Elementos do Paraíso Perdido do Clube – III

11. Joost van den Vondel (1587-1679) é aclamado como o maior poeta holandês de todos os tempos, tendo cultivado sobretudo o teatro, mas também a poesia lírica e a tradução. Uma das páginas mais intrigantes da história da literatura tem a ver com a relação entre duas de suas obras e PARAÍSO PERDIDO, de John Milton.
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Trata-se das tragédias “Lucifer”, de 1654, e “Adam in Ballinschap” (Adão no Exílio), de 1664, duas de suas obras-primas. Ambas lidam com o mesmo tema de PARAÍSO PERDIDO, cuja primeira edição saiu em 1667, e há várias passagens semelhantes entre as obras do holandês e a do poeta inglês, sem mencionar que Milton concebeu primeiro seu poema como tragédia, para só mais tarde se decidir pela forma épica.
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Acontece, porém, que os primeiros esboços da tragédia de Milton datam dos anos 1640. Tudo não passaria, então, de uma grande coincidência? Ou Milton, mesmo havendo tido a mesma ideia antes de Vondel, ainda pôde aproveitar as obras do holandês como material para seu próprio trabalho? Mas Milton conhecia a língua holandesa?

12. …que assemelha a lua, quando a encara
Pelo ótico instrumento, à prima noite,
Do Fésolo no tope ou no Valdarno,
O hábil Toscano para ver se pode
No maculado globo descobrir-lhe
Novos rios, mais terras, mais montanhas.

– Paraíso Perdido, I, 287-291.
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A comparação do escudo de Satã à lua observada ao telescópio de Galileu é a primeira das referências que Milton faz em seu poema ao grande cientista. O próprio Milton não era estudioso das ciências naturais, e, como fica claro em diversas passagens de PARAÍSO PERDIDO, sua posição em relação aos grandes debates acerca do movimento terrestre lhe eram até certo ponto indiferentes, sendo Adão alertado pelo anjo Rafael a não se preocupar em saber tais coisas.
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No entanto, o conhecimento que travou com Galileu certamente marcou sua vida. Foi em 1638, ainda antes de completar 30 anos, que o poeta inglês partiu em viagem pelo continente, atravessando a França até a Itália. Em Florença, através provavelmente de seu filho Vincenzo Galilei, o poeta conheceu o grande físico. Nada sabemos dos detalhes do encontro, já que Milton não nos deixou nenhum relato, mas o fato era que Galileu estava há cinco anos preso, em Arcetri, depois de condenado pela Inquisição. Sendo Milton puritano, convicto de que o catolicismo era uma heresia, não é grande surpresa que aquele senhor septuagenário, quase cego, lhe inspirasse grande admiração.
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Na Toscana, onde o poeta ficou até setembro de 1638, Milton travou conhecimento ainda com muitos outros personagens, tendo visitado Vallombrosa, cuja paisagem outonal também é mencionada em PARAÍSO PERDIDO.

13. Aventurei-me a profundar nas sombras
Pela celeste Musa doutrinado:
Mas tu não entras mais nestes meus olhos:
[…]
Não me escapando nunca da memória
Tamires e o Meônide afamados,
O áugur Tirésias, e Fineu vidente,
Cegos — iguais a mim neste infortúnio
– Paraíso Perdido, III, 19-36.
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John Milton compôs seu grande poema PARAÍSO PERDIDO inteiramente cego, ditando os versos para as filhas, que lhe serviam de escribas. Em 1649, ano da proclamação da república na Inglaterra, após a execução do rei Carlos I, Milton ficou cego de um olho, começando a perder a visão do outro num processo longo e penoso que durou três anos – anos esses que trabalhou com quanto afinco pôde no Conselho de Estado da nova república. No fim, apesar dos mais variados – e bárbaros – tratamentos, Milton recolheu-se na mais profunda escuridão, completada com a morte de sua mulher e de seu único filho varão.
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Nos versos dolorosos, mas nobres, citados acima, o poeta inglês recorda-se dos poetas e profetas da Antiguidade que também não possuíam o sentido da visão – entre eles, Homero, o “Meônide” –, cercando-se espiritualmente de companheiros não só de vocação, mas também de infortúnio, dando o mesmo exemplo de Dante: fazendo-nos lembrar que os grandes poetas e escritores comungam de uma grande tradição, da qual não sentem medo nem isolamento; pelo contrário, a elas se sentem irremediavelmente ligados e nenhum receio têm de continuar a levar, acesa, a tocha que lhes foi confiada por seus predecessores.

14. semper ad eventum festinat et in medias res
non secus ac notas auditorem rapit

