Inimigos nada cordiais

Conheça a história da inimizade entre dois gigantes da literatura em língua portuguesa, Eça de Queirós e Machado de Assis

Causos de animosidade entre grandes escritores: no encontro de James Joyce e Marcel Proust, num jantar, a conversa se resumiu (de acordo com uma versão da história) a secos “nãos” — perguntando se conhecia o duque fulano-de-tal, Joyce respondeu que não, já o francês também respondeu com a negativa se havia lido Ulisses, e assim foi a noite inteira entre os dois.

Ironicamente, a relação entre Eça de Queirós e Machado de Assis também foi marcada pelo azedume, com trocas de farpas pela imprensa nos dois lados do Atlântico.

Tudo começou com uma resenha de Machado de O Primo Basílio, nas páginas da revista O Cruzeiro, em 16 abril de 1878. Escrevendo sob o pseudônimo “Eleazar”, o Bruxo do Cosme Velho classificou o autor português como “um fiel e aspérrimo discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir.” (Ok, ok, uma ajudinha: “aspérrimo” significa áspero, desagradável ao ouvido; e o autor citado sem ser nomeado era, claro, Émile Zola.)

No acerbo artigo, Machado criticou “a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós”, observando que o caráter da heroína do romance, Luíza, era de uma grande vacuidade. A trama de adultério entre Luíza e Basílio, seguida da chantagem da criada Juliana, tão engenhosamente tecida por Eça, não comoveu o grande escritor brasileiro, cujo veredito foi mordaz e impiedoso:

“Se o autor […] intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou ensinamento seja isto: — A boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério.”

Elegante, mas cheia de derisão, a crítica despertou a ira do público carioca, que inundou a redação de O Cruzeiro com cartas; afinal, que desfeita que a moral de O Primo Basílio se resumiria a escolher bem a criadagem, discretos o suficiente para manterem silêncio às puladas de cerca dos patrões! Diante das críticas, Machado de Assis não recuou, e escreveu uma segunda resenha complementar à primeira, ainda mais ácida, publicada em 30 de abril daquele ano.

Subjacente às críticas, estava o desdém de Machado de Assis ao Realismo, movimento literário que tinha em Eça de Queirós um seguidor devotado. “A realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”, escreveria Machado um ano depois da diatribe com Eça, no ensaio “A Nova Geração”, pelas páginas da Revista Brasileira. (Em tempo, Machado não é um autor realista, algo muito repetido pelo público ainda hoje em dia).

Sim, a rixa entre os autores foi motivada por uma incompatibilidade irredutível entre os seus respectivos temperamentos literários. Machado de Assis tinha enorme apego a Stendhal, autor de viés romântico, que não apetecia mais à “Geração de 70” à qual pertencia Eça de Queirós, cujos patronos eram Balzac e Flaubert — a ascensão do Realismo. Desde os seus dias como estudante de direito em Coimbra, Eça mostrou-se atraído ao socialista Proudhon, ao biologismo sociológico de Spencer, e o determinismo de Taine.

Os gostos de Machado talvez fossem reacionários à época, mas com eles transcendeu o realismo vigente, aproximando-se da vanguarda do século XX.

Mas você deve estar se perguntando qual foi a reação de Eça de Queirós aos vitríolos machadianos.

Bem, o escritor português recebeu as pauladas com inesperada calma, ao lê-las republicadas num jornal português, que ele recebia na Inglaterra, em Newcastle-Upon-Tyne, pois, diplomata de carreira, Eça era ali cônsul de Portugal — onde por sinal escreveu O Primo Basílio, em 1874.

Com fleuma e muita amabilidade, Eça de Queirós respondeu a Machado de Assis numa carta aberta, publicada num jornal português.

“Não quis estar mais tempo sem agradecer o seu excelente artigo. Apesar de me ser adverso, quase severo, e de ser inspirado por uma hostilidade quase partidária à Escola Realista — esse artigo, todavia pela sua elevação, e pelo talento com que está feito, honra o meu livro, quase lhe aumenta a autoridade”, escreveu Eça.

Tanta gentileza não logrou amolecer o coração do escritor carioca, e anos mais tarde, quando Eça pediu-lhe que escrevesse uma dedicatória no frontispício de um dos romances machadianos, a dedicatória do Bruxo foi talvez a mais curta e seca que se tem conhecimento na vida literária: “De Machado de Assis para Eça de Queiroz.”

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