Por Otto Maria Carpeaux
Fausto tem fama de ser uma obra dificílima. Sabe-se que Goethe, um dos maiores poetas de todos os tempos, da categoria de Dante e Shakespeare, e além disso erudito de curiosidade e conhecimentos enciclopédicos, trabalhou durante mais ou menos sessenta anos na elaboração daquela obra máxima de sua longa carreira literária; está claro que entram na obra todos os sentimentos, angústias, ideais, projetos, experiências do poeta, de modo que se trata, quase, de uma obra autobiográfica. Ora, Goethe não pode ser modelo poético ou modelo humano para todos os indivíduos e para todos os tempos, porque nenhuma criatura humana é capaz de encarnar uma significação tão universal; mas é indubitavelmente o exemplo supremo de certa fase da civilização ocidental, entre o século XVIII e o século XIX – época da ilustração, conquistando a liberdade absoluta do pensamento e sentimento humanos; do romantismo que encontrou o sentido da literatura na expressão completa da personalidade livre, até o realismo que estabeleceu como fim desse individualismo a volta à sociedade de homens livres, a ação social – fase que ainda não acabou. Além de ser ele mesmo um indivíduo-modelo, Goethe revelou a intenção de transformar o Fausto, herói de uma velha lenda popular, em “homem representativo”, modelo do gênero humano; em seu torno tinham que girar, além da massa humana, as criaturas celestes e infernais que a imaginação criara para simbolizar as possibilidades da nossa grandeza e da nossa depravação. O último verso do “Prólogo no palco” exprime claramente aquela intenção:
“Do céu, através do mundo, até o inferno”.
Ao leitor deste verso, ocorrem imediatamente os versos (Paraíso, XXV, I) nos quais Dante definiu a Divina Comédia:
“…Il poema sacro
Al quale ha posto mano a cielo e terra”.
Com efeito, Fausto é a Divina Comédia dos tempos modernos. Goethe é o Dante moderno. Assim como o grande florentino, o poeta alemão dispunha do saber enciclopédico da sua época, resumindo poeticamente todos os sentimentos e pensamentos do homem moderno – Dante, o herói invisível da Divina Comédia, resumira todos os sentimentos e pensamentos do homem medieval. A Divina Comédia não pode ser lida e compreendida senão com a ajuda de comentários mais ou menos volumosos, e assim os alemães costumam ler o Fausto, folheando comentários eruditos que lhes explicam as alusões científicas, citações disfarçadas, sentidos ocultos – e quanto mais comentários, tanto mais se estabelece a convicção geral: Fausto é uma obra muito difícil.
Fausto é a Divina Comédia dos tempos modernos. Goethe é o Dante moderno.
É difícil, realmente, mas não tanto assim. Uma leitura, realizada com a atenção devida a uma grande obra da literatura universal, e ajudada por uma análise cuidadosa do texto e das cenas, resolve os primeiros problemas; para esse fim não são indispensáveis os grandes comentários, bastam notas e o uso de uma biblioteca clássica. Mas até os maiores comentários não servem para resolver outra série de problemas que Fausto apresenta. A primeira impressão da obra é desconcertante. Começa com monólogos e diálogos de conteúdo filosófico; parece começar um poema didático, à maneira do De natura rerum, de Lucrécio, embora cheio de emoção, exigindo a forma dramática. De repente, o poeta muda de assunto, continuando numa tragédia erótica cuja heroína é uma moça iludida e sacrificada, terminando de maneira tão insatisfatória que todo leitor sente: “este não é o fim definitivo”. Com efeito, segue-se Fausto, segunda Parte da Tragédia, obra que além do nome do personagem principal quase nada tem de comum com a primeira parte, apresentando cenas carnavalescas na corte, digressões enormes sobre mitologia grega e sobre assuntos geológicos – sim, geológicos, o ponto é importante – uma guerra misteriosa e uma grande obra de melhoramentos costeiros, não menos misteriosa; enfim, acaba a tragédia em pleno “Mistério”, no sentido do teatro medieval, no céu, com coros de anjos e arcanjos. É a obra mais complexa do mundo, mistura incrível de todos os estilos, e isso se explica só pela maneira como foi escrita a obra durante sessenta anos, acompanhando e exprimindo todas as mudanças estilísticas e filosóficas dessa longa vida literária. Será preciso acompanhar a história do Fausto, através daqueles anos de estudo e trabalho, para esclarecer a coerência da obra. Mas a coerência literária ainda não é coerência filosófica. Não basta saber o motivo de reunir uma tragédia filosófica, uma tragédia erótica e uma tragédia político-religiosa; trata-se de verificar a intenção íntima do poeta, que foi quiçá a mesma nas três partes, para conseguir a visão panorâmica do Fausto, compreendendo-lhe o sentido.
Deste modo, está estabelecido o plano desta introdução: à análise da obra seguir-se-á a história literária da obra, para terminar com a interpretação filosófica da sua significação universal.
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A “Dedicatória” é um belo poema de estilo classicista, evidentemente da época weimareana do poeta, aludindo ao longo intervalo durante o qual o trabalho ficou interrompido; desde já, temos que esperar estilos diferentes, combinações estranhas. O próprio poeta sentiu algo como a necessidade de justificar uma obra tão singular, apresentando-a num “Prólogo no palco”: o diretor do teatro dirige-se aos seus colaboradores principais, o poeta e o palhaço, consultando-os com respeito à situação financeira, bem desfavorável, do instituto. O público, parece, perdeu o interesse no teatro, e mesmo os que ainda o frequentam preferem divertimentos de ordem mais baixa. Que fazer? O palhaço conformar-se-ia com o gosto do público que não merece coisa melhor; mas o poeta protesta contra o aviltamento da mais nobre das artes, lembrando-se com saudade dos seus dias de entusiasmo juvenil – mais uma alusão àquelas interrupções do trabalho e à idade já algo avançada de Goethe. Já não é capaz de tanto fervor poético; olha o mundo com certo ceticismo de desiludido, e esse sentimento é a base da ironia do “Prólogo no Palco”, ironia contra o gosto do público, ironia contra as necessidades comerciais de direção de um teatro – o próprio Goethe era diretor de um teatro de Weimar – enfim, auto-ironia sutil e amarga. Essa ironia é um traço característico do romantismo, e o gosto dos românticos pela commedia dell’arte italiana inspirou a Goethe a ideia do “Prólogo no Palco”; também poderia pensar no Gran Teatro del Mundo de Calderón, em que o diretor combina com os atores a obra que se representará. Entre os românticos, Calderón gozava de grande admiração, e Goethe, como diretor de teatro, promoveu representações de peças do espanhol. O diretor também é que tem, no “Prólogo no palco”, a última palavra: vislumbrar o público com todas as artes e artifícios mecânicos do teatro, trovão, raio, grandes e pequenas luzes, assim como há grandes e pequenas luzes no céu, e as decorações realizarão milagres na peça, “Do céu, através do mundo, até o inferno”. É como se escapasse, por acaso, a um homem nada extraordinário uma palavra profética: é o plano de Fausto.
Já não é capaz de tanto fervor poético; olha o mundo com certo ceticismo de desiludido, e esse sentimento é a base da ironia do “Prólogo no Palco”, ironia contra o gosto do público, ironia contra as necessidades comerciais de direção de um teatro – o próprio Goethe era diretor de um teatro de Weimar – enfim, auto-ironia sutil e amarga
Outro prólogo é preciso para preparar os espectadores, acostumados às peças comuns, para receber devidamente o drama cósmico: o “Prólogo no céu”. Um coro de arcanjos – ao qual já se chamou, e com razão, “a harmonia das esferas, ressoando em língua alemã” – rodeia com um cântico de adoração perpétua o trono de Deus, perante o qual aparece um visitante raro e estranho: Mefistófoles, o diabo. Falam em conversa ironicamente ligeira, do gênero humano. Mefistófeles encara com ceticismo pessimista os esforços filosóficos das criaturas infelizes lá em baixo, comparando-as a certos insetos que pretendem voar e, logo após ao primeiro pulo, caem vergonhosamente. Evidentemente, o diabo não tem muita consideração quanto àquela ânsia inquieta de sair das limitações da condição humana – aquilo a que hoje se chama “fáustico”. Não é esta a opinião de Deus: “… erra o homem enquanto se esforça”, e a boa intenção justifica o fracasso; por exemplo, Fausto é assim, “meu servo”, diz Deus, aludindo ao alto espírito religioso do filósofo, até quando errado. O diabo, porém, não confia nos seres que o seu sublime interlocutor criou: Fausto também será capaz de causar surpresas assombrosas a seu Criador. E quando cai o pano, Deus e o diabo apostaram com respeito à alma de Fausto – ideia extravagante, cujo germe se encontra na lenda: teria sido uma aposta o pacto entre Fausto e o diabo que prometeu satisfazer a todos os desejos do feiticeiro, para ganhar, se revelar-se capaz disso, a alma dele.
