“As flores do mal” no banco dos réus

Por Diego Grando 1

Trechos das peças da acusação, da defesa e da anulação da condenação do maior clássico da poesia lírica ocidental.

Paris, 20 de agosto de 1857. Começa o julgamento, na Sexta Corte Correcional do Tribunal de Justiça da região do Sena, do poeta Charles Baudelaire e seus editores, Auguste Poulet-Malassis e Eugène de Broise. O motivo: treze poemas de As flores do mal, livro publicado em 21 de junho daquele ano, estão sendo acusados de ultraje à moral religiosa e à moral pública. Não é a primeira vez, aliás, que Ernest Pinard, procurador responsável pela acusação, leva um autor e uma obra literária ao banco dos réus: seis meses antes, Gustave Flaubert esteve diante da mesma Corte, denunciado pela imoralidade de determinados trechos de Madame Bovary.

Diferentemente de Flaubert, que foi absolvido, a acusação contra Baudelaire e seus editores é parcialmente aceita. O veredito: crime de ultraje à moral pública, por “passagens ou expressões obscenas ou imorais” em seis poemas – “Lesbos”, “Mulheres infernadas (Delfina e Hipólita)”, “O Lete”, “Àquela que é alegre demais”, “As joias” e “As metamorfoses do vampiro”. A pena: multa de 300 francos para o autor e de 100 francos para cada um dos editores e supressão dos poemas – o que, na prática, significa a proibição da comercialização e da circulação do livro.

Curiosamente para a história da literatura, a censura levará a uma reformulação significativa do livro: para a segunda edição de As flores do mal, publicada em 1861, Baudelaire não só suprimirá os seis poemas condenados, mas acrescentará outros 32 – passando dos cem poemas da primeira edição para 126 (o poema-prefácio “Ao leitor” e os 125 poemas numerados). Ainda há mais: o poeta fará também uma reorganização da ordem e da disposição dos poemas, adicionando inclusive uma nova seção, nada menos que a famosa Quadros parisienses, às cinco seções da primeira edição – naquela que se tornará a estrutura clássica desse livro clássico (prova disso é que os acréscimos posteriores, inclusive com a reintegração dos poemas condenados, serão simplesmente feitos ao final, como apêndices, e não no corpo do livro).

Baudelaire morrerá dez anos depois, em 31 de agosto de 1867, aos 46 anos, sem ter a noção real do sucesso que seu livro terá nas décadas seguintes e da influência que exercerá sobre a poesia do século XX. Morrerá também sem saber da revisão de seu processo e da anulação de sua condenação, em 1949.

Julgamento ou crítica literária?

Nada melhor, para ajudar na compreensão da história desse processo, do que irmos direto às fontes. Para tanto, selecionei trechos dos seguintes documentos:

1) A sustentação oral do procurador Ernest Pinard, isto é, a peça de acusação, traduzida pelos pesquisadores Letícia Campos de Resende e Yuri Cerqueira dos Anjos e publicada na revista acadêmica Non plus – revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, da Universidade de São Paulo (USP).

2) As alegações finais do advogado Gustave Chaix D’Est-Ange, isto é, a peça de defesa, traduzida por mim e publicada na revista acadêmica Belas infiéis – revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução da Universidade de Brasília (UnB).

3) A decisão da Corte de Cassação francesa, de 31 de maio de 1949, decidindo pela reabilitação de As flores do mal, em tradução minha, especialmente para o blog do Clube de Literatura Clássica.

A acusação

A peça de acusação abre com a apresentação de dois dilemas: o primeiro, em tom quase profético, é que colocar uma obra sob os holofotes, ainda que seja para acusá-la de um crime, acaba por lhe dar visibilidade; o segundo é que a instituição jurídica e a instituição literária têm leis próprias e, consequentemente, “figuras de autoridade” próprias (os juristas, em uma; os escritores e críticos, na outra).

Processar um livro por ofensa à moral pública é sempre algo delicado. Se a persecução não for exitosa, fazemos do autor um sucesso, erguendo-lhe quase um pedestal; ele triunfa, e fica-se assumida, frente a ele, a aparência de perseguição.

Acrescento que, na situação atual, o autor se apresenta diante dos Senhores protegido por escritores de renome, por críticos sérios, cujo testemunho complica ainda mais a tarefa do Ministério Público.

