Dostoiévski, ensaio por Gyorgy Lukács

Amantes da literatura,

O Clube dos Clássicos traz pela primeira vez em português – até onde verificamos – o poderoso ensaio do grande crítico literário Gyorgy Lukács sobre Dostoiévski. Escrito em 1949, faz parte da parte da obra do autor conhecida como “escritos do pós-guerra”. O gênio marxista, mesmo alinhado a uma corrente ideológica, não amputa seu agudo olhar na leitura do mestre russo, e mostra aspectos do espírito da obra dostoievskiana raramente notados pelos leitores, sejam antigos ou modernos. Antes do ensaio, breve aviso: contém spoilers.

I go to prove my soul!
– ROBERT BROWNING

1.

                É um fato estranho, porém muito recorrente, que a personificação literária de um novo tipo humano, com todos seus problemas, venha de uma nação jovem ao mundo civilizado. Assim veio o Werther da Alemanha no século XVIII, e predominou na Inglaterra e na França; assim, na segunda metade do século XIX, veio Raskolnikov de uma terra distante, desconhecida, a quase lendária Rússia, para falar a todo Ocidente civilizado.

                Não há nada de incomum no fato de que um país atrasado produza grandes obras. O senso histórico desenvolvido no século XIX trouxe-nos o traquejo de apreciar a literatura e a arte do mundo inteiro e de todo passado. Obras de arte que influenciaram o mundo todo originaram-se nos mais remotos tempos e países: das esculturas dos negros às xilogravuras chinesas, de Kalevala a Rabindranath Tagore.

                Os casos de Werther e Raskolnikov, no entanto, são bem diferentes. Seu efeito não possui a mais mínima influência da avidez pelo exótico. “De repente” apareceram, de um país subdesenvolvido, onde os problemas e conflitos da civilização contemporânea ainda não poderiam ter se desdobrado em sua totalidade,  obras que exprimiam – imaginativamente – todos os problemas da cultura humana em seu ápice, misturaram os mais profundos abismos, e apresentaram algo de uma totalidade até então nunca alcançada, e desde então nunca superada, abrangendo as questões espirituais, morais e filosóficas daquele tempo.

                A palavra questão deve ser sublinhada e deve ser suplementada pela assertiva de que é uma questão poética, criativa, e não uma questão em termos filosóficos. Esta, pois, era, e é, a missão da poesia e da ficção: postular as questões, levantar os problemas na forma de novos homens e destinos. As respostas concretas que são naturalmente dadas pelas obras poéticas com frequência possuem – vistas desta distância – um caráter arbitrário na literatura burguesa, podendo inclusive jogar o problema propriamente poético em confusão. Goethe não demorou a ele mesmo vê-lo com o Werther. Após apenas alguns anos, fez Werther exortar ao leitor em um poema: “seja homem e não me siga”.

Esta, pois, era, e é, a missão da poesia e da ficção: postular as questões, levantar os problemas na forma de novos homens e destinos.

                Ibsen, com evidente intenção, ponderou que o questionamento é a tarefa do poeta, e recusou, em princípio, qualquer obrigação de responder às suas questões. Tchékhov deu a palavra definitiva sobre este assunto quando traçou uma nítida distinção entre “a solução de uma questão e a maneira correta de colocar uma questão. Apenas o último é pedido do artista. Em Anna Karênina e Onegin, nenhuma questão é resolvida, e mesmo assim estas obras satisfazem-nos completamente, simplesmente porque todas questões são colocadas nelas da maneira correta”.

                Esse insight é particularmente importante para o juízo de Dostoiévski, pois muitas – até a maioria – de suas respostas políticas e sociais são falsas, não tendo nada que ver com a realidade presente ou com os esforços dos melhores de hoje. Elas eram obsoletas, até reacionárias, quando pronunciadas.

