Redação do CLC
Jean Valjean, protagonista da obra-prima Os Miseráveis de Victor Hugo, é um dos personagens mais emblemáticos da literatura ocidental. Sua jornada não é apenas a de um homem que busca redenção após um passado criminal, mas também a de um símbolo da possibilidade de transformação moral e espiritual em um mundo marcado por injustiças. Em um século XIX, convulsionado por mudanças políticas, revoluções e avanços da modernidade, Hugo escreve um romance que não é apenas denúncia social, mas também um manifesto ético. Valjean emerge como a encarnação do dilema humano entre lei e compaixão, autoridade e liberdade, miséria e virtude.
Neste artigo, exploramos três camadas interpretativas centrais na figura de Jean Valjean. Primeiro, sua configuração como um herói romântico, dentro de uma tradição literária que valoriza o indivíduo em conflito com a sociedade, a natureza e consigo mesmo. Em seguida, sua representação simbólica como uma figura messiânica e revolucionária, um redentor moral que subverte silenciosamente a lógica do castigo pelo poder transformador do amor. Por fim, comparamos Valjean a outros ícones da literatura universal — Raskólnikov e Prometeu —, ampliando sua dimensão arquétipa e filosófica. A cada leitura, Valjean deixa de ser apenas personagem: torna-se espelho, metáfora, chamado.
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1. Jean Valjean como um herói romântico
A leitura de Jean Valjean como herói romântico encontra solo fértil nas reflexões de Phyllis B. Roberts, em The Romantic Hero: A Study in Nineteenth-Century Literature1. Segundo Roberts, o herói romântico não é construído pela exaltação de façanhas exteriores ou conquistas políticas, mas pela sua travessia interior, por seu drama existencial. Jean Valjean é, nesse sentido, a personificação da dor moral em constante reconstrução. Sua trajetória, longe de ser linear, é composta de rupturas, recaídas, dilemas éticos e escolhas radicais que o transformam profundamente — não apenas aos olhos dos outros, mas diante de si mesmo.
Desde as primeiras páginas, a figura de Valjean é marcada pela ambiguidade. É um homem brutalizado pelo sistema penal francês, tornado criminoso por roubar pão para alimentar sua família. A prisão o animalizou; a sociedade o rejeitou. Ele carrega no corpo e na alma as marcas da exclusão. No entanto, não é essa brutalização que o define. É, ao contrário, o gesto gratuito de bondade do Bispo Myriel — que lhe oferece acolhimento e perdão, mesmo após ser roubado — que catalisa a sua conversão moral. Roberts lê esse episódio como o “momento fundador do herói romântico”: aquele instante em que um ato externo de humanidade reacende a centelha da consciência interior.
Contudo, a redenção de Valjean não é imediata. Ele não se torna santo da noite para o dia. Ao contrário, passa a viver em estado de tensão constante entre o passado que o assombra e a promessa de um novo futuro.
Essa ambivalência ética é essencial para o romantismo: a verdadeira virtude não está na pureza, mas na luta com o erro.
Valjean vacila. Mente para proteger sua identidade como prefeito. Hesita em revelar-se para evitar a condenação injusta de um inocente. Mas, em cada dilema, opta — com sofrimento — por uma resposta moral. É esse percurso doloroso que o define como herói.
Um dos eixos centrais do romantismo é o embate entre o indivíduo e a ordem social. Valjean encarna essa tensão ao desafiar não apenas o sistema penal, mas o próprio imaginário burguês do que é ser um “homem de bem”. Ele se torna benfeitor, patrono, pai — mas nunca deixa de ser, aos olhos da lei, um fugitivo. Seu heroísmo, portanto, nasce de sua invisibilidade social e de sua coerência ética interior. Ele é o “anônimo virtuoso”, alguém que faz o bem mesmo quando ninguém o vê.
Por isso, depreende-se a ideia de que ele é invisível aos olhos do mundo, mas imenso aos olhos da mora – e dos leitores. Ao cuidar de Cosette, ao enfrentar a condenação para salvar um inocente, ao perdoar seu perseguidor, Valjean revela que o heroísmo está em colocar o outro no centro da própria jornada. É o triunfo da interioridade ética sobre a exterioridade jurídica. É, sobretudo, o retrato de um homem que, ao confrontar seus demônios, torna-se exemplo de dignidade universal.