Mas cabe ao procurador fazer o seu trabalho, ainda que, no caso em questão, esse trabalho consista em colocar uma obra, e não um cidadão, em julgamento.

E, apesar disso, Senhores, não hesito em cumprir tal tarefa. Não é o homem que está em julgamento, é sua obra; não é o resultado da prossecução que me preocupa, é unicamente a questão da legitimidade dessa acusação.

Charles Baudelaire não pertence a uma escola. Ele concerne apenas a si mesmo. Seu princípio, sua teoria consiste em tudo pintar, tudo desnudar. Ele disseca a natureza humana em suas partes mais íntimas; serve-se, para representá-la, de tons vigorosos e surpreendentes; exagera, sobretudo, seus aspectos mais horrendos; amplifica-a desmesuradamente, a fim de criar a impressão, a sensação. Assim, pode ele afirmar, cria-se a contrapartida do clássico, da convenção, que é singularmente monótona e que obedece apenas às regras artificiais.

Mas julgar uma obra literária não seria tarefa para um especialista em Literatura, e não em Direito?

O juiz não é um crítico literário, do qual se exige um pronunciamento sobre os modos diversos de fruição e de produção da arte. Ele não é o juiz das escolas [literárias], porém, o legislador o investiu de uma missão definida: o legislador inscreveu em nossos códigos o delito de ofensa à moral pública, puniu tal delito com certas penas, concedeu ao poder judiciário uma autoridade discricionária que reconhece se essa moral foi ofendida, se o limite foi ultrapassado. O juiz é uma sentinela que não deve permitir a transgressão da fronteira. Eis aí sua missão.

A partir daí, Pinard passa a citar trechos de poemas, sublinhando “a pintura lasciva, ofensiva à moral pública”: a 5ª, a 6ª e a 7ª estrofes de “As joias” (p. 352-353)2, a estrofe final de “O Lete” (p. 348-349), as três estrofes finais de “Àquela que é alegre demais” (p. 350-351) e a estrofe inicial de “As metamorfoses do vampiro” (p. 354-355). Além disso, acusa “Lesbos” (p. 336-341) e “Mulheres infernadas (Delfina e Hipólita)” (p. 340-347) na sua integralidade. Na sequência, o procurador conclui:

De boa fé, os Senhores acreditam que possamos tudo dizer, pintar, desnudar, desde que tratemos, em seguida, do asco produzido pelos vícios e que descrevamos as doenças que os punem?

Senhores, creio ter citado passagens suficientes para afirmar que houve, sim, ofensa à moral pública. Ou o senso de pudor não existe, ou o limite imposto por ele foi audaciosamente ultrapassado.

Em seguida, acusa os poemas “A negação de São Pedro” (p. 276-279), “Abel e Caim” (p. 178-281), “As litanias de Satã” (p. 280-285) e “O vinho do assassino” (p. 248-251) de ofenderem a moral religiosa. A lógica é a mesma: os poemas, embora dentro dos limites literários, ultrapassariam os limites morais e religiosos – tornando-se passíveis, portanto, de uma sanção jurídica.

Tomar partido a favor da negação de Cristo, a favor de Caim e contra Abel, invocar Satã em oposição aos Santos, fazer o assassino dizer: eu zombo disso como de Deus, do Diabo ou da Santa Ceia, não seria isso o acúmulo de uma devassidão de linguagem que justifica a ordem do juiz de instrução?

Sim: ele teve que conduzir Baudelaire diante de um tribunal de juízes correcionais por ofensa a essa grande moral cristã, que é, na realidade, a única base sólida de nossos costumes públicos.

Depois de acusar os poemas, o procurador tenta antever os argumentos da defesa – de que pintar o mal com aquele exagero de tintas seria uma forma de criticá-lo, de denunciá-lo –, para refutá-los antecipadamente. O risco, em síntese, é que os poemas não atinjam essa dimensão crítica (seria o público capaz de percebê-la?) e se tornem, então, apenas uma má influência para seus leitores, desencaminhando-os – e exagerando, inclusive, o alcance do livro, já que a tiragem dessa primeira edição era de pouco mais de mil exemplares.