Fausto é figura histórica. Viveu na Alemanha no começo do século XVI, numa época das superstições mais estranhas, ganhando a vida exercendo a profissão de astrólogo e necromante. Existem documentos relativos à sua pessoa – recibos de pagamento por ter feito horóscopos e coisas assim – mas não deixou vestígio algum de grande sabedoria ou de qualquer obra notável. Por motivos que ignoramos cresceu em torno de Fausto uma lenda fabulosa de milagres que ele teria realizado, e disso uma criatura humana só é capaz, conforme as convicções da época, com a ajuda do diabo. Por volta de 1520, em plena Renascença, Fausto ainda é um mago admirável. Por volta de 1580, depois da vitória do protestantismo e na época das guerras de religião, Fausto já está transformado em famoso teólogo que, por meio de um pacto, vendeu a alma ao diabo para gozar dos prazeres vergonhosos deste mundo e, tendo expirado o prazo, ser levado pelo demônio. O tema estava no ar. Calderón tratou tema semelhante em El mágico prodigioso. Mas a versão alemã do assunto tem tido sorte particular. Em 1587, um livreiro de Francfort publicou uma espécie de romance, não mal escrito, sobre a vida de Fausto; o livro foi logo traduzido para o inglês, e já em 1592 estava pronto a História trágica do doutor Fausto, drama de Cristopher Marlowe, um dos maiores poetas ingleses de todos os tempos e precursor imediato de Shakespeare. O espírito dessa peça é, apesar de Fausto ser enfim levado pelo diabo, tão irreverente que não ficou no repertório. Com o tempo, com os progressos científicos, a gente já não podia crer em pactos com o diabo. Cientistas respeitáveis realizaram, sem ajuda do demônio, milagres muito maiores que o velho necromante, e no século XVIII a figura de Fausto já caíra a personagem de teatro de bonecos, assustando as crianças. Assim o viu Goethe, quando menino.
Por motivos que ignoramos cresceu em torno de Fausto uma lenda fabulosa de milagres que ele teria realizado, e disso uma criatura humana só é capaz, conforme as convicções da época, com a ajuda do diabo.
Goethe restituiu a Fausto a dignidade de grande filósofo, desejoso de revelar os mistérios do Universo. O pacto com o diabo só podia servir, evidentemente, como símbolo do titanismo que não recua ante a apostasia para satisfazer às suas angústias religiosas. O Fausto de Goethe devia ser um erudito que percorreu todas as regiões do saber humano, inclusive a teologia, sem encontrar a solução dos mistérios do Universo. Assim é que aparece na primeira cena, no seu gabinete de estudo, “quarto em estilo gótico”, lamentando a inutilidade de todo o saber humano e de tudo o que ele mesmo estudou, “infelizmente a teologia também”, e enfim resolve dedicar-se às artes proibidas da magia: invoca o “Espírito da Terra”, o grande Espírito que sustenta a vida e rege a história, mas não suporta o espetáculo sublime e terrível da aparição; cai desmaiado. Entra, neste momento, Wagner, espécie de assistente do professor Fausto; viu a luz no gabinete noturno e gostaria de aproveitar da conversa do mestre. Wagner também é espírito enciclopédico: “sei muito, mas quero saber tudo”. Não o perturba, porém, a angústia “fáustica” de conquistar espiritualmente o Universo; só quer “saber tudo”, reunir tesouros de saber erudito e inútil para brilhar perante colegas e estudantes. Daí o seu grande apreço à eloquência, enquanto Fausto celebra a verdadeira eloquência, a do coração, mesmo sem palavras, revelando deste modo o fundo sentimental de suas ânsias filosóficas. Wagner sai, e Fausto continua o monólogo, chegando a preparar o suicídio.
Esses monólogos iniciais de Fausto são os trechos mais famosos da literatura alemã. Todo colegial os sabe de cor, e quase cada frase tornou-se citação, ocorrendo na linguagem da conversa até entre menos cultos. Com efeito, a beleza lírica desses monólogos é extraordinária, tanto mais que se exprime em versos irregulares da maior simplicidade, rimados como quadras populares. É beleza lírica, mas esta não é idêntica com profundidade filosófica. Com efeito, não convém exagerar a significação daqueles monólogos. Só na segunda redação entraram elementos espinozistas, evidentes nas palavras do “Espírito da Terra”. Mas em geral o valor daqueles monólogos não é de ordem filosófica e sim de ordem emotiva, como convém à poesia lírica: um Goethe não escreve poesia didática. E não é acaso que os colegiais gostam tanto dessa parte do Fausto; foi escrita por um jovem como eles, refletindo as angústias da adolescência que se julgam metafísicas e muitas vezes não são outra coisa do que revelações dissimuladas da ânsia sexual. É uma verificação que não tem absolutamente sentido pejorativo; o próprio Goethe autoriza a interpretação, transformando em desejo sexual as angústias filosóficas de Fausto, quando rejuvenescido.
Esses monólogos iniciais de Fausto são os trechos mais famosos da literatura alemã. Todo colegial os sabe de cor, e quase cada frase tornou-se citação, ocorrendo na linguagem da conversa até entre menos cultos. Com efeito, a beleza lírica desses monólogos é extraordinária, tanto mais que se exprime em versos irregulares da maior simplicidade, rimados como quadras populares.
Típica da psicologia do adolescente também é a resolução que termina o segundo monólogo: a de suicidar-se. E típica é a facilidade com a qual Fausto desiste do suicídio, só porque os sinos da noite de Ressurreição lhe sugerem lembranças sentimentais. Nota-se porém que Fausto exclui, verbis expressis, o sentimento religioso: “Ouço a mensagem, mas falta-me a fé”. Deste lado, o diabo não encontrará obstáculos.
Passeando, com Wagner, pelas cenas de alegria popular no domingo de Páscoa, Fausto tem mais uma oportunidade de revelar a verdadeira natureza de suas ânsias: o espetáculo do pôr-do-sol torna-o lírico, arrancando-lhe a confissão de que duas almas lhe habitam o peito, uma cheia de aspirações platônicas e outra presa no “prazer terrestre”. Volta para o “quarto em estilo gótico”, sente toda a infelicidade da sua vida solitária de erudito, procura, entre tantos livros, conforto no livro dos livros, na Bíblia. Estamos no século da Reforma. Com as traduções da Bíblia nas línguas nacionais começou uma nova era. E como outro Lutero, Fausto começa a traduzir o Evangelho de São João. “No início era o Verbo…”. Mas Fausto, descrente, já esqueceu a significação do “Verbo” divino; sente dúvidas quanto a tanta importância da “Palavra”, e prefere escrever “No início era o Ato”. Apesar dessa pequena heresia, a ocupação teológica de Fausto não agrada a um cão que o perseguira durante o passeio, acompanhando-o até para casa. Latindo e pateando, o animal exprime desgosto, ao ponto de chamar a atenção de Fausto, que suspeita logo a presença de um “mau espírito” no cão. Algumas palavras mágicas bastam para transformar o quadrúpede em gente. Um pobre estudante! Fausto gostaria de rir – mas nos cães pretos a humanidade sempre reconheceu encarnações do demônio. Desta vez, a figura humilde escolar é estratagema da guerra do próprio diabo, Mefistófoles. Apresenta-se com a maior franqueza, explicando a Fausto as razões do mal-estar filosófico: é preciso viver, viver realmente. E se ao erudito faltam os meios para gozar da vida, Mefistófeles promete arranjar tudo, tudo, pedindo só a assinatura de uma espécie de pacto: é preciso vender a alma. O pacto já estava na lenda; Goethe dá-lhe outra significação: o diabo obterá ganho de causa, quando Fausto se declarar satisfeito, quer dizer, quando a angústia “fáustica” tiver desaparecido. E porque Fausto considera impossível isso, aceita como se fosse uma brincadeira. No momento, só sente mal-estar, não quer receber um aluno, recém-chegado na Universidade, que pede a audiência de praxe. Em vez de Fausto, Mefistófeles, fantasiado de professor, recebe o pobre rapaz, dando-lhe uma lição maliciosa sobre a inutilidade dos estudos nas Universidades, desaconselhando-lhe a jurisprudência, ciência da injustiça, e a teologia, que teria outros defeitos menos explicáveis. Mefistófeles gostaria de chamar a atenção do estudante para a medicina, cujo exercício permite aproximar-se das mulheres. Em breve, o próprio Fausto aceitará esses conselhos. Por enquanto, Mefistófeles prometeu mostrar-lhe “o grande mundo”. Mas o gosto desse diabo é realmente mesquinho: o “grande mundo” é uma taberna cheia de estudantes embriagados, assustados pelas mágicas de Mefistófeles (a cena já se encontra na lenda); Fausto sai com desgosto.
[…] se ao erudito faltam os meios para gozar da vida, Mefistófeles promete arranjar tudo, tudo, pedindo só a assinatura de uma espécie de pacto: é preciso vender a alma. O pacto já estava na lenda; Goethe dá-lhe outra significação: o diabo obterá ganho de causa
O primeiro ataque fracassou. Mefistófeles acha que Fausto já é velho demais para aventuras assim; leva-o para a “cozinha das bruxas”, pedindo uma bebida de rejuvenescimento. Será em vão a tentativa de descobrir o sentido oculto nos versos dos habitantes demoníacos daquele lugar; ninguém ainda os decifrou. Na verdade, Goethe só quis botar coisas absurdas na boca das bruxas “bárbaras”, “nórdicas”, para fazer resplandecer tanto mais a imagem de Helena, da mulher mais bela da Antiguidade grega. Fausto, rejuvenescido, apaixona-se logo pelo fantasma inacessível, mas Mefistófeles sabe bem: “Agora, verás Helena em qualquer mulher”. Os adolescentes são assim. E Fausto, adolescente, recomeça a vida.
