“O Alienista”: E se o louco for você?

Redação do CLC

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.” 1

Essa frase, extraída de “O Alienista”, não é apenas uma hipótese estranha de um médico excêntrico. Ela é o centro de uma sátira sobre o poder, o saber e os limites da racionalidade.

Publicado originalmente em 1882, “O Alienista” é um dos contos mais emblemáticos de Machado de Assis, capaz de provocar reflexões profundas com humor e ironia cirúrgica.

Um hospital para a razão

A história começa quando Simão Bacamarte, um renomado médico da Corte, decide abrir uma casa na pequena vila de Itaguaí, onde passa a classificar e internar todos os que considera loucos. A partir de um critério supostamente científico, Bacamarte vai, pouco a pouco, transformando a vila inteira em pacientes de sua Casa Verde. A população se revolta, um motim ocorre, mas Bacamarte, com astúcia e argumentos, retoma o controle e segue com seus experimentos.

O que parece um simples enredo fantasioso é, na verdade, uma grande reflexão sobre a autoridade do saber científico e a arbitrariedade do poder. A “loucura” em Itaguaí torna-se uma categoria fluida, usada para marginalizar, controlar e domesticar comportamentos. Bacamarte, longe de ser um vilão clássico, representa o excesso de racionalidade que vira despotismo.

Machado constrói esse conto com ritmo crescente, alternando cenas absurdas com passagens de profunda densidade filosófica. A narrativa tem algo de fábula moral, mas também de crônica social. É uma obra curta que contém o essencial: um retrato do poder travestido de razão, e da razão que se transforma em loucura.

No fim, Bacamarte inverte sua lógica. Decide que os verdadeiros loucos são os que parecem mais racionais, e recolhe-se ele próprio à Casa Verde. A conclusão, que poderia ser trágica ou patética, é tratada com uma ironia seca: o cientista vence, mas a humanidade perde.

Por que é atual?

“O Alienista” não trata apenas de medicina ou psiquiatria. Trata da vontade de classificar, organizar e controlar a sociedade com base em critérios supostamente neutros. Em tempos de tecnocracias, algoritmos e vigilância digital, o conto ganha novos significados. Quem define o que é normal? Com base em que critérios? E quem fiscaliza os que classificam?

Bacamarte é um personagem incrivelmente atual porque representa um tipo de poder que se apresenta como benevolente, mas que mascara sua violência sob o disfarce da razão. Sua figura antecipa debates sobre biopolítica, medicalização da vida, e patologização do comportamento. Ele não age por crueldade, mas por “rigor científico”,  o que o torna ainda mais assustador.

A cidade de Itaguaí, por sua vez, funciona como uma miniatura da sociedade brasileira: passiva, supersticiosa, manipulável. As reviravoltas políticas no conto mostram como o público oscila entre revolta e submissão, sempre buscando um líder que diga o que pensar.

A ironia fina de Machado torna essa leitura desconcertante. O que parece exagero é apenas uma leve distorção da realidade. O que diverte também inquieta. É essa capacidade de dizer tanto em tão poucas páginas que faz de “O Alienista” uma obra-prima.

O jogo da ironia: Como Machado constrói a ambiguidade nesta obra?

Narrado em terceira pessoa, com tom aparentemente neutro, o conto utiliza um narrador que se finge objetivo para melhor aplicar a ironia. O leitor percebe que há um descompasso entre o que é dito e o que é mostrado, e é justamente esse espaço que produz o riso e a crítica.

Machado domina o ritmo da narrativa, estruturando-a como uma sequência de eventos que se intensificam logicamente, mas que, no fundo, revelam a irracionalidade de seu protagonista. Os diálogos, as descrições e os nomes dos personagens reforçam o tom satírico: a própria Casa Verde é uma espécie de paródia das instituições modernas.

A brevidade da obra não reduz sua profundidade. “O Alienista” é um conto que exige releitura, pois sua riqueza não está na reviravolta final, mas na forma como cada cena é composta para gerar ambiguidade. Não é uma história com moral simples, mas um convite ao desconforto.

Trata-se de um dos textos mais analisados da literatura brasileira, justamente por sua capacidade de reunir crítica social, humor e sofisticação formal. Seu lugar canônico não é casual: poucos textos dizem tanto com tão pouco.

Como “O Alienista” moldou pensadores e obras futuras

“O Alienista” influenciou toda uma linhagem de escritores e pensadores. De Lima Barreto a Italo Calvino, muitos viram na figura de Bacamarte o símbolo do excesso racional. A crítica à autoridade científica também é perceptível em obras posteriores que discutem o controle social, como “1984” e “Admirável Mundo Novo”.

Na cultura brasileira, o conto já foi adaptado para o teatro, a TV, os quadrinhos e até mesmo o cinema. Sua atualidade permanece porque não depende do contexto histórico original. Ao contrário: quanto mais avançamos tecnologicamente, mais ele parece pertinente.

A obra também é leitura obrigatória em escolas, mas não deveria ser encarada apenas como obrigação. “O Alienista” oferece uma experiência estética e intelectual que poucos textos conseguem proporcionar. Sua ironia exige atenção, sua linguagem é enxuta e eficaz, e sua mensagem, desconcertante.

Machado, mais uma vez, manipula o leitor com elegância. E nos obriga a perguntar: até que ponto estamos seguros de nossa própria sanidade? E quem está realmente no comando das instituições que dizem proteger-nos?

O conto que ainda nos lê

“O Alienista” é mais do que uma obra de ficção brilhante. É uma lente através da qual podemos observar os mecanismos de poder, controle e discurso na sociedade brasileira e global. Sua brevidade contrasta com a vastidão de interpretações possíveis.

A cada nova leitura, o conto revela algo diferente. Ora parece uma sátira sobre a medicina, ora uma crítica ao autoritarismo, ora uma meditação sobre o conhecimento e seus limites. E, em todas essas leituras, ele permanece atual.

Machado de Assis, com sua ironia incomparável, escreveu uma obra que está menos interessada em responder e mais em provocar. Não é um texto que entrega respostas mastigadas, mas um campo de forças onde o leitor precisa se posicionar.

Talvez por isso “O Alienista” ainda nos persiga: porque nos coloca no lugar dos habitantes de Itaguaí, divididos entre a razão e o medo, entre o riso e a inquietação. É uma obra que, como poucas, permanece viva.

E, se hoje nos perguntamos quem está apto a decidir sobre a normalidade, a liberdade ou a verdade, é porque Machado já havia nos ensinado que a fronteira entre o sábio e o tirano pode ser apenas uma questão de linguagem.

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Referências bibliográficas:

ASSIS, Machado de. O Alienista. Dois Irmãos/RS: Clube de Literatura Clássica, 2025.

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

FERREIRA, Maria Helena. Bacamarte, poder e saber. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 35, 2010.

BERNARDO, Gustavo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Edunesp, 2007.

  1. ASSIS, Machado de. O Alienista. Dois Irmãos/RS: Clube de Literatura Clássica, 2025.
    ↩︎

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