Outro ponto que Roberts destaca é o contraponto com Javert, o policial obstinado que o persegue. Se Valjean representa a possibilidade de mudança, Javert é a imobilidade moral. Ele é fiel à lei, mas incapaz de concebê-la como instrumento de justiça. Quando Valjean o poupa — quando teria todo o direito de matá-lo —, Javert entra em colapso. Ele não consegue compreender que alguém possa agir com misericórdia onde o código exige punição. Essa colisão entre os dois representa o coração filosófico da narrativa: a lei pura como ferramenta de despersonalização, e o perdão como potência transformadora.
Por outro lado, a figura de Valjean também se afasta do herói romântico trágico tradicional. Ele não é vencido pelo destino nem se rende ao desespero. Sua força não está no poder, mas na capacidade de abdicar dele. Ao final da narrativa, quando abdica da presença junto a Cosette para não perturbar sua felicidade, realiza seu gesto mais heróico. Ele escolhe desaparecer. É a ética do sacrifício sem glória, que torna sua trajetória mais grandiosa. A dor da renúncia final sela a coerência de sua conversão: Valjean não quer reconhecimento, mas paz.
Essa estrutura narrativa — em que o personagem principal é movido por uma busca espiritual, marcada pela contradição e pelo arrependimento — encontra eco em outras figuras do romantismo europeu. Como Werther, Julien Sorel ou até Heathcliff, Valjean vive uma intensidade moral que desafia o mundo ao redor. Mas há uma diferença crucial: ele não sucumbe à angústia. Ele transforma a dor em prática ética. Não se isola, mas se doa. Não busca o sublime através da morte, mas pela vida dedicada ao outro. Roberts considera essa inflexão uma contribuição original de Hugo ao modelo do herói romântico.
Por fim, devemos reconhecer que a leitura de Valjean como herói romântico também serve para iluminar nossa própria visão contemporânea do que é “heroísmo”. Em tempos de pragmatismo, eficiência e cinismo, Valjean propõe uma figura de força que nasce da fragilidade reconhecida, da disposição de mudar, de carregar o peso do passado e ainda assim escolher o bem. Ele não oferece soluções fáceis, mas encarna a possibilidade de recomeço. Um herói, talvez, mais necessário agora do que nunca.
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2. Messias ou revolucionário?
Em Os Miseráveis, Hugo desenha uma verdadeira epopeia da condição humana, onde cada personagem encarna uma dimensão da luta entre opressão e liberdade, miséria e dignidade. Nesse cenário, Jean Valjean destaca-se não apenas como protagonista, mas como uma figura messiânica silenciosa, alguém que encarna a promessa de regeneração — não por meio da ideologia, mas pela vivência ética do amor e da justiça. O crítico literário Albert W. Halsall, em sua análise sobre o drama romântico, identifica Valjean como um personagem que transita entre o místico e o político, entre o Cristo e o revolucionário2.
Valjean não carrega uma bandeira, não discursa em assembleias, não participa diretamente da revolução encenada nas barricadas. No entanto, sua vida é, desde o início, um gesto radical de insubordinação ética. Ao rejeitar o destino que o sistema penal lhe impôs — o de ser para sempre um número, um criminoso, um pária —, ele inicia uma revolução íntima contra o determinismo social. Quando assume a identidade de Monsieur Madeleine, quando funda uma fábrica, emprega os pobres, salva Fantine da humilhação, ele não está apenas tentando reparar o passado — está construindo uma nova ordem de valores.
Essa ordem, como aponta Halsall, é sustentada por um código ético que não depende da autoridade legal, mas da consciência pessoal. Valjean não age por dever externo, mas por responsabilidade interna. Ele é o tipo de herói que se sacrifica em segredo, que atua na sombra, que escolhe o bem mesmo quando o custo é a sua própria felicidade. Nesse sentido, sua trajetória se aproxima de figuras messiânicas: ele carrega o sofrimento do outro, protege os fracos, renuncia à vingança, e por fim, morre abandonado, mas redimido.
