Poesia gauchesca: o gênero que une Brasil, Argentina e Uruguai

Entenda o que é poesia gauchesca e por que ela é tão importante para a cultura do sul da América Latina.

Redação do CLC

Há um canto que ecoa pelas vastas planícies do sul da América. Um canto que mistura lamento e coragem, liberdade e perda, e que atravessa gerações em forma de versos simples, vibrantes, quase sempre acompanhados por um violão e por uma voz firme. Esse canto é a poesia gauchesca.

Poucos gêneros literários têm uma relação tão visceral com o território, o estilo de vida e as tradições quanto esse gênero poético. Surgida como expressão da vida rural nos pampas do Cone Sul, a poesia gauchesca atravessa fronteiras e séculos, revelando um imaginário comum entre Brasil, Argentina e Uruguai — embora com matizes próprios em cada região.

O cenário é rural, mas os dilemas são universais: amor, justiça, liberdade, pertencimento, honra, o choque entre o antigo e o novo. Neste artigo, exploramos as origens, características e obras centrais da poesia gauchesca nos três países, destacando sua importância cultural e literária. Mas antes, é preciso desfazer uma confusão comum: poesia gauchesca não é o mesmo que poesia gaúcha.

Poesia gaúcha ou poesia gauchesca: qual a diferença?

A poesia gauchesca é um gênero literário que se desenvolveu no século XIX, com raízes profundas tanto na tradição oral dos pampas quanto nas influências da literatura ibérica. Trata-se de uma poesia que costuma adotar a voz do próprio gaúcho — o homem do campo, cavaleiro solitário das planícies — usando uma linguagem carregada de expressões locais, e tratando de temas como a liberdade, a justiça e a dureza da vida rural.

Já a poesia gaúcha, no Brasil, é um termo mais abrangente. Ela inclui não só os versos de inspiração gauchesca, mas também as produções líricas, urbanas e existenciais de autores sulistas. Nomes como Mário Quintana ou Carlos Nejar são exemplos de grandes poetas gaúchos que não escreveram no gênero gauchesco. Portanto, embora toda poesia gauchesca brasileira seja poesia gaúcha, nem toda poesia gaúcha pode ser considerada gauchesca.

As origens da poesia gauchesca: entre a Península Ibérica e os pampas

Embora a poesia gauchesca seja essencialmente sul-americana, suas raízes encontram origem na tradição oral ibérica. Ela nasce do encontro entre duas tradições: de um lado, a vida concreta dos pampas e sua rica oralidade; de outro, a herança poética da Península Ibérica, em especial da tradição espanhola. 

Suas formas métricas, os recursos de repetição e até mesmo os temas — como o exílio, a honra ferida e a figura do cavaleiro solitário — provêm dos romanceiros espanhóis, especialmente aqueles reunidos no chamado Romancero Viejo. Compostos em versos octossílabos (em português, correspondendo à nossa redondilha maior) e rimas toantes, esses poemas foram transmitidos por via oral ao longo de séculos, e cruzaram o Atlântico com os colonizadores e seus descendentes.

Um exemplo clássico é o Romance del prisionero, que começa assim:

“Que por mayo era, por mayo, 

cuando hace la calor, 

cuando los trigos encañan 

y están los campos en flor…”1

Esse lirismo bucólico, repleto de imagens naturais e marcado por um tom de saudade, encontra ecos claros nos versos da poesia gauchesca. A figura do payador, trovador itinerante do Cone Sul, é o herdeiro direto dos menestréis ibéricos. E a payada, forma poética central no gênero gauchesco, consiste em um duelo de versos improvisados entre dois poetas populares, muitas vezes acompanhados por violão. Era mais do que entretenimento: tratava-se de um ritual de sabedoria.

A poesia gauchesca é, portanto, um ponto de encontro entre o velho e o novo mundo: a herança poética peninsular, moldada pelos ventos dos pampas, ganhou ali uma sonoridade nova, uma urgência diferente — a de narrar as transformações da América e dos seus homens esquecidos. Por isso, é possível dizer que a poesia gauchesca representa, ao mesmo tempo, uma continuidade e uma transformação da tradição hispânica: ela adapta formas antigas para narrar os dramas e dilemas dos pampas.

A poesia gauchesca na Argentina: entre o mito e a nação

Na Argentina, a poesia gauchesca se enraizou profundamente e tornou-se parte fundamental da construção do imaginário nacional. Durante o século XIX, especialmente após a independência, a figura do gaúcho foi sendo moldada como um arquétipo do argentino ideal: livre, corajoso, orgulhoso de suas raízes.