Eu retrato o mal e seus arrebatamentos, mas também suas misérias e vergonhas, é o que o Senhor Baudelaire dirá! Que seja. Mas todos esses numerosos leitores para os quais o Senhor escreve – pois suas tiragens contam com milhares de exemplares a preços baixos –, esses leitores múltiplos, de todas as classes, idades, condições, tomarão o antídoto de que o Senhor fala com tanta complacência? Até entre seus leitores instruídos, entre homens maduros, o Senhor crê que haja frios calculadores pesando os prós e os contras, considerando, lado a lado, peso e contrapeso, mantendo a cabeça, a imaginação e os sentidos em perfeito equilíbrio! O homem não admite, pois seu orgulho é grande demais. Mas eis a verdade: o homem é sempre mais ou menos enfermo, mais ou menos fraco, mais ou menos doente, sendo obrigado a carregar um pecado original tanto mais pesado quanto maior sua dúvida ou negação. Se tal for sua natureza íntima, a menos que ela seja resgatada por muitos esforços e por uma forte disciplina, quão facilmente o homem tomará gosto pelas frivolidades lascivas, sem se preocupar com o ensinamento que o autor deseja nelas depositar.

Traz, então, mais exemplos: dessa vez, versos esparsos dos poemas “As joias” (p. 352-355), “Sed non satiata” (p. 96-97), “O Lete” (p. 348-349), “Àquela que é alegre demais” (p. 348-351), “O belo veleiro” (p. 140-143), “A uma mendiga ruiva” (p. 198-203), “Lesbos” (p. 336-341), “Mulheres infernadas (Delfina e Hiopólita)” (p. 260-263) e “As metamorfoses do vampiro” (p. 354-355), sublinhando que “há sempre impressões doentias a serem colhidas em semelhantes quadros” e que “o autor se empenha em forçar cada situação como se apostasse em conceder sensualidade àqueles que não sentem mais”.

Encaminhando o fechamento de sua acusação, Pinard pondera:

Se a imoralidade das produções se acentua, é preciso que a instituição possa sempre punir o vício, sem que seja censurada por não o ter processado anteriormente. Sem isso, o resultado final seria a impunidade absoluta, qualquer que seja o nível de rebaixamento a que tenhamos chegado.

E encerra, então, retomando os perigos dos livros imorais e enfatizando a necessidade de uma punição que sirva, ao menos, como uma advertência, um sinal de alerta aos escritores e editores que ousarem ultrapassar os limites:

Acrescento que um livro não é uma folha sem importância, facilmente perdida e esquecida, como um jornal. Quando aparece, é para ficar; ele permanece em nossas bibliotecas, em nossas casas, como uma espécie de quadro. Se apresentar pinturas obscenas que corrompam aqueles que não conhecem bem a vida, se despertar as más curiosidades e se aguçar também os sentidos indiferentes, torna-se um perigo permanente, ao contrário da folha cotidiana que percorremos toda manhã, que esquecemos à tarde e que raramente colecionamos.

[...]

Sejam indulgentes para com Baudelaire, que tem uma natureza inquieta e desequilibrada. Sejam indulgentes para com os impressores, que se escondem atrás do autor. Mas deem, ao condenarem pelo menos alguns poemas do livro, uma advertência doravante necessária.

A defesa

O advogado de Baudelaire começa sua sustentação fazendo um elogio a seu cliente e ressaltando sua surpresa e seu sofrimento diante da acusação a seu livro.

Charles Baudelaire não é apenas o grande artista e o poeta profundo e apaixonado a cujo talento o próprio honorável órgão do Ministério Público fez questão de prestar uma homenagem pública.

Ele é mais: é um homem honesto, e é por isso que é um artista convicto. Sua obra foi planejada por ele por um longo período, é o fruto de mais de oito anos de trabalho. Ele a gestou, fez que amadurecesse em seu cérebro, com amor, como a mulher gesta em suas entranhas o filho de sua ternura.

E agora os Senhores compreenderão a verdadeira desolação e a profunda dor deste criador sincero e convicto que poderia, ele mesmo, ter colocado na abertura de sua obra: “Aqui está um livro de boa fé”, e que a vê ser desprezada e trazida a esta sala de audiências como contrária à moral pública e à moral religiosa.

Passa, então, a questionar os exageros da acusação.

Será mesmo que, seriamente, suas intenções podem ser questionáveis? Será mesmo que os Senhores podem, por um só momento, duvidar do objetivo que ele perseguiu e do fim ao qual se propunha? Os Senhores o ouviram há poucos momentos, nas explicações tão leais que ele lhes deu, e sem dúvida ficaram impressionados e comovidos com essas contestações de um homem honesto.