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀- Arte Poética, 148-9.
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“Sempre se apressa rumo ao acontecimento, e para o meio das coisas, / como se fossem conhecidas, arrebata o ouvinte…” Esses versos de Horácio sobre Homero fizeram grande sucesso na história da literatura. Aqui, o poeta latino descreve uma “técnica” usada pelo grego: a de começar a narrativa no meio dos acontecimentos, e não no início. Assim, a “Ilíada” começa no último ano da Guerra de Troia, como se já soubéssemos de tudo que acontecera antes. Na “Odisseia” é um pouco diferente: encontramos Telêmaco em busca de seu pai, e, mais tarde, vemos Odisseu no meio do mar, à deriva após uma tempestade: só depois de ser acolhido no palácio de Alcínoo, o herói relata todas as aventuras por que passou após deixar Troia.
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Essa “técnica” que Homero emprega em seus poemas passou à posteridade sob a expressão horaciana: é a narrativa “in medias res”, na qual a história começa no meio, e não no início. Quase todos os poetas épicos da Antiguidade e da Modernidade fizeram assim. Na “Eneida”, por exemplo, após ser acolhido no palácio de Dido, Enéias narra à rainha a queda de Tróia e suas peripécias no mar até chegar a Cartago. Em “Os Lusíadas”, Vasco da Gama, recebido pelo rei de Melinde, conta toda a história de Portugal e suas aventuras até chegar à costa oriental da África.
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Em PARAÍSO PERDIDO não é diferente. O poema começa com a queda de Satã e seus anjos no Inferno; somos informados de seus planos para perverter a nova criatura de Deus, o Homem; vemos Satã descobrir o Paraíso e ser expulso do Éden pelos anjos. Só depois de tudo isso, Rafael conta a Adão a história da criação do Universo, a batalha no Céu, a queda dos anjos, as origens do Éden.

15. …não folgará vendo tão firme
Teu brio audaz, a quem da morte o ameaço,
SEJA O QUE A MORTE FOR, não desanima
De ultimar o que pode pôr-te em gozo
De vida mais feliz onde conheças
O bem e o mal – o bem, para segui-lo,
O mal, A ELE EXISTIR, para evitá-lo?

– Paraíso Perdido, IX, 693-699.
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Estas palavras que profere a serpente ao tentar a Mulher são muito intrigantes. Você já parou para pensar que o pecado de Adão e Eva, o pecado ORIGINAL, está substancialmente ligado ao CONHECIMENTO? Que seu pecado consistiu em comer da árvore da CIÊNCIA do Bem e do Mal?
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Milton, leitor atento da Bíblia, certamente meditou muito sobre o assunto. Satã e seus anjos, o primeiro homem e a primeira mulher, são, no poema, essencialmente seres IGNORANTES. Satã crê firmemente poder destronar Deus, chega mesmo a duvidar que Deus o criou; Adão e Eva não têm absolutamente nenhuma noção do que seja a morte com que Deus os ameaça pela desobediência, não entendem o que poderia ser o Mal, e só compreendem seu estado após comerem do fruto proibido, o fruto da Ciência do Bem e do Mal.
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Qual a razão de tal ignorância, e por que ela estaria tão estreitamente ligada à bem-aventurança e danação eternas da humanidade? Milton não propõe nenhuma solução, mas a extensão com que explora o tema mostra muito bem ter ele compreendido sua centralidade na narrativa bíblica – que, para ele, era a mais pura expressão da Verdade revelada.

16. Ler um poema épico escrito há quase quatrocentos anos pode ser um desafio e tanto. O texto original de PARAÍSO PERDIDO contabiliza mais de dez mil versos, que representam parte do que há de melhor na poesia inglesa. Como sabemos, a linguagem poética é extremamente refinada, isto é, ler um poema não é o mesmo que ler uma publicação de Instagram. Em Milton, isso se revela em inversões de sintaxe, períodos longuíssimos, palavras arcaicas, latinismos, sem falar das inúmeras figuras de linguagem. Acrescente-se a isso as referências sem fim à literatura clássica, à Bíblia, a eventos históricos, à geografia, à teologia e à ciência que se encontram em PARAÍSO PERDIDO.
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Tudo isso torna a leitura uma tarefa verdadeiramente hercúlea. Para auxiliar o leitor nessa jornada, não poupamos notas à nossa edição, que sem dúvida serão de grande auxílio para aliviá-lo um pouco do esforço de interpretar o sentido do texto. Optamos por apresentar nossas notas à margem da tradução em verso português de Antônio José de Lima Leitão; nelas, você encontrará pequenas explicações sobre as referências que faz o poema, citações de autores antigos, versículos bíblicos, interpretação de passagens obscuras, além de notas de vocabulário português (Lima Leitão é bem fiel ao espírito do original nesse respeito).

17. Deus, de uma vez, assim fez céus e terra —
Contudo inda matéria inerte e informe,
Do Abismo imersa na profunda noite.
– Paraíso Perdido, VII, 232-4.
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Dante e Milton, apesar da distância no tempo e no espaço, eram homens muito parecidos. Ambos eram profundamente religiosos; ambos se envolveram ativamente na política de seu tempo e viveram os seus últimos dias ostracizados por isso; ambos eram grandes amantes da poesia de Virgílio.
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E, inspirados em seu ídolo, ambos escreveram um poema cósmico.
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O católico florentino nos leva por uma viagem vertical, na qual vislumbramos o universo inteiro contido entre o Inferno e o Paraíso, uma espécie de Suma em “terza rima”, com grande destaque para os santos, a Virgem Maria e a Trindade, cuja visão é o clímax e o fim da peregrinação dantesca.
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O puritano inglês, por outro lado, nos faz viajar pelas Escrituras. Mais fiel ao modelo virgiliano, e arrebatando o leitor para o meio das coisas – “in medias res” –, o poeta vai aos poucos ligando as pontas da história que pretende contar: nada mais, nada menos, que a história do princípio e fim do mundo, segundo a narrativa bíblica. Para tanto, emprega um esforço de imaginação e construção poéticas raramente vistas na história da literatura, o que torna PARAÍSO PERDIDO, apesar de sua extensão e dificuldades, um poema cuja leitura jamais deixa de prender a atenção do leitor.

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