A primeira mulher que encontra na rua é Margarida, bela filha do povo. Quer possuí-la, já. A filosofia está esquecida. Começa outra parte do poema dramático, parte que exige menos explicações, tão lógica é a construção. Mefistófeles, por intermédio de uma velha amiga, arranja um encontro; arranja presentes. Mais um encontro: Margarida não entende nada das grandiloquentes declarações de amor, mas a eloquência do homem, certamente um nobre estrangeiro, é irresistível. Da parte de Fausto, há uma recidiva: na cena, intitulada “Floresta e caverna”, volta ao monólogo filosófico, se bem em tom diferente, em versos de nobre feição clássica, exprimindo aspirações superiores à pequena aventura amorosa; mas Mefistófeles não desiste. Interrompendo o monólogo, sabe excitar com palavras e gestos inequívocos a paixão do homem. Haverá a sedução. Voltamos a ver Margarida em conversa com outra moça, que fala mal de uma mãe de filho ilegítimo. De noite, quando Fausto e Mefistófeles oferecem uma serenata à amada, aparece o soldado Valentim, irmão de Margarida, para vingar a honra da família; Fausto mata-o com uma espada que Mefistófeles dirigiu. À sedução junta-se o crime. Margarida já se sabe perdida. Durante a missa, na catedral, às suas rezas angustiosas misturam-se a voz do demônio, o ruído do órgão, o canto do Dies irae, dies illa. É uma das grandes cenas dramáticas da literatura universal.
Não é preciso explicar, em pormenores, a “Noite de Valburga”, sábado das feiticeiras, que simboliza a vida devassa de Fausto, agora escravos dos seus sentidos e do diabo. É um sonho febril, misturado com cenas carnavalescas e uma sátira contra os poetastros de 1775, hoje sem interesse. Uma vez, durante o barulho, aparece a visão de Margarida, “pálida como uma condenada antes da execução”, logo os fantasmas intervém, e depois tudo se desvanece no ar como em um sonho, como começara. Mas Fausto sentirá remorsos. Na cena “Dia escuro, campo”, chega a injuriar o demônio. No fundo do horizonte da cena “Noite, campo”, vê-se o patíbulo armado. Enfim, a cena na prisão. Margarida matou a criança recém-nascida, é até culpada da morte de sua própria mãe. Espera a execução. A noite da loucura perturbou-lhe os sentidos, acredita balancear o filho morto; sinistramente o arrolo reflete-se nos muros da prisão. Fausto, guiado pelas artes mágicas de Mefistófeles, entra, pretendendo salvar a condenada. Ela só sente o horror da presença do demônio, recusa-se a fugir. “Sentenciada!” – eis a última palavra do diabo antes de os dois saírem. – “Salva!”, proclama uma voz celeste. Cai o pano. É o fim de Fausto, primeira parte da tragédia.
A tragédia de Margarida é uma peça completa, naquele estilo realista e rápido que os jovens poetas alemães por volta de 1770 escolheram para imitar Shakespeare. As cenas que a precedem estão no mesmo estilo, mas nada deixa prever o que se segue; é como se fosse outra peça, puramente lírica, sem desfecho. Doutro lado, a voz celeste “Ela está salva!” – não sabemos como – parece prometer uma continuação. Essa continuação existe: é Fausto, segunda parte da tragédia. Mas nela, Margarida já não aparece. É uma obra de todo diferente. A primeira parte compõe-se de um grande número de cenas curtas e rápidas, nem sempre coerentes; o verso é o metro simples, algo irregular, da poesia popular alemã; os personagens, com exceção de Mefistófeles, são todos criaturas humanas, bem caracterizadas, e o próprio Mefistófeles não é o diabo da lenda, e sim um observador clínico da vida humana. A segunda parte compõe-se dos cinco atos da tragédia regular, mas com a singularidade de que cada ato é uma peça perfeitamente independente; agora, Goethe emprega metros complicados; no terceiro ato, até o difícil trímetro dos poetas trágicos gregos, raramente imitado na poesia moderna; os personagens, inclusive o próprio Fausto, são símbolos ou antes alegorias, personificando certas ideias, continuando em diálogos cheios de alusões eruditas e expressões herméticas. Já não é fácil reconstituir a mera ação, envolvida em mistérios pelo poeta.
A primeira parte compõe-se de um grande número de cenas curtas e rápidas, nem sempre coerentes; o verso é o metro simples, algo irregular, da poesia popular alemã; os personagens, com exceção de Mefistófeles, são todos criaturas humanas, bem caracterizadas, e o próprio Mefistófeles não é o diabo da lenda, e sim um observador clínico da vida humana.
No começo do primeiro ato, uma paisagem primaveril e o canto de espíritos aéreos apagam toda lembrança das cenas sinistras que precederam. Fausto, dormindo na tranquilidade paradisíaca do ambiente, acorda; o seu monólogo é muito diferente dos monólogos apaixonados da primeira parte, é antes um discurso poético bem composto, aludindo às teorias estéticas de Goethe, idealista que atribuiu à arte uma realidade superior à da vida. Desta maneira, explica-se o verso final “…no reflexo colorido temos a vida”, quer dizer, a nossa vida real é só uma sombra cinzenta e efêmera, enquanto a arte, o “reflexo colorido”, nos oferece a vida verdadeira. Goethe, na velhice, gostava muito das alegorias. A segunda parte de Fausto apresentará uma série de cenas alegóricas no teatro das decisões transcendentais dos destinos humanos. No teatro real, lá em baixo entre os homens, Goethe já não pensava; em 1817 tinha-se demitido da direção do teatro de Weimar.
Goethe, na velhice, gostava muito das alegorias. A segunda parte de Fausto apresentará uma série de cenas alegóricas no teatro das decisões transcendentais dos destinos humanos. No teatro real, lá em baixo entre os homens, Goethe já não pensava; em 1817 tinha-se demitido da direção do teatro de Weimar.
A verdadeira primeira cena do primeiro ato, depois daquele prólogo, leva-nos à corte imperial da Alemanha. O século, embora não determinado, é aquele mesmo século XVI em que viveu o Fausto histórico. Mas o ambiente já não é o da cidade medieval, de casas góticas, mas da primeira parte. Agora, estamos em plena Renascença, em meio ao luxo artístico de uma corte daqueles dias, embora haja ainda alguns resíduos do gosto rude da Idade Média, por exemplo um bobo da corte – e esse bobo, recém-investido na sua dignidade, é Mefistófeles. Em situações de extrema emergência, costumava-se pedir o conselho desse palhaço oficial, e no momento a situação é assim. Imperador e corte vivem na alegria perpétua de festas artísticas, mas isso custa muito dinheiro, e a bancarrota bate às portas do palácio imperial. Chanceler e ministros não sabem solução. Mefistófeles, porém, fala, em alusões misteriosas, de tesouros que se encontram, enterrados aí e ali, sem dono, e dos quais o imperador podia dispor; discursando sobre metais e pedras preciosas e outros produtos estranhos das montanhas, emprega as palavras “Natureza e Espírito”, de modo que o chanceler, que é ao mesmo tempo arcebispo do império, o acusa de heresia – alusão evidente às perseguições do filósofo Fichte, suspeito de ateísmo. Mas o imperador gostou. Confia a Mefistófeles, que não economiza as promessas pouco claras, a tarefa de arranjar a próxima festa carnavalesca que trará surpresas. A festa é um poema com personagens alegóricos; Goethe escreveu certo número de poemas desta espécie para as festas da corte de Weimar, todos muito semelhantes, e o do Fausto não esconde símbolos mais profundos do que os outros. No fim, aparece Pluto, o deus da riqueza, distribuindo ouro e joias, e a festa acaba com um grande fogo de artifício. No dia seguinte, aqueles tesouros fantásticos já desapareceram, mas o milagre aconteceu: todos estão ricos. Alguém inventou o uso cômodo daqueles tesouros, enterrados nas montanhas, sem o trabalho de desenterrá-los, emitindo o imperador pequenas folhas de papel que constituem dinheiro simbólico garantido pela exploração futura das montanhas. Diz-se que Goethe aludiu aos assignats da Revolução Francesa; mas a alegoria é de significação muito mais geral, descrevendo-se com penetração admirável do assunto as consequências da inflação de papel-moeda – e desde aqueles dias o primeiro ato da segunda parte de Fausto não perdeu nada em atualidade. O feiticeiro que realizou, inspirado por Mefistófeles, o milagre, é Fausto; foi ele que apareceu na máscara do deus Pluto. O imperador está encantado. Espera tudo da magia de Fausto. Ora, o supremo desejo da Renascença era o contato mais íntimo com a Antiguidade grega; e o imperador deseja ver a encarnação da beleza grega: Helena.