                Ainda assim, Dostoiévski é um escritor de eminência mundial. Ele soube como, durante uma crise de seu país e de toda humanidade, colocar as questões em um sentido imaginativo decisivo. Ele criou homens cujos destinos e vida interior, cujos conflitos e inter-relações com outras personagens, cuja atração e rejeição dos homens e ideias iluminaram todas as mais profundas questões daquele tempo, mais cedo, mais profundamente e mais amplamente do que na experiência de vida média. Essa antecipação imaginativa do desenvolvimento espiritual e moral do mundo civilizado garantiu o poderoso e longevo efeito da obra de Dostoiévski. Esta obra tornou-se ainda mais atual e adquiriu maior frescor com o passar do tempo.

2.

                Raskolnikov é o Rastignac da segunda metade do século XIX. Dostoiévski admirava Balzac, traduziu Eugéne Grandet, e, certamente de plena consciência, retomou a temática de seu predecessor. A própria natureza dessa conexão mostra sua originalidade: sua compreensão poética da mudança dos tempos, do homem, de sua psicologia e visão de mundo.

                Emerson viu o motivo do efeito profundo e generalizado de Napoleão sobre toda a vida intelectual da Europa no fato de que “as pessoas a quem ele move são pequenos Napoleões”. Emerson aponta um lado específico dessa influência: Napoleão representava todas as virtudes e vícios da grande massa em seu tempo, e parcialmente também em tempos posteriores. Balzac e Stendhal arredondaram a questão e fizeram os adendos necessários. Napoleão parecia a eles como o grande exemplo do adágio que anuncia que desde a Revolução Francesa todo homem talentoso carrega um bastão de marechal em sua valise, como grande exemplo da ascensão desimpedida de talentos em uma sociedade democrática. Portanto, como medida do espírito democrático de uma sociedade: uma ascensão tal como a de Napoleão é possível ou não? Dessa questão seguiu-se a crítica pessimista de Balzac e Stendhal, o reconhecimento e admissão de que o período heroico de uma soceidade burguesa – e a ascensão individual – acabou e pertencia ao passado.

                Quando Dostoiévski surgiu, o período heroico havia retrocedido ainda mais. A sociedade burguesa da Europa Ocidental havia se consolidado. Contra os sonhos napoleônicos foram erguidas barreiras interiores e exteriores, diferentes e mais firmes que as erguidas no tempo de Balzac e Stendhal. A Rússia de Dostoiévski mal começava uma transformação social – por isso mesmo que os sonhos napoleônicos da juventude russa eram mais violentos, mais apaixonados do que os de seus contemporâneos da Europa Ocidental. Mas a transformação encontrou em um primeiro momento obstáculos insuperáveis no firme esqueleto da velha sociedade (por mais morto que parecesse na perspectiva histórica). A Rússia durante esse período pertenceu ao mesmo tempo que a Europa depois de 1848, com sua desilusão dos ideais do século XVIII e seus sonhos de renovação e reforma da sociedade burguesa. Essa contemporaneidade com a Europa ascendeu, no entanto, em um período pré-revolucionário, quando o ancien régime ainda governava sem obstáculos, quando o 1789 russo ainda estava em um futuro distante.

Quando Dostoiévski surgiu, o período heroico havia retrocedido ainda mais. A sociedade burguesa da Europa Ocidental havia se consolidado. Contra os sonhos napoleônicos foram erguidas barreiras interiores e exteriores, diferentes e mais firmes que as erguidas no tempo de Balzac e Stendhal.

                Mesmo Rastignac viu Napoleão menos como um herdeiro concreto da revolução francesa do que um professeur d’energie. A figura fascinante de Napoleão marcou um exemplo menos por seus objetivos finais do que por seu método, mais por seus modos e técnicas do que por suas ações, por seu meio de superar obstáculos. Ainda assim, apesar de todos atenuantes psicológicos e morais e sublimações do ideal, os objetivos específicos da geração dos Rastignacs permaneceu claro e socialmente concreto.

                A situação de Raskolnikov é, certamente, ainda mais contrária. O problema moral e psicológico era para ele quase que exclusivamente concreto: a habilidade de Napoleão em passar por cima dos homens em nome de seus grandes objetivos – uma habilidade que Napoleão partilha, por exemplo, com Maomé.

