Por Gabriel Andrade Adelino 1
1.
Um fenômeno bastante comum nas grandes obras da literatura é a presença de passagens que, embora não chamem atenção à primeira leitura, assumem uma função decisiva na forma como a narrativa se constrói. São frases de aparência discreta, mas que concentram, de maneira condensada, a estrutura de pensamento que organiza o romance como um todo. É o que ocorre no início de O Grande Gatsby, quando o narrador protagonista, Nick Carraway, relata um conselho que recebeu do pai durante a juventude:
“Em meus anos mais vulneráveis de juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci: sempre que tiver vontade de criticar alguém — ele disse —, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve. [...] Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados.”2
Essa breve lembrança pode ser lida, num primeiro momento, como uma simples característica de personalidade — um traço de formação individual que ajuda o leitor a compreender o temperamento do narrador —, mas ela cumpre também uma função estrutural. Ao afirmar que evita o julgamento, Nick define o tom da narrativa e estabelece seu vínculo com os personagens. Ele afirma que observa sem intervir, que relata sem se colocar acima daquilo que descreve. A escolha do que incluir, o modo como cada personagem é apresentado, os gestos de simpatia ou desconforto que atravessam o relato — tudo isso revela uma forma sutil de orientação moral. O narrador pode até não declarar suas preferências, mas há constantemente sugestões de como o leitor deve se posicionar diante do que está sendo contado.
Essa estratégia narrativa ganha ainda mais relevo quando se observa a tradição à qual Fitzgerald está inserido. Na literatura do século XIX, especialmente nos romances de formação e nas narrativas realistas, o narrador era, quase sempre, uma figura que julgava, que orientava, que avaliava os personagens e suas ações com base em critérios morais mais ou menos estáveis. Em Gatsby, no entanto, a narração se funda sobre a hesitação, sobre a dúvida quanto à legitimidade de qualquer julgamento definitivo. Essa escolha está em sintonia com o modernismo, que desconfia das certezas herdadas e busca formas de representar a experiência sem recorrer a verdades consolidadas.
O problema do julgamento, nesse contexto, se apresenta como um impasse ético que atravessa toda a narrativa. A posição de Nick, que se diz inclinado a não julgar, permite a construção de um tipo específico de herói — o herói visto à distância, envolto em ambivalência. Gatsby só pode existir como essa misteriosa e encantadora figura literária porque é narrado por alguém que oscila entre o fascínio e o desconforto, entre a admiração e o desencanto. A suspensão do julgamento, quero dizer, é a condição para que o romance se realize e que torna Gatsby um dos personagens mais interessantes da literatura.
2.
Ao declarar que evita o julgamento, Nick Carraway inicia, portanto, uma forma específica de narrar, que tem consequências ao longo de todo o romance. A escolha, me parece, não é meramente estilística, e afeta a posição que o narrador ocupa diante dos personagens e das situações que descreve. O crítico literário americano Wayne C. Booth, em The Rhetoric of Fiction3, propõe o narrador como uma construção retórica que pode assumir diferentes graus de autoridade, ironia ou confiabilidade. A forma como essa figura se apresenta — com mais ou menos informação, com mais ou menos envolvimento — orienta a maneira como o leitor interpreta os eventos narrados. O ponto central está em observar como o narrador conduz, mesmo sem declarar, um tipo específico de orientação moral.
No caso de Nick, essa relação se dá por meio de uma recusa explícita ao julgamento, embora essa recusa não implique neutralidade. A forma como ele narra os acontecimentos revela uma preferência constante por certos personagens e uma reserva visível em relação a outros. A figura de Gatsby, por exemplo, é descrita com cuidado. Mesmo quando suas atitudes poderiam ser vistas como artificiais ou calculadas, o narrador destaca seu esforço, sua esperança e seu caráter singular. O mesmo não acontece com Tom Buchanan ou Daisy, cujas ações são apresentadas com mais frieza e distanciamento. As palavras que descrevem, o ritmo com que certos episódios são contados, o que se escolhe repetir ou silenciar — tudo isso indica uma forma indireta de julgamento, distribuída ao longo da narrativa.
A contenção de Nick, portanto, não o isenta de julgamento, apenas desloca o centro de gravidade do juízo para a forma como ele estrutura seu relato; a imparcialidade declarada no início do romance parece ser, nesse sentido, uma escolha estratégica. A moderação de tom, o gesto de abstenção, o distanciamento comedido — todos esses elementos formam uma postura que confere ao narrador uma aparência de sobriedade. Essa aparência, por sua vez, constrói uma relação de confiança com o leitor, que tende a aceitar como razoável e legítimo aquilo que é narrado. Nick não precisa declarar sua posição de forma contundente, porque o modo como apresenta os fatos já orienta a recepção. Esse tipo de voz narrativa organiza a percepção sem parecer autoritária. Permite que o leitor se aproxime dos personagens por vias indiretas, e que formule seus próprios julgamentos dentro de uma moldura discretamente oferecida pelo narrador. Isso é particularmente importante para a construção de Gatsby como figura literária. A oscilação entre admiração e desconforto que atravessa o relato de Nick serve como base para que Gatsby permaneça enigmático, idealizado e ao mesmo tempo falho. É essa ambivalência controlada que garante aos personagens do romance sua densidade.