Pela primeira vez, Mefistófeles não pode ajudar. É o diabo do cristianismo, não tem poder sobre as almas pagãs que habitam “um inferno separado”. Se Fausto pretende invocar espíritos gregos, tem que procurar, antes, as “mães” que moram em baixo da terra. Eis o símbolo mais misterioso da obra inteiro, discutidíssimo entre os comentadores. Por enquanto, basta dizer que Goethe pensava nos deuses subterrâneos dos gregos, geração divina precedente aos deuses olímpicos – divindades terríveis cujo aspecto mata. O próprio Mefistófeles está com dúvidas: Fausto voltará da viagem perigosa? Volta, mas não com Helena; só com o poder mágico de produzir o fantasma de Helena. Perante o imperador e corte, Fausto evoca o espírito da mais bela das mulheres. Esquecendo-se da situação, o mago apaixona-se pelo espectro, pretende abraçá-lo – e uma explosão o faz desmaiar e termina a festa. Com as artes mágicas, tão falsas como o dinheiro do imperador e o luxo da corte, não se chega a conquistar a beleza grega.
Se Fausto pretende invocar espíritos gregos, tem que procurar, antes, as “mães” que moram em baixo da terra. Eis o símbolo mais misterioso da obra inteiro, discutidíssimo entre os comentadores.
O fim do primeiro ato era bastante abrupto. O começo do segundo ato é ainda mais surpreendente. Estamos novamente no “quarto de estilo gótico” do começo da primeira parte; Mefistófeles trouxe o desmaiado para ali, libertando-o das imposições da corte e da sua paixão. Parece que nada mudou nessas salas estreitas. Repetem-se até certas cenas da primeira parte – mas só para revelar as mudanças profundas do tempo. Aparece um bacharel: aquele estudante que pedira humildemente os conselhos de Mefistófeles. Agora fala com a maior insolência em termos da filosofia de Hegel, nega a própria existência ao lado do diabo; proclama o direito soberano da juventude de saber tudo sem ter aprendido nada, zombando da erudição antiquada dos velhos. E Mefistófeles responde com ironia superior, como porta-voz do velho Goethe, também atacado pelos novos. Enquanto Mefistófeles se inclina, como sempre, para o ceticismo, e enquanto Fausto dorme o sono que o restabelecerá para novas aventuras, Wagner, agora erudito famoso, dedica-se a investigações experimentais que são coroadas de êxito: consegue produzir na retorta uma criatura quase humana, o Homúnculo. A significação desse personagem é muito discutida. Já se falou em profecia goethiana do robô e milagres semelhantes da técnica. É, porém, preciso considerar o papel do Homúnculo na peça: guiará a Fausto para a Grécia, mas lá, entre as figuras vivas da mitologia grega, desaparece sem ter chegado a Helena. Homúnculo é o autêntico filho bastardo de Wagner, do erudito livresco: criatura dotada de inteligência, mas sem vitalidade biológica. Homúnculo representa os conhecimentos livrescos e eruditos acerca da Grécia, úteis para abrir um caminho mas incapazes de guiar até o ideal da Beleza. É Homúnculo que, após ter censurado o mau gosto do ambiente “gótico”, propõe a Fausto, já despertado, a viagem pelos ares para a Grécia. A “Noite de Valburga” clássica, pendant da “nórdica” na primeira parte, substituídas as bruxas por ninfas e os demônios por deuses, têm funções dramatúrgicas semelhantes como na outra peça, cobrindo um espaço de tempo que não foi possível representar por acontecimentos visíveis. Na primeira e na segunda noite de Valburga, Goethe aproveitou-se da ocasião para dizer e apresentar o que não cabia em outra parte; espécie de depósito de fragmentos, esboços, poesia experimental. Na primeira “Noite de Valburga” reuniu algumas brincadeiras literárias, apreciáveis pela verve do então jovem poeta. A “Noite de Valburga” clássica já é um poema altamente artificial, para cuja leitura é preciso consultar continuamente o dicionário da mitologia antiga. Tudo o que a imaginação meio religiosa, meio artística dos gregos inventara, Goethe representou-o numa espécie de carnaval classicista, do qual só alguns belos trechos se salvam. Evidentemente, as intenções do poeta não eram poéticas, antes criar alegorias para exprimir ideias e conceitos extra-poéticos, idées fixes do velho poeta. Os comentadores conseguiram decifrar, com maior ou menor dificuldade, essas alegorias. O resultado não valia muito a pena, mas um caso é surpreendente, o da longa conversa poética entre Tales e Anaxágoras. Trata-se, como se sabe, de dois filósofos pré-socráticos que defenderam teorias diferentes sobre a origem e essência do mundo. Em Fausto, os dois velhos repetem essa discussão, falando Tales em favor da água e Anaxágoras em favor do fogo – e a análise dá o resultado desconcertante de que se trata, em Goethe, de teorias geológicas modernas, algo penosamente versificadas. Naquela época, por volta de 1820, o geólogo Buch defendeu a origem vulcânica das montanhas, enquanto Humboldt preferiu a teoria “aquática”, a da sedimentação vagarosa. O velho Goethe tomou partido em favor da teoria da sedimentação, tornando-se partidário tão apaixonado que achou o assunto digno de figurar em sua obra máxima. Hoje, aquela discussão científica, já tendo perdido toda importância, os “trecos geológicos” do Fausto nos sugerem a impressão de um descuido do velho poeta, já sem senso de proporções e sem capacidade de organizar a composição. Afinal, a observação aplica-se à segunda parte inteira do Fausto, e não é, em si, fatalmente uma restrição. Para as obras máximas da arte não estão em vigor as leis da estética dogmática sobre composição regular, e a falta de proporções clássicas é até qualidade frequente das grandes obras de velhice, nas últimas esculturas de Miguel Ângelo, nos últimos quadros de Rembrandt, nas últimas sonatas de Beethoven. A obra toda da velhice de Goethe também é assim, e se ele achou por bem pôr no centro de sua obra máxima uma discussão versificada sobre questões geológicas, é lícito admirar-se, mas também é preciso supor, desde já, que o assunto deve ter tido significação secreta, que se revelará. Por enquanto, só se notam as consequências na composição literária: o ato acaba, por assim dizer, sem resultado. Homúnculo desaparece sem ter encontrado Helena – o caminho à beleza não vai através da erudição livresca – e o aparecimento de Galateia só é uma previsão muito vaga do que virá.
Começa o terceiro ato, e de repente, sem qualquer explicação prévia, Helena está aí, rodeada de um coro de criados, exatamente como na tragédia grega, falando no metro próprio dessa tragédia. Fugiu da vingança do marido ciumento, procurando asilo no castelo de Fausto. Ora, um castelo gótico de um cavaleiro medieval em meio da Grécia – não pode haver anacronismo pior e menos perdoável, invenção pouco feliz para arranjar o encontro de Fausto com a mulher cuja imagem o acompanhava desde a cena na “cozinha das bruxas”. Gerações de comentadores, educados na veneração de Goethe, esforçaram-se para dar sentido puramente simbólico àquele castelo na Grécia, até o historiador Fallmerayer chamar a atenção para uma circunstância esquecida: aquele castelo é histórico. Em 1204, em vez de dirigir-se à Palestina, os cavaleiros franceses e germânicos da Quarta Cruzada conquistaram Bizâncio, depois as províncias do império bizantino, e justamente na Grécia construíram os castelos dos quais ainda hoje se admiram as ruínas de estilo gótico, intrusas na paisagem que fora de Zeus e Apolo. Deste modo, uma decoração histórica, nada arbitrária, é teatro do encontro erótico entre Fausto e Helena, encontro do qual nasce um filho, Euforion, criatura entre Ariel e menino prodígio, ao qual está preparada ascenção extraordinária. Mas assim como Ícaro, que pretendeu voar ao sol e caiu para a terra, deixando só a memória luminosa, assim Euforion cai morto, e com ele a própria Helena se desvanece, deixando a Fausto só a recordação de um fantasma belo e efêmero.
O terceiro ato de Fausto, convencionalmente chamado “Tragédia de Helena”, constitui uma peça independente dentro da obra em conjunto. O valor literário desse poema dramático é de primeira ordem, embora só poucos críticos alemães tenham reconhecido isso. O classicismo é um estilo artificial, acessível só aos conhecedores profissionais da arte literária, enquanto os leigos tendem a confundi-los com a imitação dos clássicos pelos epígonos. Por isso, as obras da velhice de Goethe nunca gozaram de verdadeira popularidade na Alemanha: a cem leitores que leram e até estudaram a primeira parte de Fausto, correspondem nem cinco que conhecem a “Tragédia de Helena”. Perdem-se assim as lições simbólicas que Goethe incluiu na obra. Uma delas foi de significação só efêmera, isso é verdade: na figura de Euforion, o gênio que morre menino, Goethe pretendeu homenagear a Lord Byron, apreciado por ele entre todos os poetas da era romântica e que morrera em Missolonghi, na Grécia, quando lutando pela liberdade dos gregos. O próprio Goethe nunca chegara a ver a Grécia, e Byron parecia-lhe como o irmão mais novo que deu um passo para a realização do grande ideal goethiano: a síntese entre o espírito “fáustico”, germânico, e a beleza grega. Essa síntese é evidentemente o símbolo que dá a vida à “Tragédia de Helena”. Mas Goethe não pretendeu iludir a ninguém, nem a si mesmo: a síntese estava idealizada, e não realizada. Ao poema, tão rico em belezas inesquecíveis, falta vida dramática. Deste modo, a segunda parte de Fausto continua no quarto ato sem vestígio do que aconteceu na Grécia, como se tivesse sido um mero intermezzo sem consequências. Na verdade, porém, o quarto ato está inspirado, secretamente, pelo motivo psicológico de explicar por que aquele sonho de beleza germânico-grega se desvaneceu.
