aprendemos a identificar as nossas necessidades e as nossas vontades autênticas. Partindo delas, pareceu-me mais fácil estabelecer planos e caminhos, pois o objetivo está mais restrito e, por isso, melhor definido.
Chegando a este ponto, consegui começar a traçar planos de ação para o que gostaria de fazer: comecei minha newsletter, cuja existência era uma vontade que eu buscava esconder de mim mesma, por puro medo da exposição; meses depois, comecei meu podcast sobre artes, pois, a partir das páginas matinais, notei que vinha sentindo uma necessidade grande de me envolver mais com as artes, de ter pretextos para conversar com amigos — e para fazer amizade com pessoas que sempre achei interessantes — e melhorar a minha capacidade de falar “em público” (até onde se pode considerar que manter um canal no Youtube seja falar em público). Não é que o medo da exposição não esteja mais lá; ele permanece, mas já não paralisa — e essa distinção é a diferença entre desejo e estagnação e vontade e ação, por mais difusa e capenga que esta última dupla seja de início. Ninguém domina algo de um dia para o outro e, apesar da frustração que isso possa gerar, é preciso começar de algum lugar.
Além disso, escrevendo diariamente, passei a vislumbrar o futuro com mais facilidade e a ter mais clareza dos meus projetos de vida. De tanto derramar-me nas páginas matinais, consigo agora reconhecer que é desejo meu, e sempre foi, ser escritora — e talvez esta pareça ao leitor uma postura incongruente, já que disse que comecei essa prática justamente para estabelecer o hábito da escrita. O fato é que não é fácil entender as nossas próprias motivações, principalmente quando estamos ligeiramente perdidos; mas escrever nos ajuda a esclarecer os próprios pensamentos e as próprias motivações.
Escrevendo todos os dias, não só tenho mantido o hábito da escrita, como também tenho dado vazão à minha criatividade: as páginas matinais veem em germe muitos dos textos que escrevo e que publico na newsletter, bem como me abrem muitas ideias de ensaios e de contos que, não fosse esse cultivo diário, talvez eu jamais captasse. Este relato mesmo é fruto direto e indireto das páginas matinais — em conteúdo, sim, mas também em forma: reconhecida a vontade de escrever, a vontade de ser escritora, decidi que iria aproveitar as oportunidades que me aparecessem de expandir o meu raio de atuação — e aqui estou, escrevendo a convite do CLC.
De repente, a pessoa que quero ser já não me parece desconectada de quem sou agora, mas sim um ser em continuidade, que age desde já guiando-se pela visão de futuro e plantando desde já a semente dos frutos que deseja colher nas próximas décadas. Assim, enquanto escrevo, aprendo a escrever e vou tornando-me escritora; lapidando a mim, vou lapidando também a minha maneira de criar e ampliando a gama do que expressar — e isso vale para a escrita como para outras áreas da vida. Aos poucos, até mesmo aquela imagem do escritor-artista começa a não ser mais apenas um sonho inalcançável e, por isso mesmo, retraído e escanteado, mas antes algo a que se pode chegar com perseverança e cultivo devotado à expressão escrita. Repito: os medos permanecem, mas já não paralisam.
As páginas matinais são uma ferramenta simples e acessível, cujos benefícios àqueles que a elas se dedicam são inumeráveis. Viver a vida é seguir um caminho de profundo mistério; essas páginas de escrita livre nos ajudam a mapear e a compreender melhor essa terra incognita.
- Ana Júlia Galvan é escritora, tradutora literária (do inglês e do francês) e estudante das artes. É formada em Cinema e Realização Audiovisual pela Universidade do Sul de Santa Catarina e mestre em Estudos da Tradução pela University of Ottawa. Escreve sobre arte, cultura e coisas da vida no Periódico da Ana (newsletter) e tem “conversas interessantes com pessoas interessadas” sobre obras de arte no Entremeios (canal no YouTube). Natural de Santa Catarina, mora no Canadá desde 2017. ↩︎