Ele quis pintar tudo, o Ministério Público disse aos Senhores, ele quis desnudar tudo. Ele dissecou a natureza humana em suas partes mais íntimas, com tons vigorosos e surpreendentes, exagerou seus lados horrendos, amplificando-os desmesuradamente... – Tome cuidado ao falar desse jeito, eu direi ao Senhor Procurador Adjunto. O Senhor tem mesmo certeza de não estar exagerando um pouco o estilo e a maneira de Baudelaire, de não estar forçando o tom, de não estar carregando nas tintas? Enfim, que seja, é esse seu método e é esse seu procedimento. Onde está a culpa, pergunto aos Senhores, do ponto de vista da própria acusação, onde está a culpa e, principalmente, onde pode estar o delito, se é para denunciá-lo que ele exagera o mal, se ele pinta o vício com tons vigorosos e surpreendentes para inspirar-lhes um ódio mais profundo, e se o pincel do poeta faz de tudo o que é odioso uma pintura horrível, precisamente para fazer sentir horror?

A seguir, o advogado retoma o dilema da avaliação jurídica e literária da obra e assinala o problema de julgar o livro a partir de algumas de suas partes, como fez a acusação: o problema, nesse caso, estaria em perder a visão do todo.

Foi-lhes dito, e com razão, Senhores, que o juiz não é um crítico literário, que não cabe a ele se pronunciar sobre os modos diversos de compreensão e de produção da arte, que não cabe a ele decidir entre as escolas de estilo. É por isso que, em casos desta natureza, não é a forma que deve ser questionada, mas o fundo. E haveria um grande risco de se cometer equívocos e não fazer uma justiça boa e imparcial, se nos deixássemos levar por algumas expressões, exageradas e violentas, dispersas aqui e ali, sem ir ao fundo das coisas, sem buscar as intenções sinceras, sem ter o conhecimento preciso do espírito que anima o livro.

A esse respeito, os Senhores têm, como eu já lhes disse, as declarações e contestações do homem, que devem ser aproximadas de sua perfeita honorabilidade. E, como se trata das intenções dele, os Senhores ainda têm uma outra coisa, que é o próprio livro.

Daí em diante, Chaix D’Est-Ange vai discutir o título, a epígrafe, o poema-prefácio “Ao Leitor” (p. 48-51), apontando, em sua reflexão, o que seria o programa literário de Baudelaire, “a guerra declarada aos vícios e às baixezas da humanidade”, e seu método de “pintar o vício, mas pintá-lo com cores violentas […], para dar mais ênfase ao que ele carrega de odioso e de repulsivo”. Na argumentação do advogado, esse procedimento artístico não é nenhuma novidade, já que “todos os grandes escritores, todos os poetas, todos os prosadores, todos os moralistas o empregaram, todos os oradores profanos e todos os oradores sagrados valeram-se disso”, exemplificando, em seguida, com nada menos que Molière e Balzac.

O passo seguinte da defesa de Baudelaire é discutir o argumento de que um limite foi ultrapassado, de que a obra apresenta um “despudor grosseiro” e uma “brutalidade calculada e deliberadamente perigosa”. Só isso configuraria um ultraje à moral religiosa e à moral pública.

O advogado retoma, então, o já apontado problema da perda da visão do todo da obra pela separação de alguns poemas, ou trechos de poemas, uma vez que “a obra de Baudelaire não é uma reunião de poemas isolados, independentes uns dos outros, sem vínculos, sem continuações, sem ordem entre eles”. Reaparece, assim, o impasse entre o “julgamento jurídico” e o “julgamento literário” do livro. Na ótica da defesa, os critérios artístico-literários, evidentemente, jamais podem sair do horizonte de análise, e para isso é invocada uma autoridade, um “juiz literário”: um comentário do crítico Barbey d’Aurevilly no qual ele justamente assinala a unidade de As flores do mal, a ordem e a disposição dos poemas – e essa arquitetura do livro, essa organização interna, esse todo que extrapola o conjunto das partes isoladas, no campo da poesia lírica, isso sim é uma das grandes inovações da obra de Baudelaire, inovação que, ao fim e ao cabo, não será plenamente compreendida naquele momento.