Autores como Estanislao del Campo, em Fausto (1866), deram ao gênero um tom satírico e urbano. No poema, um gaúcho assiste à ópera Fausto de Gounod, sem entender que tudo é encenação. Ao narrar a experiência a um amigo, ele diz:

¡Y no era el diablo un enano!

¡Ni tenía rabo ni olor!

¡Todo mentira, señor!

Me han tomado por paisano!” 2

O humor do poema revela o choque entre tradição rural e modernidade europeia, e ironiza a elite culta da capital.

Além de del Campo, poetas como Hilario Ascasubi e Rafael Obligado também marcaram a poesia gauchesca argentina, consolidando o estilo e diversificando suas vozes. O gaúcho, ora mártir, ora herói, ora zombeteiro, passou a ser um espelho das contradições sociais e políticas do país. Mas, de todos estes, não há quem tenha sido tão importante para a poesia gauchesca argentina quanto José Hernández e seu inesquecível Martín Fierro.

Martín Fierro: o maior canto da alma gaúcha

Martín Fierro, de José Hernández, foi publicado originalmente em duas partes: El Gaucho Martín Fierro (1872) e La Vuelta de Martín Fierro (1879). O livro é muito mais que um poema longo: é uma espécie de epopeia rural, que mistura denúncia social, filosofia popular e lirismo rústico.

Martín Fierro, o protagonista, é um gaúcho forçado a abandonar sua vida simples quando é recrutado à força e depois perseguido pelo próprio Estado que o deveria proteger. Ele torna-se fugitivo, sobrevivendo na margem da legalidade e buscando uma forma de justiça própria. Como diz num de seus versos mais célebres:

“Aquí me pongo a cantar

al compás de la vigüela

que el hombre que lo desvela

una pena extraordinaria

como el ave solitaria

con el cantar se consuela”3

Martín Fierro foi um sucesso imediato e transformou-se num símbolo nacional. Borges chegou a dizer que a obra era “uma das maiores conquistas da literatura argentina”4. Sua linguagem direta, repleta de sabedoria popular, e seu profundo senso de identidade coletiva tornaram o livro um marco não só literário, mas político e cultural. 

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No Uruguai, a resistência poética dos campos

Compartilhando do mesmo espírito, o Uruguai também teve papel pioneiro na formação da poesia gauchesca. O nome mais importante dessa gênese é Bartolomé Hidalgo (1788–1822), considerado o primeiro poeta verdadeiramente gauchesco do Cone Sul. Ele escrevia cielitos e diálogos patrióticos, usando a linguagem do povo para falar de independência, injustiça e liberdade. Em um de seus versos, afirma:

“El que quiere ser patriota

debe al pueblo defender

y con su lanza vencer

a todo el que lo azota” 5

A obra de Hidalgo influenciou diretamente a tradição argentina e fixou temas que seriam recorrentes em toda a poesia gauchesca: o enfrentamento à autoridade injusta, a exaltação da terra natal e o orgulho de ser do campo. Sua poesia, simples em forma, é contundente em conteúdo.

Autores como Elías Regules, médico e poeta, deram continuidade à tradição no século XIX, aprofundando o retrato do gaúcho como símbolo de liberdade. Já Antonio Lussich, também uruguaio, contribuiu com poemas líricos sobre a vida no campo e o contato com a natureza. 

A literatura gauchesca uruguaia preserva até hoje seu vínculo com o espírito popular, e continua viva em festivais e encontros literários, como também ocorre nos demais países do Cone Sul. 

A poesia gauchesca no Brasil: eco dos pampas no Rio Grande do Sul

No Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, a poesia gauchesca desenvolveu uma voz própria, ainda que afinada ao coro platino. Aqui, o gaúcho é também figura de resistência, moldado pelas guerras locais — como a Revolução Farroupilha — e pelo orgulho da terra e dos costumes. A oralidade sempre foi um traço marcante dessa tradição.

Um dos maiores nomes do gênero no Brasil é Jayme Caetano Braun, payador, radialista e poeta que levou a poesia gauchesca ao grande público. Em um de seus versos, diz:

Sou do pago e me apresento

com a alma cheia de estrada

minha rima é encilhar vento

minha vida é campeirada” 6

Seu estilo une lirismo, ironia e sabedoria popular, e ele se tornou referência obrigatória para qualquer um que queira conhecer a alma do gaúcho brasileiro.