No quarto ato da segunda parte respiramos atmosfera diferente de todas as cenas precedentes. Paisagem montanhosa, céu nublado como antes de uma tempestade. Fausto também está diferente. Nada de beleza, de amor; pretende agir em vez de gozar da vida. Já fala de um grande projeto de construção de um dique para impedir as inundações devastadoras da região costeira e conquistar terreno novo, terra para muita gente, para lá viver em felicidade. Goethe lera e ouvira naqueles anos informações a respeito de obras semelhantes na Holanda, mas essa fonte não tem muita importância. O quarto ato, assim como o quinto, não se passa na Holanda nem na Alemanha, e sim num país simbólico, terreno das lutas eternas da humanidade; tão pouco se trata de século ou época definida, e sim do tempo ideal da História com maiúscula. Por enquanto, Fausto não realizará o projeto. Intervém a guerra entre o imperador, reaparecendo sem explicação como, e um contra-imperador que lhe pretende roubar o país. Essas cenas de Fausto, apesar dos personagens alegóricos, são de uma atualidade palpitante. Assim como Goethe profetizou, no primeiro ato, o fenômeno da inflação, assim antecipa no quarto ato o imperialismo e a guerra imperialista. E da mesma maneira como aquela profecia foi inspirada por um acontecimento contemporâneo, a emissão dos assignats pelo governo revolucionário francês, assim a profecia do imperialismo inspirou-se nas guerras napoleônicas. Como na história venceram os monarcas legítimos sobre o usurpador, assim vence o imperador na peça; mas tem que pagar um preço alto pela vitória. Além de satisfazer aos desejos dos ministros, terá que doar quase o império inteiro à Igreja, representada pelo chanceler-arcebispo. Goethe alude evidentemente aos acontecimentos da reação política na Europa depois de 1815: os monarcas vitoriosos, receando as reivindicações dos povos, apoiavam-se na aristocracia e na Igreja. Goethe, como se sabe, foi conservador; não sentiu simpatia alguma para com os ideais da Revolução Francesa. Mas a sua atitude não era a do político reacionário, antes a do artista e erudito que teme a perturbação do seu trabalho. Quanto aos motivos e valor das forças conservadoras, Goethe não guardava ilusões; sobretudo a Igreja gozava de todas as suas antipatias de um neo-pagão convencido. No fundo, teria preferido o imperador revolucionário, Napoleão, ao qual dedicou, pessoalmente, a maior admiração; e a vitória das forças reacionárias, pseudo-cristãs, explicaria o esquecimento de Helena.
Assim como Goethe profetizou, no primeiro ato, o fenômeno da inflação, assim antecipa no quarto ato o imperialismo e a guerra imperialista. E da mesma maneira como aquela profecia foi inspirada por um acontecimento contemporâneo, a emissão dos assignats pelo governo revolucionário francês, assim a profecia do imperialismo inspirou-se nas guerras napoleônicas.
Isso mesmo aparece com toda a clareza no começo do quinto ato; ali, Fausto é outro Napoleão, realizando agora o seu grande projeto, esmagando implacavelmente as forças conservadoras que se opõe, pela inércia, à sua ação revolucionária. Para simbolizar as forças conservadoras, Goethe lembrou-se da lenda antiga de Filêmon e Baucis, do velho casal que os deuses salvaram do dilúvio. Em Goethe, inverte-se o sentido da lenda. Fausto, habitando um palácio à beira-mar, onde dirige as obras, sente-se molestado pelos sinos da capela na casa dos velhos – não quer ouvir sinos cristãos nem tolerar o conservantismo de gente sedentária desde séculos. Manda transplantar os velhos, pela força, para outra região, e não tem culpa se a ordem é cumprida de maneira rude, matando os velhos e incendiando-lhes a casa. É o último crime que se comete em seu nome.
A noite, uma noite simbólica, cai sobre o palácio, e na escuridão aparecem quatro fantasmas de mulheres vestidas de cinzento: Pobreza, Miséria, Culpa e Angústia. As três primeiras, Fausto consegue afastá-las. Mas a Angústia, que toda criatura humana conhece, fica; e com as palavras – “Os homens são cegos durante a vida inteira; Fausto será cego no fim!” – apaga-lhe os olhos. Devia tornar-se cego para perder de vista a realidade e ver realizada, em visão, a sua obra. É o último monólogo de Fausto, correspondendo aos monólogos do erudito teórico que já substituíra as palavras “No início era o Verbo” por “No início era o Ato”. Diante dos olhos cegos vê o panorama grandioso da terra conquistada contra os elementos, um país livre de homens livres que devem tudo a ele, e nessa visão, sente tanta felicidade íntima que é com o desejo de ver perpetuado esse momento que Fausto morre: a letra do pacto está cumprida, e a sua alma é do diabo que tão bem o serviu. Com efeito, Mefistófeles chama logo os diabos para levar o cadáver, mas não será capaz de gozar de seu triunfo. Um exército de anjos intervém em favor do condenado, e começa o que se poderia chamar “Epílogo no céu”. Através de desfiladeiros fantásticos, a alma de Fausto está subindo e subindo – Goethe inspirou-se evidentemente na Divina Comédia de Dante, na subida do florentino pelas esferas celestes. Num escrito de 1826, sobre Shakespeare, encontra-se um trecho, elogiando o realismo das paisagens dos outros mundos em Dante. Assim com este passa pelos coros dos santos, Fausto atravessa as regiões dos anacoretas, pais e doutores da Igreja; e assim como Dante chega enfim à Mãe de Deus, Fausto também chega a ver a personagem feminina que intercede em seu favor perante o trono divino. “Salva!”, assim terminou a primeira parte. Agora, é ele que está salvo. Um Coro Místico anuncia a redenção do que sempre se esforçou, embora errando. É o fim do “Epílogo no céu” e de Fausto.
Não se dispensam as notas de um dicionário mitológico, eventualmente uma boa enciclopédia, para esclarecer este verso, aquela alusão e várias expressões enigmáticas. Mas em geral, a análise literária basta para compreender o sentido das cenas. Não porém para compreender o sentido da obra. Essa insuficiência revelou-se durante o século XIX através da crítica literária que, embora reconhecendo o valor singular da grande obra, apontou os defeitos manifestos. Antes de tudo, Fausto é um poema dialogado: pretende apresentar-se como drama. Mas será um drama? Quanto a isso, a última palavra cabe aos diretores de teatro, aos atores e aos espectadores, e a resposta não foi unanimemente afirmativa. Começaram cedo as tentativas de representar a obra: em 1820 representou-se em Breslau a primeira parte; a segunda parte só em 1854 em Hamburgo; e em Weimar, em 1875, a obra inteira. Essas representações integrais são muito raras. A segunda parte, munida das cenas espetaculares que o diretor recomendara no “Prólogo no palco”, é uma obra imensa, excedendo todas as possibilidades do teatro físico; sempre quando se tentava a representação, perderam-se os valores poéticos, ficando só um espetáculo bizarro. Quanto à primeira parte, Goethe não pensara no teatro; mas, contra as suas previsões, a obra incorporou-se ao repertório, conquistando até popularidade. É verdade, porém, que a tragédia de Margarida se torna mais importante, no teatro, do que as partes filosóficas que os atores, em geral, não são capazes de representar de maneira satisfatória. Além disso, o tamanho da obra é muito grande, grande demais. É preciso cortar cenas inteiras, e enfim os homens da profissão teatral acham: bela obra para leitura, mas não para nós outros.
A impressão da leitura não é muito diferente. Fausto tão pouco é um drama para ser lido. É uma mistura singular de poesia dramática, poesia épica, poesia lírica, de desigualdade desconcertante: trechos que são do maior que a literatura universal possui alternam com outros, de inferioridade evidente. Já se falou das desigualdades da segunda parte e do exagero no apreço dado aos primeiros monólogos. Poucos críticos têm tido a coragem quase ingênua de Benedetto Croce, dizendo: “Margarida é personagem sem importância, e a sua tragédia não pode fazer parte do drama cósmico”. Em outras palavras, o que perturba a impressão geral e a compreensão da obra em conjunto é a variedade dos estilos dentro da mesma obra. Não basta dizer que a primeira parte é realista e a segunda parte classicista. Na verdade, os dois estilos alternam continuamente. A primeira parte é realista no sentido dos alemães de 1770, admirando e imitando a Shakespeare; mas o espírito da obra tem pouco do grande inglês, é antes altamente idealista. A segunda parte seria toda classicista, estilo grego, se não fossem os elementos românticos no primeiro e segundo ato e o fim dantesco; e o espírito da obra, com exceção da “Tragédia de Helena”, não é nada grego, é realista e até moderno. Daí várias dificuldades da interpretação nos pormenores e no conjunto.