Pois bem, o que fez o Ministério Público? Desse conjunto em que tudo se encaixa, ele separou algumas peças e, então, de cada uma delas, escolheu algumas linhas, algumas frases, e até alguns pedaços de frases, aproximou-as, reuniu-as, agrupou-as numa enumeração hábil e perigosa, de modo que os Senhores percebessem apenas o que é ruim, e tudo isso com uma continuidade que os atinge, que os surpreende, que os deixa revoltados. Os Senhores só têm o veneno, sem o remédio; os Senhores só têm os extratos amargos, violentos, concentrados, isolados de tudo aquilo que deveria atenuá-los e suavizá-los... Será isso justo, Senhores? Será este um procedimento aceitável, ou pelo menos capaz de lhes dar o ponto de vista verdadeiro e exato pelo qual a obra do escritor deve ser considerada?

Para embasar sua argumentação, a defesa aponta versos e poemas de Baudelaire que contrariam o ponto de vista da acusação. Depois, põe em causa o método de leitura do procurador: “Entendem agora, Senhores, o perigo de julgar uma obra inteira, uma obra de conjunto, a partir de alguns poemas isolados, de alguns versos soltos, de algumas expressões tomadas aqui e ali e habilmente reunidas? Qual é o poeta e qual é a obra que resistiriam a um exame feito dessa maneira?” E conclui seu argumento citando estrofes de um poema de Alphonse de Lamartine, um dos grandes ícones do Romantismo francês, perguntando: “E quem é que pensou, entretanto, em julgar o poeta e seus sentimentos religiosos a partir dos versos que acabei de ler? Quem é que pensou em acusá-lo, quem é que teria ousado processar Lamartine por ultraje à moral religiosa?”

Chaix D’Est-Ange também contrpõe o momento final da acusação, que sublinhava a necessidade de condenar os poemas de Baudelaire como forma de advertência, uma advertência geral.

Pois bem, pergunto aos Senhores se é justo – porque fazer uma advertência parece necessário ao Ministério Público – que essa advertência caia sobre os ombros de Baudelaire. Os Senhores são o único juiz, é o que dizem, da conveniência da prossecução: haveria muitas coisas para responder a uma teoria dessas, e a conveniência, em matéria de prossecuções correcionais, parece-me uma tese, pelo menos, pouco jurídica. Mas, seja como for, se são os Senhores, o Ministério Público, o juiz da conveniência, pergunto mais uma vez: por que escolhem Baudelaire?

[...]

É claro, não estou pedindo acusações contra ninguém, e não se pode presumir que seja esse o meu pensamento – interpretá-lo assim seria distorcê-lo. O que quero dizer é que não pode haver dois pesos e duas medidas, a moral pública é uma só, e quando ela não é ultrajada por muitas das obras que enchem nossas bibliotecas, que são impressas e reimpressas incessantemente diante dos olhos dos Senhores, e por muitas outras que nascem a cada dia, tanto em verso quanto em prosa, como poderia a moral pública estar sendo ultrajada por esses poucos fragmentos que o Ministério Público pede para os Senhores condenarem na obra de Baudelaire?

Seguindo nesse caminho, o advogado traz mais exemplos – alguns entre os que constituíam todo um arquivo que foi anexado ao processo – de textos literários que “os Senhores leem todos os dias na nossa literatura moderna, e falo aqui dos autores mais ilustres, mais queridos, mais populares, aqueles que ninguém jamais pensou em incriminar”, arrematando que “Baudelaire jamais chegou a ir tão longe quanto eles”: aparecem poemas de Alfred de Musset, outro expoente do Romantismo, de Pierre-Jean de Béranger, poeta popular de grande reconhecimento no século XIX, além de trechos de um romance de Théophile Gautier. Outros autores, entre eles clássicos da literatura francesa, que também integram o mesmo arquivo, são evocados no fechamento da sustentação da defesa:

Depois de tudo o que acabei de ler, os Senhores condenariam Baudelaire? Os Senhores o condenariam depois de tantas outras citações que eu poderia fazer, as quais os Senhores encontrarão em meu arquivo, e que constituem uma coleção ainda muito incompleta, mas transcrita com fidelidade? Ali os Senhores encontrarão Rabelais, Brantôme, que “conheceu tantas damas honestas...”, mas eu poderia ter escolhido muitos outros! La Fontaine e seus contos, Molière, Voltaire e seus contos em prosa, e Rousseau, cujas confissões contêm passagens imundas, e Beaumarchais, para quem, “de todas as coisas sérias, o casamento sempre pareceu a mais ridícula”. Mas se eu ousasse, se a prosopopeia pudesse encontrar seu lugar aqui, eu evocaria e invocaria Montesquieu: “Oh! Montesquieu, o que diria sua grande alma, se, para seu infortúnio, trazido de volta à vida, você visse acusado de ultraje à moral pública Baudelaire e As flores do mal, você que escreveu o Templo de Gnide e as Cartas Persas...?” O que diriam Lamartine, que fez A queda de um anjo, e Balzac, com sua Moça dos olhos dourados, e George Sand, com Lélia?

Eu paro por aqui, não quero mais abusar do tempo dos Senhores.

Eu disse aos Senhores quem era Baudelaire e quais tinham sido suas intenções, apresentei aos Senhores seu método e seu procedimento literário, e acabei de mostrar detalhadamente que não há nada em sua obra que seja tão ousado, no fundo e na forma, na expressão e no pensamento, quanto tudo o que nossa literatura imprime e reimprime todos os dias.

Se a acusação de ultraje à moral religiosa foi refutada, não aconteceu o mesmo com a de ultraje à moral pública, e os seis poemas condenados, embora nunca tenham deixado de circular, ainda que de forma clandestina, só vieram a ser legalmente permitidos mais de noventa anos depois, em 1949.

A reabilitação

Em 31 de maio de 1949, a Câmara Criminal da Corte de Cassação francesa atendeu ao pedido de revisão do julgamento de Baudelaire, impetrado em novembro de 1947, nos seguintes termos:

Considerando que o delito de ultraje aos bons costumes é composto por três elementos necessários: o fato da publicação, a obscenidade do livro e a intenção que dirigiu seu autor;

Considerando que o fato da publicação não é contestável; em contrapartida, no tocante ao segundo elemento da infração, considerando que os poemas que são objeto da condenação não contêm nenhum termo obsceno ou mesmo grosseiro e não ultrapassam, em sua forma expressiva, as liberdades permitidas ao artista; e que se certas pinturas puderam, por sua originalidade, alarmar alguns espíritos na época da primeira publicação das “Flores do Mal” e aparecer aos primeiros juízes como ofensivas aos bons costumes, uma tal apreciação atinha-se apenas à interpretação realista desses poemas e negligenciava seu sentido simbólico, revelando-se de caráter arbitrário; e considerando que ela não foi ratificada nem pela opinião pública, nem pelo julgamento dos letrados;

Considerando, no que diz respeito ao terceiro elemento, que o julgamento cuja revisão é solicitada reconheceu os esforços feitos pelo poeta para atenuar o efeito de suas descrições; e que os poemas acusados, que não são maculados, conforme dito acima, por nenhuma expressão obscena, são clara e manifestamente de inspiração proba;

Considerando que, desde então, o delito de ultraje aos bons costumes imputado ao autor e aos editores das “Flores do Mal” não fica caracterizado; e que é o caso de inocentar a memória de Charles Baudelaire, de Poulet-Malassis e de Broise, da condenação proferida contra eles;

Por esses motivos: invalide-se e anule-se o julgamento feito em 27 de agosto de 1857 pela Sexta Corte Correcional do Tribunal de Justiça da região do Sena, no qual foram condenados Baudelaire, Poulet-Malassis e de Broise por ultraje à moral pública e aos bons costumes; inocentem-se suas memórias da condenação proferida; ordene-se que a presente decisão seja exibida e publicada conforme a lei; ordene-se, além disso, sua impressão e sua transcrição nos registros da secretaria deste Tribunal de Justiça.

Tardou. Mas não falhou.

As Flores do Mal é nosso clássico deste mês no CLC. Garanta o seu aqui!

  1. Diego Grando é poeta, tradutor e professor de Literatura, com pesquisas na área de Escrita Criativa e Ensino de Literatura. Com seu livro Spoilers, recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura de 2018 na categoria Poesia. Desde 2012, integra o elenco do Sarau Elétrico.
    ↩︎
  2. Toda a paginação citada no artigo está baseada na seguinte edição:
    BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Tradução de Wladimir Saldanha. Dois Irmãos/RS: Clube de Literatura Clássica, 2025. ↩︎

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