Outros nomes como Aparício Silva Rillo e Glaucus Saraiva também merecem destaque. Suas obras abordam a lida campeira, os valores da hospitalidade, a bravura do peão e a nostalgia do campo. A poesia gauchesca brasileira é, ao mesmo tempo, celebração e resistência — uma forma de manter viva uma cultura que se constrói no andar do cavalo e no compasso da milonga, e segue pulsante em cada lugar do Rio Grande do Sul, especialmente nos Centros de Tradição Gaúcha (CTGs).

Mas o que, afinal, é uma payada?

A payada é talvez a expressão mais viva e dinâmica da poesia gauchesca. Mais que um gênero, é um acontecimento: o duelo poético entre dois payadores, que improvisam décimas em resposta um ao outro, diante de uma plateia atenta. A origem dessa prática remonta à tradição ibérica, mas nos pampas ganhou novo fôlego, nova alma e um tom marcadamente regional.

O desafio pode durar horas e exige rapidez mental, domínio da métrica e profunda ligação com os temas populares. Não raro, as payadas abordam política, amor, religião, vida e morte. A plateia vibra, reage, escolhe seu favorito. O evento é tanto um espetáculo quanto uma aula de identidade.

Figuras lendárias como Santos Vega, personagem mítico da Argentina, ou Gabriel Marín e Braun, no Brasil, mantiveram viva essa tradição, que hoje é reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial. Como escreveu Braun:

“O payador é a estampa

de um tempo que não morreu

porque o verso que se escampa

não se cala nem com breu” 7

Uma herança que atravessa fronteiras

Por esses e tantos outros motivos, a poesia gauchesca é um exemplo raro de expressão literária transnacional. Com raízes comuns, mas expressões singulares em cada país, ela revela como o imaginário coletivo dos pampas sobreviveu às fronteiras políticas. Embora hoje o gênero não ocupe o centro das atenções da crítica literária, continua vivo nas feiras, festivais, rodeios, escolas e encontros de poetas e payadores.

Além de seu valor estético, essa poesia é uma ferramenta de memória coletiva. Ela resgata histórias, transmite valores e conecta o presente ao passado. Lida em voz alta, como nasceu para ser, a poesia gauchesca ainda pulsa — como um coração em galope sob o céu aberto.

Por que ler poesia gauchesca hoje?

Ler poesia gauchesca é mais do que conhecer um gênero literário: é adentrar um mundo onde a linguagem é viva, o herói é o homem comum e a paisagem é tão importante quanto a história. Em um tempo de urbanização acelerada e distanciamento das raízes, a poesia gauchesca nos convida a escutar outra cadência — a dos cascos dos cavalos, do vento nos campos, do verso improvisado sob o céu aberto.

E como disse Hernández em Martín Fierro:

“Los hermanos sean unidos
esa es la ley primera;
tengan unión verdadera
en cualquier tempo que sea…” 8

A poesia gauchesca nos ensina não apenas a falar, mas a pertencer. E por meio destes versos, somos capazes de conhecer e pertencer à tradição literária que une os países da tríplice fronteira – Argentina, Uruguai e Brasil – mesmo que não sejamos nascidos nessas terras. Afinal, esse é poder da literatura: a partir de algo tão regional, somos capazes de contemplar dilemas universais, identificar-nos com lutas comuns e em seus versos, ao som da milonga, aprender a ver o mundo sob a paisagem do pampa.

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  1. Trecho de “Romancero del prisionero”, que pode ser lido na íntegra no site da Universidad Complutense de Madrid. ↩︎
  2. DEL CAMPO, Estanislao. Fausto. Buenos Aires: Librería de Mayo, 1866. ↩︎
  3. Hernández, J. (2025). Martín Fierro. Dois Irmãos, RS: Clube de Literatura Clássica, p. 13. ↩︎
  4. BORGES, Jorge Luis. El Martín Fierro. Buenos Aires: Emecé, 1953. ↩︎
  5. Trecho retirado de RAMA, Ángel. La literatura gauchesca. Montevideo: Arca, 1982. ↩︎
  6. BRAUN, Jayme Caetano. Galpão de Estância. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1980. ↩︎
  7. BRAUN, Jayme Caetano. De Fogão em Fogão. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.
    ↩︎
  8. Hernández, J. (2025). Martín Fierro. Dois Irmãos, RS: Clube de Literatura Clássica, p. 279. ↩︎

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