A crítica sempre conhecia o motivo daquelas discrepâncias. Goethe começou a escrever o Fausto pouco depois de 1770, como jovem de vinte e poucos anos, e terminou a obra em 1831, na idade de 82. Fausto acompanhou-o durante a vida inteira, refletindo fielmente todas as mudanças de gosto, convicções, ambientes. A interpretação seria mais fácil se possuíssemos todos os manuscritos das fases diferentes. Mas isso não acontece. Durante decênios, estavam conhecidos só quatro textos: os de 1790, os de 1808, 1827 e 1832. Em 1790, Goethe publicou a primeira edição de Obras suas; lá estava Fausto, um fragmento, quer dizer, a primeira parte, do começo até a cena na catedral. Em outra edição das Obras, de 1808, Goethe publicou a primeira série inteira; e em 1827 saiu a “Tragédia de Helena”, sem indicar a sua posição como terceiro ato da segunda parte. Só depois da morte de Goethe, no mesmo ano de 1832, publicou-se a segunda parte inteira. Não se sabia muito sobre as fases do trabalho antes de 1790, dispondo a crítica só de algumas notas de contemporâneos, amigos de Goethe, e não se sabia nada sobre a origem da segunda parte. Em 1887, um historiador da literatura alemã, Erich Schmidt, descobriu num arquivo de Weimar um manuscrito, da mão de Luísa de Goechhausen, dama de honor em Weimar por volta de 1775 e amiga de Goethe; tinha ela copiado o manuscrito dum fragmento dramático que o poeta redigira como estudante em Estrasburgo, e que representa a primeira versão, muito diferente de todas as outras, da primeira parte de Fausto. Mas não só nisso reside o valor da descoberta. A comparação com outros manuscritos e notas revelou que já então estava projetada a segunda parte. E ainda levou decênios o trabalho de esclarecer a composição de Fausto durante a vida de Goethe.
Em outras palavras, o que perturba a impressão geral e a compreensão da obra em conjunto é a variedade dos estilos dentro da mesma obra. Não basta dizer que a primeira parte é realista e a segunda parte classicista. Na verdade, os dois estilos alternam continuamente.
Antes de tudo, é preciso lembrar os fatos principais dessa vida. Nascido em 1749 em Francfort, foi em 1765 para Leipzig, frequentando a Universidade, onde ainda dominava o gosto do classicismo francês: a Grécia, vista através das galantarias do Rococó. Adoeceu o estudante, voltando para casa e experimentando várias curas meio charlatanescas; conheceu curandeiros e astrólogos, adquirindo os vastos conhecimentos do ocultismo que aparecerão, aí e ali, na primeira parte de Fausto. Continuando os estudos na Universidade de Estrasburgo, aprendeu várias coisas das quais não se sabia nada em Leipzig: poesia inglesa, sobretudo Shakespeare; arquitetura gótica e entusiasmo pela arte medieval e poesia popular. Seu mestre nessas coisas foi Herder, o grande crítico que introduziu na Alemanha o pré-romantismo, o movimento que se chamava Sturm und Drang (quer dizer mais ou menos “Tempestade e Ânsia”). Herder era um gênio de primeira ordem, teria sido um dos maiores escritores de todos os tempos se a inquietação íntima não o tivesse impedido de realizar obras perfeitas. O jovem Goethe deve-lhe as sugestões mais profundas. Com efeito, Herder podia dar-lhe tudo, menos a paz da alma, perturbada para sempre depois que Goethe conheceu Friederike Brion, filha dum pastor luterano na aldeia alsaciana de Sesenheim. Amavam-se, mas o jovem poeta não se sentiu capaz de ligar o seu futuro ao ambiente estreito, abandonando a moça. O primeiro vestígio dos remorsos encontra-se em Werther, escrito pouco depois, em Wetzlar, onde Goethe serviu no tribunal imperial; o suicídio do herói do romance é algo como uma auto-punição simbólica do autor, mas a imagem da moça abandonada perseguiu-o durante a vida inteira. Em Wetzlar recebeu o convite para a corte de Weimar, cidadezinha que ele transformou em capital da literatura alemã. O novo ambiente libertou-o dos costumes boêmios e do romantismo exagerado e sentimental dos camaradas da Universidade. Pouco a pouco, o seu gosto se modificou. Voltou aos modelos gregos, enfim fugiu, quase, para a Itália, em procura da beleza clássica. Viveu dois anos em Roma e Nápoles, voltou como classicista dogmático, para nunca mais abandonar essa doutrina algo estreita. Experiências posteriores mostram que essa doutrina era bem capaz de sufocar-lhe a inspiração. Por enquanto não se deu isso, principalmente pela influência do grande dramaturgo Schiller, ele também antigo pré-romântico e convertido ao classicismo, que se tornou algo íntimo do Goethe, sugerindo-lhe estudos filosóficos e atividades poéticas. Mas depois da morte de Schiller, Goethe renunciou quase inteiramente à literatura, dedicando-se a estudos de ciências naturais: geologia, mineralogia e óptica. No início do novo século, gostava das grandes homenagens que os românticos lhe prestaram, celebrando-o como maior poeta dos tempos modernos, comparando-o a Dante e Calderón. Mas logo aborreceu-o o “obscurantismo” dos românticos, a sua aliança com a Igreja católica e as forças da Reação, e durante longos anos apoiou alguns pintores e escultores de terceira categoria só porque ficaram fiéis ao ideal grego. Não incluiu na sua aversão o romantismo mais oposicionista de Byron, em que reconheceu o gênio irmão. E em geral, é preciso notar que o classicismo de Goethe, tão dogmático e estreito quanto à literatura e às artes plásticas, não o impediu de acompanhar com a maior antenção as transformações sociais do mundo. Uma das suas últimas obras, o romance Anos de viagem de Guilherme Meister, alude várias vezes aos começos do capitalismo e à questão social. Isso nos mesmos anos nos quais trabalhou no Fausto, acabando a obra só pouco antes da morte.
Os últimos versos foram escritos em 1831. As primeiras impressões são mais ou menos de 1760, quando Goethe era menino de 11 anos. Naquela época viu Fausto como espetáculo de bonecos. Não sabemos quando leu o Livro do doutor Fausto – versões populares da obra de 1587 ainda circulavam na Alemanha, vendidos nas feiras – provavelmente em Estrasburgo, quando Herder lhe sugeria o interesse pelo folclore alemão. Interpõem-se as influências do gosto classicista de Leipzig e os estudos do ocultismo, de modo que Goethe, em Estrasburgo, já era capaz de conceber um Fausto, erudito da Renascença, a cabeça cheia de superstições medievais, mas apaixonado pela beleza grega. O contato com estudantes da medicina lembrou-lhe a figura do grande médico teofrasto Bombasto de Hohenheim, chamado Paracelso (1493-1541), contemporâneo do Fausto histórico e um dos criadores da farmacêutica científica, cujas curas milagrosas se atribuíram à ajuda de espíritos ou do próprio diabo. Também se lembrou de outra grande figura da Renascença alemã, do filósofo Agrippa Nettensheim, cujo ceticismo não o impediu de acreditar seriamente na necromancia e nas artes diabólicas. São dois precursores de uma ciência mais poética do que exata, de uma ciência romântica. Mas havia outro modelo, mais impressionante porque vivo: Herder. A crítica moderna gosta de identificar Herder e Fausto, e não está errada, apenas exagerando. De Herder, Fausto tem a inquietação espiritual, as angústias meio religiosas, meio sexuais, a insatisfação perpétua com a própria atividade e obra, quer dizer, tudo o que o jovem Goethe também sentiu em si mesmo. Mas os caminhos de vida de Herder e de Fausto não se parecem. A influência do crítico era mais de ordem literária. Chamou a atenção do jovem amigo para a poesia popular, sugerindo-lhe o metro simples e a rima sem artifício das canções camponesas. O knittelrein, o metro da primeira parte do Fausto, é parecido, mas não idêntico, tem mais outro modelo: Hans Sachs, o dramaturgo alemão do século XVI. Não se distinguiu então bem entre a Renascença alemã, ainda meio medieval, e o estilo gótico que Goethe admirava na catedral de Estrasburgo. Daí o “quarto de estilo gótico” dos primeiros monólogos; e a paisagem sorridente do passeio no domingo de Páscoa é a paisagem alsaciana em redor de Estrasburgo. O espírito daqueles primeiros monólogos é o de um adolescente de gênio, e as alusões satíricas no diálogo entre Mefistófeles e o aluno referem-se às experiências do jovem universitário Goethe em Leipzig e Estrasburgo. A forma dramática dos primeiros esboços já era certamente a sequência pouco coerente de cenas curtas e rápidas; todos os dramaturgos do Sturm und Drang escreveram assim, o próprio Goethe escreveu assim o Goetz de Berlichingen; acreditavam ser isso o estilo dramatúrgico de Shakespeare que conheciam menos no original do que em traduções em prosa. O Fausto de Goethe devia ser, conforme tudo isso, uma tragédia shakespereana, tendo como herói um grande erudito alemão, gótico ou da Renascença, que se torna, por inquietação íntima, herético. É preciso notar que o jovem estudante de Estrasburgo já estava muito conhecido, considerado como a maior esperança da vanguarda literária de então. Comunicou em conversa e cartas o seu projeto a vários amigos, de modo que durante alguns anos a Alemanha inteira esperava, com impaciência, a obra anunciada. Mas este primeiro Fausto não saiu nunca. E outros poetas do Sturm und Drang sentiam a vocação de realizar o projeto que o companheiro abandonara, aparentemente. Publicou-se um drama Fausto, de Maler Mueller, um romance Fausto de Maximiliano Klinger, amigo de infância de Goethe, e outros. Goethe dera à época um tempo de predileção, mas que ninguém era capaz de teatralizar como convinha.
