Redação do CLC
Lançado em 1862, Os Miseráveis é mais que um romance. É uma espécie de monumento literário construído com a matéria-prima da condição humana. Seu autor, Victor Hugo, já era consagrado como poeta, dramaturgo e romancista quando publicou a obra, que levou quase vinte anos para ser concluída. O livro nasceu sob o signo da grandiosidade: foram 3 mil exemplares vendidos nas primeiras 24 horas em Paris, e dezenas de milhares em semanas, numa época sem redes sociais nem campanhas virais. Por isso, não é exagero dizer que Os Miseráveis impactou a França – e toda a Europa.
Mas o que há em Os Miseráveis que faz dele uma leitura ainda tão viva hoje? A resposta está tanto na amplitude de seu enredo quanto na densidade ética que o sustenta. O protagonista, Jean Valjean, é um ex-presidiário que, após cumprir dezenove anos de prisão por roubar um pão, tenta reconstruir sua vida sob uma nova identidade. A perseguição incansável do inspetor Javert representa não apenas o peso da lei, mas a cegueira moral de um sistema inflexível.
Enquanto Valjean busca redenção, outros personagens orbitam seu caminho: Fantine, mãe solteira e operária levada à miséria; Cosette, sua filha; Marius, jovem idealista; e os Thénardier, símbolo da exploração e da hipocrisia. Em meio a esses dramas pessoais, Hugo constrói um painel grandioso da França pós-revolucionária, atravessada por desigualdade, corrupção, violência e esperança.
A primeira edição do livro foi publicada simultaneamente em várias línguas. Hugo, exilado na Bélgica, acompanhou de longe o impacto da obra, que foi traduzida para o português ainda no século XIX. Otto Maria Carpeaux, em sua monumental História da Literatura Ocidental, considerou Os Miseráveis uma das mais altas expressões do romantismo social do século XIX1.
Entre a lei e a misericórdia
A estrutura de Os Miseráveis é ambiciosa: são mais de 1.200 páginas divididas em cinco volumes e 365 capítulos. Hugo disse, em tom simbólico, que o livro cobre o arco do dia e da alma. De fato, não é apenas a história de Valjean. É também a história do homem comum que sofre e luta pela sobrevivência, do confronto entre justiça e misericórdia, entre rigidez e perdão.
A tensão entre Valjean e Javert é o nervo moral do romance. Javert representa o Estado e a crença cega na lei; Valjean encarna o homem que escolhe o bem, mesmo contra os códigos. Em determinado momento, quando Valjean poupa a vida de seu perseguidor, ocorre um ponto de virada que desarma a lógica de Javert — e o destrói. É um dos episódios mais comoventes e filosóficos da literatura ocidental.
Ao lado desse conflito, há digressões monumentais: capítulos inteiros sobre a Batalha de Waterloo, o sistema carcerário, os esgotos de Paris, a vida dos conventos, a Revolução de Julho. Esses desvios, muitas vezes criticados, são na verdade pontes de significado, conferindo à obra um tom quase enciclopédico da França do século XIX. Antonio Candido apontou que, em Hugo, a estrutura romanesca repousa na firme convicção de que o escritor é também um pedagogo moral2. Ou seja, os desvios narrativos não são excessos: são parte da missão de Hugo.
Além disso, outro símbolo poderoso do romance é o objeto menor elevado à dignidade épica. Um pão roubado, um castiçal de prata, uma boneca quebrada — tudo em Os Miseráveis tem peso simbólico. O detalhe se torna um instrumento da verdade.
Impacto e escândalo: Hugo e a recepção da época
O sucesso de Os Miseráveis foi imenso, mas também controverso. Uma parte da crítica reagiu com indignação e desconfiança, acusando Hugo de sentimentalismo barato, de manipular o leitor com cenas lacrimosas. Mas essa comoção popular era justamente o que ele desejava. Hugo não escrevia apenas para os salões parisienses: escrevia para o povo.
E o povo respondeu. O romance foi adaptado para o teatro quase imediatamente, e suas vendas bancaram as publicações seguintes de Hugo. Ao contrário de muitos autores românticos, ele viveu e lucrou com sua fama. A crítica mais sólida, porém, viria décadas depois. Hoje, é consenso que Os Miseráveis está entre os cinco maiores romances europeus do século XIX.
A grandiosidade da obra se reflete em seu vocabulário — cerca de 500 mil palavras — e na extensão do tempo narrado: mais de 20 anos. Mas também em sua profundidade filosófica. Temas como a condição dos pobres, o papel da mulher na sociedade, o perdão cristão e o fanatismo legalista estão presentes a cada capítulo.
Muitos veem em Hugo alguém que transformou a literatura num instrumento de justiça social. Essa perspectiva é coerente com sua trajetória política: republicano fervoroso, defensor do sufrágio universal, opositor da pena de morte e crítico feroz de Napoleão III.
O legado de uma obra que não envelhece
Os Miseráveis não apenas sobreviveu ao tempo: multiplicou-se. Foram mais de 60 adaptações para cinema e televisão, incluindo o clássico musical da Broadway e a superprodução de 2012 estrelada por Hugh Jackman. A obra também inspirou peças, quadrinhos, óperas, animações e até videogames.
Na literatura, sua influência é imensa. Charles Dickens, Leon Tolstói, Dostoievski e Albert Camus dialogaram com temas e estruturas que Hugo introduziu. No Brasil, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar beberam do romantismo moral de Hugo.
Mais recentemente, os estudos culturais e o direito têm relido Os Miseráveis com olhos renovados. Questões como representações da pobreza, justiça restaurativa, punição estatal e papel social da maternidade tornam-se ainda mais relevantes diante do mundo contemporâneo. A obra, de certa forma, antecipa muitos dos dilemas atuais.
Mas talvez o maior legado de Os Miseráveis seja este: provar que a literatura ainda pode tocar o coração da sociedade, mudar visões de mundo e ensinar compaixão.
“Enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria”, escreve Victor Hugo, “livros da natureza deste poderão não ser inúteis”.3
Um mundo em um livro
Os Miseráveis é um desses raros romances em que a literatura atinge sua máxima potência: narrar o mundo com tamanha intensidade que se torna, ela própria, uma forma de agir sobre ele. Há ali uma fusão incomum entre a força épica de uma narrativa popular e a densidade filosófica de um tratado sobre o humano. É o romance que sangra, que pensa, que se revolta — e que insiste em acreditar.
Poucas obras conseguem, com igual fôlego, transitar entre as entranhas de Paris e as alturas da ética, entre a sombra dos esgotos e a luz da transcendência. Victor Hugo não escreveu um livro apenas sobre os miseráveis do século XIX, mas sobre todos os que, em qualquer tempo, vivem à margem da sobrevivência e da compaixão.
A cada nova leitura, o romance se reinventa. Desafia críticos, desmonta classificações, escapa das amarras escolares. Seu vigor não está apenas na história que conta, mas no modo como transforma a ideia de literatura em ação — e a ação em permanência.
Se há livros que acompanham o tempo, Os Miseráveis o precede, o desafia e o ilumina.