O corpo de Valjean, como observa Halsall, é um instrumento dramático fundamental. Hugo lhe atribui uma força física sobre-humana — ele levanta carroças, escala edifícios, atravessa esgotos. Mas essa força não é usada para dominação ou guerra; ela é sempre colocada a serviço do outro. É um corpo forte que se dobra em cuidado, um corpo que carrega, que sustenta, que oferece abrigo.
Em meio a tudo isso, um ato se destaca de maneira especial: quando Jean Valjean perdoa Javert, este se torna um dos momentos centrais da construção moral de Valjean, além de ser também, em certa medida, uma forma de revolução – a revolução do perdão. Afinal, ao poupar a vida do homem que o perseguiu implacavelmente por décadas, Valjean rompe com a lógica da reciprocidade punitiva. Ele demonstra que a justiça verdadeira não é punir com igual medida, mas restaurar o humano no outro, mesmo que o outro o negue. Javert, incapaz de suportar essa inversão de valores, desmorona. Ele não é derrotado por Valjean — é derrotado pela misericórdia.
Essa misericórdia, porém, não é passiva. Valjean é ativo em seu silêncio, incisivo em sua ternura, inflexível em sua compaixão. Ele encarna uma forma de resistência que não se dobra ao ódio, mas também não se cala diante da injustiça. Quando salva Marius nos esgotos de Paris, age contra seus próprios interesses — e novamente escolhe salvar em vez de fugir. Esse gesto coroa sua revolução pessoal: uma jornada que começa com o roubo de um pão e termina com o dom gratuito da vida de outro.
É por isso que Halsall o inscreve na linhagem dos “redentores literários”. Jean Valjean não busca seguidores, mas ainda assim transforma todos ao seu redor. Cosette, Marius, Fantine, até mesmo Javert — todos são, em alguma medida, tocados por sua luz. E como um Cristo laico, Valjean carrega a cruz da própria história até o fim, para que outros possam caminhar sem esse peso.
Ao final, Valjean morre sem monumentos, sem medalhas, mas em paz. Sua morte é uma cena de transcendência. Ele cumpriu sua missão: mostrar que a compaixão é a forma mais radical de justiça, que a bondade pode ser revolucionária, e que a dignidade humana não pode ser enterrada, mesmo sob séculos de miséria.
3. Valjean, Raskólnikov e Prometeu: heróis em conflito
Jean Valjean, embora firmemente enraizado no contexto social e espiritual da França do século XIX, transcende suas origens nacionais e temporais. Sua figura adquire contornos universais quando colocada lado a lado com personagens igualmente monumentais da literatura mundial. Dois deles — Raskólnikov, de Crime e Castigo (1866), e Prometeu, da tragédia grega Prometeu Acorrentado — nos ajudam a compreender a complexidade ética e simbólica de Valjean em uma chave comparativa. Por meio desse contraste, revelam-se diferentes caminhos de transgressão, culpa, redenção e resistência que moldam o imaginário do “herói moderno”.
A semelhança mais evidente entre Valjean e Raskólnikov é o fato de ambos serem transgressores. Cometem crimes — Valjean, o roubo de um pão; Raskólnikov, o assassinato premeditado de uma agiota — e carregam as marcas da marginalidade. No entanto, o modo como cada um lida com esse ato é diametralmente oposto. Valjean é impelido pela necessidade, age sem cálculo filosófico. Já Raskólnikov comete seu crime como teste de uma teoria moral, acreditando que pessoas “extraordinárias” estão acima da lei. Sua transgressão é intelectualizada; a de Valjean, visceral.
A diferença crucial está na trajetória da consciência. Raskólnikov afunda em um ciclo de autoengano, justificação racional e desespero. Precisa ser salvo pela presença constante, silenciosa e amorosa de Sônia, que o conduz à confissão e à aceitação da culpa. Valjean, por outro lado, é transformado pela experiência imediata da bondade — o gesto do Bispo Myriel que, ao perdoar o roubo e confiar nele, revela a possibilidade de um outro caminho. Sua redenção começa com um gesto externo, mas se realiza internamente, em um longo processo de autoconstrução ética.