Mas por que Goethe não realizou o projeto de Estrasburgo? Interviera a experiência de Sesenheim: o amor a Friederike Brion e o abandono da moça, o sentimentalismo de Werther. Os problemas filosóficos foram substituídos por problemas eróticos. Viver é mais importante do que saber. Dessa opinião também foi um homem que Goethe conheceu quando advogado em Wetzlar, Ioham Henrich Merck, homem demoníaco que acabou suicidando-se. É ele, sem dúvida, o modelo de Mefistófeles, do tentador. Se Fausto obedeceu aos conselhos desse homem, devia ser trágico. Goethe já tinha fornecido aos companheiros um assunto: agora ele, por sua vez, recebeu a influência deles. O Sturm und Drang tinha feição revolucionária e interesses sociais. Preocupavam-no as injustiças da vida alemã de então, a barbaridade da justiça penal, o rigor exagerado das convenções morais. O espetáculo da moça seduzida à qual os preconceitos do ambiente quase obrigaram a matar a criança, o espetáculo horroroso, então muito comum, de moças executadas no patíbulo, tudo isso exacerbava o espírito dos jovens poetas, dos quais um ou outro se sabia o verdadeiro culpado de uma tragédia dessas. A jovem infanticida é tema frequente da literatura da época. Goethe apoderou-se do assunto, introduzindo-o no fragmento já existente, resultando uma peça completa.
O Sturm und Drang tinha feição revolucionária e interesses sociais. Preocupavam-no as injustiças da vida alemã de então, a barbaridade da justiça penal, o rigor exagerado das convenções morais. O espetáculo da moça seduzida à qual os preconceitos do ambiente quase obrigaram a matar a criança, o espetáculo horroroso, então muito comum, de moças executadas no patíbulo, tudo isso exacerbava o espírito dos jovens poetas, dos quais um ou outro se sabia o verdadeiro culpado de uma tragédia dessas.
Essa peça começou com os monólogos filosóficos introduzindo-se Mefistófeles da maneira conhecida. A sedução de Fausto pelo demônio representou-se indiretamente, em cenas de vida devassa dos estudantes, com muita sátira contra os costumes universitários e muita coisa de mau gosto. Seguiu-se a tragédia de Margarida, sem a “Noite de Valburga”, até à cena na prisão. Conjunto de duas peças diferentes, ligadas sem coerência suficiente, em estilo rudemente realista. Esse manuscrito, Goethe levou-o, em 1775, para Weimar, recitando-o aos novos amigos que se entusiasmaram pela peça. Uma jovem dama de honor, Luisa de Goechhausen, pediu a permissão de copiar o manuscrito – é o chamado Urfaust que Erich Schmidt descobrirá em 1887. Até então, ninguém sabia da existência dessa peça. Goethe destruíra até o seu próprio manuscrito.
Pode-se afirmar que Goethe nunca pensara na publicação integral do Urfaust. Havia na peça muita confissão pessoal, e várias cenas precisavam de remodelação estilística. Também pode-se afirmar que Goethe tentou essa remodelação, embora não possuamos os manuscritos respectivos. Mas os seus esforços não chegaram ao resultado desejável. A mudança para Weimar tinha por consequência modificações radicais no espírito e nas opiniões do poeta. A filosofia tempestuosa daqueles primeiros monólogos parecia-lhe agora pouco filosófica, antes explosão de um adolescente. Começara a estudar Spinoza, que ficará para ele o filósofo sans phrase; e o dualismo ético daqueles monólogos foi substituído por um monismo universalista, muito mais sublime e sereno. O “gótico” alemão do manuscrito já não era capaz de exprimir bem as novas convicções filosóficas do poeta; devia ser o estilo clássico dos gregos, não à maneira francesa do século de Luís XIV nem à maneira acreôntica do Rococó, e sim um classicismo moderno, uma “síntese grego-alemã”. Esse abandono do Sturm und Drang também tinha motivos pessoais. Entre os amigos boêmios, Goethe fora um estudante de maneiras pouco polidas. Na corte de Weimar, o poeta foi “reeducado”. Os ambientes de Estrasburgo e Wetzlar, que se refletem no Urfaust, pareciam-lhe agora lamentavelmente provincianos. Era preciso introduzir Fausto no “grande mundo”, de interesses mais amplos na corte. Concebeu-se então a ideia da segunda parte, não como peça independente, mas como continuação da peça já escrita – e isso era impossível. O Urfaust não foi remodelado. Mas não foi esquecido.
Goethe levou o manuscrito para a Itália. Lá – já então – esboçou a segunda parte, primeiro e segundo ato. Algumas notas referem-se a Helena. O espetáculo das obras de melhoramento nos pântanos pontinianos, perto de Roma, inspirou a ideia do quinto ato. Mas só pouca coisa foi redigida. No jardim da Vila Borghese escreveu a cena da “cozinha das bruxas”, lembrança de “pesadelos nórdicos” em ambiente quase grego. A cena “Floresta e Caverna”, expressão nobre de ideias spinozeanas, é do mesmo tempo. De volta em Weimar, eliminou a maior parte das cenas de vida estudantil, deixando só o diálogo de Mefistófeles com o aluno e a cena na taverna de Auerbach. A cena na prisão parecia forte demais; doutro lado, não era possível, como já se notou, elaborar as cenas na corte dentro do quadro da peça existente. Enfim, Goethe renunciou aos projetos. Em 1790, publicou Fausto, um fragmento: a primeira atual, do começo até a cena na catedral.
Daí em diante não pensava mais na continuação da “obra bárbara”. Só em 1797, Schiller conseguiu interessá-lo novamente no projeto; a “Dedicatória”, que é de 1797, alude a isso, aos “fantasmas da imaginação juvenil que voltam”. As experiências de Goethe como diretor do teatro de Weimar, função que desempenhava desde 1796, inspiraram o “Prólogo no palco”. O plano de dar significação mais ampla, cósmica, à obra manifesta-se no “Prólogo no céu”, que é indispensável para compreender o “Salva!” ao fim da primeira parte. Agora, os destinos dos personagens já não são resultados fatais dos caracteres, como numa tragédia shakespereana, mas tudo se desenvolve conforme um plano divino. Pela primeira vez, concebe-se a salvação de Fausto, enquanto em todas as fontes o fim do herói é a descida ao inferno. A influência de Schiller manifesta-se na melhor motivação da culpa de Margarida; para esse fim, foram introduzidos personagem e cena de Valentim. A segunda parte devia continuar imediatamente à primeira parte; mas Schiller morreu em 1805, e a literatura desapareceu das cogitações de Goethe. Em 1808 publicou Fausto, primeira parte da tragédia. E aos amigos declarou que não tinham que esperar a segunda parte.
Contudo, a ideia da continuação voltou cedo, talvez já em 1810. Neste ano, cedendo aos desejos dos românticos, admiradores apaixonados de Calderón, Goethe representou no teatro de Weimar El Príncipe Constante. Ninguém estava mais impressionado que o próprio Goethe. Pela primeira vez, abriu-se-lhe o sentido cósmico da suntuosidade do teatro barroco. Encontrara as formas para escrever as cenas na corte. Inflação monetária e reação política forneceram os assuntos. Em 1824, Byron, tão admirado por Goethe, morreu em Missolonghi, lutando pela liberdade dos gregos. Byron fora uma natureza fáustica, e na Grécia tinha encontrado a salvação da sua alma, assim como Fausto, conforme os projetos de Goethe, devia salvar-se, encontrando Helena. Os acontecimentos sugeriram leituras. Na crônica de Dorotheos de Malvasia (século XIV) sobre os cruzados na Grécia, Goethe leu do dono de castelo de Mistra, Guillaume II de Villehardonin, parente do famoso cronista da Quarta Cruzada; sua esposa, a princesa grega Helena de Arta, foi chamada “a segunda Helena”, tão bela era. O tema da “síntese grego-alemã” estava dado. Só era preciso ligá-los aos atos na corte. Então Goethe lembrou-se da maneira como ligar, na primeira parte, a cena na catedral e a cena na prisão: pelas fantasias da “Noite de Valburga”. Escreveu a “Noite de Valburga” clássica. Fausto, depois de ter atravessado todas as províncias da mitologia grega, encontraria Helena no Hades, na corte de Prosérpina. Mas aquelas discussões sobre geologia ocuparam tanto o poeta que perdeu de vista o fim do intermezzo. A cena da Prosérpina não foi nunca escrita. O intermezzo perdera a função dramatúrgica, e Goethe publicou em 1827 a “Tragédia de Helena”, sem cuidar de introduzi-la. É por isso que a heroína aparece tão abruptamente.