3.
A leitura do romance pela chave da confiabilidade narrativa não esgota, entretanto, o problema central anunciado na abertura; há, nesse gesto de “abster-se de julgamentos”, algo mais profundo do que uma simples escolha formal. A frase que abre o romance, em que Nick afirma ter aprendido a não julgar os outros com facilidade, parece antecipar um movimento mais amplo da literatura moderna, que defende o afastamento de julgamentos morais definidos e a valorização das zonas de incerteza. Diferente dos romances do século XIX, em que os personagens eram avaliados por padrões éticos mais claros, O Grande Gatsby apresenta figuras cuja complexidade resiste a esse tipo de classificação. O resultado é uma narrativa que oscila entre o impulso de tomar uma posição diante do que se conta e o desejo de simplesmente compreender os personagens e situações como eles são. Não se trata, no entanto, de um indiferentismo moral, e sim de uma consciência mais aguda da dificuldade de afirmar o certo e o errado.
O narrador, por exemplo, reconhece que há em Gatsby uma dimensão fantasiosa, forçada, até patética — e, ao mesmo tempo, insiste em protegê-lo, mencionando seu esforço, sua fé, sua resistência à vulgaridade. A famosa frase — “Gatsby turned out all right at the end” — funciona como um julgamento tardio, que tenta preservar algo de íntegro naquela figura já despedaçada. A frase vem logo antes da constatação de que o que de fato destruiu Gatsby foi a poeira suja que seguia em rastros seus sonhos, no ponto de maior tensão do romance, no momento em que o juízo moral se torna impossível de enunciar sem hesitação.
Mas a ambiguidade que marca o olhar de Nick é também a ambiguidade que estrutura a própria narrativa. Ao evitar conclusões definitivas, Fitzgerald constrói um espaço em que o leitor precisa decidir por conta própria o valor de cada ação narrada; a contenção do narrador, sua recusa em dizer o que se deve pensar, é o que permite que a experiência literária ocorra como uma espécie de campo de teste ético. O romance não propõe uma doutrina, apenas apresenta os personagens, as idiossincrasias de cada um deles, as situações em que se submetem e como lidam com elas, e o personagem de Gatsby só pode ganhar espessura moral dentro dessa lógica. Seu encanto não se deve à pureza, nem à grandeza convencional, mas à distância trágica entre aquilo que deseja ser e aquilo que de fato é. Gatsby encarna um ideal ao mesmo tempo ingênuo e resistente, um sonho antigo em um mundo que já não acredita em sonhos. Sua figura se sustenta na dissonância entre riqueza e miséria interior, entre esperança romântica e tragédia esperada — mas sem julgamentos explícitos por parte do narrador. É isso que o torna literariamente significativo.
Lionel Trilling escreveu que a inteligência moral do escritor se mede pela capacidade de sustentar tensões, de reconhecer contradições, de não ceder ao conforto das respostas fáceis4. O Grande Gatsby, sob essa ótica, é um excelente exemplo do que Trilling estava dizendo. Nick, ao se abster de julgamentos, expressa uma forma de respeito pela complexidade do que se apresenta. O conselho de seu pai, na abertura do livro, funciona como um princípio de composição, o ponto exato onde o romance suspende seus juízos para permitir que a experiência moral se dê no tempo da leitura.
4.
Assim, a voz de Nick, marcada pela contenção e pela escolha de não se colocar acima daquilo que narra, não deve ser lida como hesitação ou omissão; ela corresponde ao modo como o romance formula sua própria tensão ética, construindo sentido por uma espécie de escuta prolongada do que permanece indefinido, e não por meio de certezas morais. Pense nos romances de Dostoiévski, por exemplo, em que o leitor sabe claramente aquilo que o narrador considera “certo” ou “errado” já nas primeiras páginas. Essa leitura sugere que Fitzgerald não recorre a fórmulas morais nem propõe juízos definitivos sobre seus personagens — apesar de apresentar toda a mesquinharia e vazio moral pela própria construção da história. Ao contrário, compõe uma narrativa em que a ambiguidade não é um problema a ser resolvido, mas a matéria mesma da experiência que se quer representar.
A frase inicial do livro, com seu tom de conselho íntimo, oferece ali um sofisticado plano de fundo para se compreender a obra, e, principalmente, o contexto histórico dos Estados Unidos no início do século XX. O romance se inicia com uma advertência contra o julgamento apressado, e essa advertência molda o modo como as figuras ganham forma, como os afetos se distribuem, como o tempo da leitura se prolonga em dúvida. A suspensão do juízo é, nesse caso, menos uma fuga da responsabilidade do que um esforço de atenção. Uma tentativa de acompanhar os personagens até os limites do que podem ser, mesmo quando o que se revela é frágil, contraditório ou banal.
- Gabriel é redator, publicitário e roteirista. ↩︎
- F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby, Clube de Literatura Clássica, 2020.
↩︎ - Wayne C. Booth, The Rhetoric of Fiction, 2ª ed., University of Chicago Press, 1983.
↩︎ - Lionel Trilling, The Moral Obligation to Be Intelligent: Selected Essays, Farrar, Straus and Giroux, 2000.
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