Enquanto Raskólnikov oscila entre arrogância e culpa, Valjean opta pelo caminho da ação compassiva. Ele não se isola em teorias, mas se entrega ao outro: protege Fantine, acolhe Cosette, salva Marius. Raskólnikov precisa de redenção; Valjean oferece redenção aos demais. Nesse sentido, Valjean representa uma redenção ativa, prática, cotidiana. Ele faz o bem com as mãos, com o corpo, com a presença. Sua ética é incorporada, enquanto a de Raskólnikov é pensada — e dolorosamente alcançada.
A comparação com Prometeu amplia a análise simbólica de Valjean para uma dimensão mítica. Prometeu desafia Zeus ao roubar o fogo sagrado para os humanos, sendo condenado a um sofrimento eterno. Ele é o arquétipo do rebelde que sofre por amor à humanidade. Valjean ecoa esse arquétipo em vários momentos: quando desafia o Estado ao reconstituir sua identidade, quando se recusa a denunciar-se, quando salva seus perseguidores. Ambos pagam o preço da rebeldia — Prometeu, fisicamente; Valjean, emocional e socialmente.
Como Prometeu, Valjean carrega o mundo sobre os ombros. Sua força física é reflexo de sua força moral. Ele literalmente carrega pessoas — Marius nos esgotos, Cosette na fuga, a cruz de sua própria história. Mas, ao contrário do titã, Valjean encontra uma forma de libertação. Sua dor não é eterna: ela se transforma em paz, em redenção. É o que diferencia o herói trágico do herói ético: Prometeu desafia e sofre para sempre; Valjean desafia, sofre — mas é transformado por esse sofrimento.
A dimensão de sacrifício e legado aproxima ainda mais essas figuras. Prometeu entrega o fogo; Valjean entrega a vida. Ambos agem não por glória, mas por amor. Prometeu ama a humanidade como ideia; Valjean ama pessoas concretas. Sua revolução é íntima. Ele não pretende mudar o mundo, mas muda radicalmente o destino de quem o cerca. Isso o torna um herói próximo, palpável — mais silencioso, mas também mais transformador. Ele nos mostra que não é preciso ser mitológico para ser eterno.
Por fim, ao comparar Jean Valjean com esses dois gigantes da literatura, compreendemos que seu heroísmo se constrói na fronteira entre o mito e o real. Ele é, ao mesmo tempo, humano como Raskólnikov — cheio de dúvidas, medos e erros —, e grandioso como Prometeu — capaz de gestos de amor e sacrifício que transcendem a lógica da sobrevivência. É essa ambiguidade, essa riqueza de dimensões, que faz de Valjean uma das figuras mais poderosas da literatura mundial.
Jean Valjean: o homem, o símbolo, o espelho
Jean Valjean, como vimos ao longo desta análise, é uma figura que ultrapassa os limites do romance em que habita. Ele não é apenas um personagem de Victor Hugo — é um compêndio de possibilidades humanas. Nele encontramos o homem falho e regenerado, o criminoso e o santo, o revolucionário e o silencioso. Ele sintetiza, com profundidade rara, as contradições do ser humano em conflito com o mundo e consigo mesmo. Seu percurso, longe de seguir uma curva previsível de redenção, é feito de recuos, silêncios e sacrifícios — o que o torna ainda mais real, mais possível.
Sua imagem espelha o herói romântico que luta contra as forças que o marginalizam, mas também o “messias” que escolhe salvar sem impor, que cura sem punir. E, como vimos, ele se projeta ainda no espelho de grandes figuras da literatura universal. Como Raskólnikov, Valjean conhece a culpa e a dor; como Prometeu, ele desafia as forças superiores por amor aos que estão abaixo. Mas o que o distingue é sua capacidade de carregar tudo isso sem sucumbir ao desespero ou à arrogância. Ele sofre, mas não se fecha. Erra, mas corrige. Ama, mesmo sem ser amado. E escolhe, até o fim, proteger os que ama mesmo à custa de desaparecer.
Ao final deste percurso, resta uma pergunta: quem somos diante de Jean Valjean? Acreditamos que as pessoas podem mudar, ou preferimos os rótulos que as mantêm no passado? Sabemos perdoar — ou preferimos punir? Valjean não é um modelo inalcançável, mas um convite permanente à coragem ética. Ele é o espelho que nos pergunta, com ternura e firmeza: e você — o que faria?
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