O quarto e quintos atos, Goethe escreveu-os quase simultaneamente com Os Anos de Viagem de Guilherme Meister. Daí o paralelismo das alusões à questão social. Uma releitura de Dante, em 1825 ou 1826, sugeriu o “Epílogo no céu”. E enfim, quando a obra inteira saiu em 1832, eram na verdade quatro obras, penosamente ligadas: a tragédia filosófica de Fausto; a tragédia realista de Margarida; a tragédia grega de Helena; e uma tragédia barroca.
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Quatro estilos e quatro sentidos: a falta de homogeneidade de Fausto é o defeito do próprio plano. E é possível explicar e compreender toda cena e cada uma das partes integrantes sem compreender bem o sentido do conjunto. Fausto, apesar de parecer completo, é um torso. “A unidade de Fausto”, diz o filósofo alemão Henrique Rickert, “reside, e reside só, na personalidade do autor”. Frase que parece lugar-comum mas que leva a conclusões importantes. O fato de Fausto não corresponder às normas da tragédia grega ou da tragédia francesa ou da tragédia shakespereana, isso não importa. Mas tão pouco importa o fato de a obra se prestar à representação integral ou parcial no palco. O drama é um gênero objetivo; a personalidade do autor exterioriza-se em vários personagens que têm, todos, mais ou menos razão e dos quais nenhuma se identifica completamente com o autor. O caso contrário é representado pela poesia lírica: o herói, o único herói possível do poema lírico, é o próprio poeta, e a significação universal da sua obra reside, e reside só, na universalidade do sentimento pessoal que ele exprime. Fausto é um poema lírico em forma dramática. As contravenções contra a unidade dramática não importam. O que importa é o único critério aplicável em casos desta natureza, à análise da poesia lírica: corresponde ela a experiências do poeta ou não? A resposta será afirmativa com respeito à primeira parte, e negativa com respeito à segunda parte. A primeira parte corresponde às experiências mais vitais do jovem poeta; daí o realismo pré-romântico. A segunda parte nasceu de especulações fora da experiência, e o resultado foi a procura de estilos, do classicismo grecizante na “Tragédia de Helena” até o barroco dos atos na corte e do fim. A linha divisória encontra-se, historicamente, entre 1797 e 1808, quando Goethe, remodelando a primeira parte e preparando a segunda, escreveu os dois prólogos, cuja perspectiva cósmica já excede o plano realista do Urfaust, levando ao barroco calderoniano. Nos prólogos será possível encontrar a contradição que produziu a desigualdade estilística.
Com efeito, o último verso do “Prólogo no palco” promete:
“Do céu, através do mundo, até o inferno…”,
quer dizer, Fausto será condenado. Mas já o “Prólogo no céu” deixa adivinhar a salvação do herói. A primeira parte baseia-se no dualismo ético, fundamento da moral cristã, motivo pelo qual os Faustos de todos os séculos cristãos têm de descer ao inferno. Mas já durante o trabalho de remodelação do Urfaust, Goethe tornou-se spinozista, quer dizer, monista; e dentro do monismo, a condenação de Fausto já não teria sentido. Era preciso salvá-lo. E Goethe pensava salvá-lo pelo monismo grego, o monismo estético da Beleza. Em vez disso saiu, na segunda parte, um grande poema barroco, com alusões aos poetas do catolicismo, Dante e Calderón – série de incoerências e contradições inextricáveis. Então, por que insistiu Goethe na salvação do seu herói?
Goethe tornou-se spinozista, quer dizer, monista; e dentro do monismo, a condenação de Fausto já não teria sentido. Era preciso salvá-lo. E Goethe pensava salvá-lo pelo monismo grego, o monismo estético da Beleza.
A resposta integral seria nada menos do que uma história do espírito alemão. Com o luteranismo, os alemães separaram-se não apenas da Igreja romana, mas da civilização ocidental inteira. Conquistaram, no foro íntimo, a liberdade religiosa e filosófica absoluta, até as heresias mais audaciosas, mais negativas. Não do luteranismo como doutrina, mas do luteranismo como libertação da consciência descendem o historismo de Hegel assim como o materialismo de Feuerbach, as doutrinas mais anticristãs que o mundo já viu e que significam no fundo a divinização do mundo e destronização de Deus. O preço, pago por essa liberdade de consciência filosófica e religiosa, foi o servilismo político, a submissão absoluta à vontade do príncipe que representava o Estado e a Igreja ao mesmo tempo. Daí a incapacidade dos alemães de compreender a democracia do mundo ocidental que lhes parece tão anti-alemã como a Igreja de Roma. Durante os séculos XVI e XVII e até durante a primeira metade do século XVIII, aquela liberdade limitou-se ao terreno da teologia. Interveio, depois, a ilustração, a primeira influência ocidental na Alemanha, fechada até então como uma China dentro da Europa, e nasceu aquela Weltanschanung ou “concepção de mundo” tipicamente alemã que Lessing sintetizou nas palavras memoráveis: “Se Deus tivesse na mão direita a verdade inteira, e na esquerda a procura da verdade, se bem com a fatalidade de errar sempre, e me dissesse: ‘escolhe!’, eu, com humildade, pediria a esquerda, dizendo ‘a verdade pura só é para Deus mesmo!’”. É muito interessante o lugar em que se encontra esta frase: defendendo-se contra um pastor luterano ortodoxíssimo, que acredita toda verdade divina incluída na letra bíblica, Lessing tem a coragem de aludir á liberdade maior dos católicos, pondo a tradição ao lado da letra escrita. Mas a volta ao catolicismo não era possível, nem conveniente para justificar aquele lema, cujo ceticismo de colorido religioso contradiz a todas as tradições ocidentais. Era preciso identificar essa “filosofia alemã” com a filosofia grega, de soberanidade do indivíduo perfeito e completo; aproxima-se o momento da “síntese grego-alemã”, da qual Goethe é o maior representante. Se aquele lema é legítimo perante o trono de Deus, então o homem pode “errar, enquanto se esforça”, e no entanto encontrar a salvação. É a justificação do titanismo fáustico. Fausto, como um Dante moderno, não irá “do céu, através do mundo, para o inferno”, mas subirá ao céu. Mas não é o céu dos cristãos. É o céu grego. O caminho de perfeição para chegar a esse céu não consiste na purificação moral, mas na formação de uma individualidade perfeita, a que os alemães chamam de Bildung, “Formação”. No plano terrestre, Goethe representou esse caminho de formação no romance Anos de aprendizagem de Guilherme Meister. No plano transcendental, Fausto apresenta o mesmo espetáculo. No plano artístico, a Beleza grega constituiu o símbolo da perfeição realizada. Consequentemente, a “Tragédia de Helena” seria o fim de Fausto. Mas não é. Goethe escreveu um poema em que a Grécia e a Idade Média se encontram, resultando uma combinação estranha à qual a estética do século XIX não sabia dar nome. Lembrando-se do fato de que o classicismo da Renascença sobreviveu no século XVII, ligando-se à revivificação da Idade Média pela Contra-Reforma, a estética moderna chama àquela combinação “barroco”. Eis o estilo da segunda parte de Fausto, que não é realmente grega. Do ponto de vista do dogmatismo estético de Goethe, seria um defeito muito grave. Do nosso ponto de vista moderno, não. E não apenas porque voltamos a apreciar o barroco. A solução do problema não era possível de outra maneira. Voltando-se para a arte católica de Dante e Calderón, sem aderir ao catolicismo, Goethe aproveitou-se da doutrina de Hegel, conforme a qual nada da herança histórica se perde jamais. Foi por isso que Goethe defendeu com tanta tenacidade as teorias “aquáticas” na geologia, contra o vulcanismo que ensina a destruição total do existente para construir a terra nova. O inferno da primeira parte transforma-se, na segunda parte, em residência das “Mães”, guardando a vitalidade humana que, por sua vez, é disciplinada pela “formação”; e esta, individualista, imitando o trabalho “aquático” da Natureza, secando pântanos e dominando o mar, chega a uma significação social, desconhecida aos classicistas do começo do século XIX. Com efeito, Goethe resumiu, no Fausto, o que o passado nos pode ensinar, da Antiguidade grega através da Idade Média gótica e a Renascença até ao século da Ilustração, mas deu mais um passo, antecipando o trabalho do século XIX e até do futuro. “No início era o Verbo”, e no fim de Fausto haverá o Ato, a ação social à qual mal acabamos de chegar. Em frase muito feliz, um crítico comparou o caminho do leitor através das páginas de Fausto à subida pelas escadas da torre de uma catedral gótica: é uma escada estreita e às vezes perigosa, mas no alto abre-se o grande panorama do espaço e do tempo.