                De uma perspectiva psicológica, as ações concretas tornam-se fortuitas – mais de ocasião do que de metas reais ou meios. A dialética moral e psicológica dos prós e contras da ação se tornam a cruz, o centro da questão: o teste se Raskolnikov tem a capacidade moral de se tornar um Napoleão. Ações concretas tornam-se um experimento psicológico em que, no entanto, colocam em risco a totalidade da existência física e moral do experimentador: um experimento cuja “ocasião fortuita” e “sujeito fortuito” são, ao fim, outro ser humano.

                No Pai Goriot de Balzac, Rastignac e seu amigo Bianchon discutem brevemente o problema moral de se alguém tem o direito de apertar um botão que mata um chinês qualquer se, ao apertar o botão, receber um milhão de francos. Em Balzac, as conversas são episódios, brincadeiras prazenteiras, ilustrações morais do problema concreto principal do romance. Em Dostoiévski, se tornam a questão central, com deliberada e grande destreza tornam-se o foco. O lado prático e concreto do ato é deixado de lado com igual intenção. Por exemplo, Raskolnikov sequer sabe o quanto roubou da penhorista, o assassinato dela é amiúde planejado, mas ele esquece de fechar a porta, e assim em diante. Todos esses detalhes enfatizam o ponto principal: consegue Raskolnikov moralmente suportar passar dos limites? Principalmente, quais são os motivos que agem sobre ele contra e a favor do crime? Quais poderes morais estão em jogo? Que inibições psicológicas afetam sua decisão antes e depois do crime? Que forças psíquicas ele é capaz de mobilizar para essa decisão e para posteriormente perseverar nela?

Em Balzac, as conversas são episódios, brincadeiras prazenteiras, ilustrações morais do problema concreto principal do romance. Em Dostoiévski, se tornam a questão central, com deliberada e grande destreza tornam-se o foco.

                O experimento mental com ele mesmo toma uma própria dinâmica; segue mesmo após ter perdido todo sentido prático. Assim, o dia após o assassinato, Raskolnikov vai até o apartamento da penhorista, em busca de ouvir novamente ao som da campainha que o aterrorizou e perturbou tanto após o homicídio, e para testar novamente o seu efeito psíquico. Quanto mais puro o experimento enquanto experimento, menos ele é capaz de dar uma resposta concreta a questões concretas. O problema fundamental de Raskolnikov tornou-se um evento na literatura universal – precisamente em conexão e em contraste com seu grande predecessor. Assim como a ascensão e efeito do Werther seria impossível sem Richardson e Rousseau, Raskolnikov é impensável sem Balzac. A colocação da questão central, porém, em Crime e Castigo é tão original, estimulante e profética quanto em Werther.

3.

                O experimento consigo mesmo, a execução de uma ação não tanto pelo que ela contém e por seus efeitos, mas mais a propósito de conhecer a si próprio de uma vez por todas, em profundidade, até o mais abissal de si, é um dos principais problemas da burguesia e intelectualidade dos séculos XIX e XX.

                Goethe teve uma abordagem muito cética diante do adágio “conhece-te a ti mesmo” entendido como autoconhecimento por autoanálise. Para ele, a ação como meio de autoconhecimento ainda era um caminho garantido. Ele possuía um sistema estável de ideais, apesar de não ter sido formulado expressamente. Lutando por esses ideais, ações que eram significativas por seus conteúdos, por sua relação íntima com os ideais, eram acompanhadas de necessidade. Autoconhecimento então torna-se um subproduto das ações. O homem, agindo concretamente na sociedade, aprende a conhecer a si mesmo.

                Até mesmo quando esses ideais mudam, até mesmo quando – realizados ou não – eles perdem o peso e se relativizam, novos ideais tomam o lugar dos que foram perdidos. Fausto, Wilhelm Meister (e, claro, o próprio Goethe) tiveram seus problemas, mas não se tornaram problemas para eles mesmos.

                O mesmo vale para os grandes egoístas em Balzac. Olhados objetivamente, a virada para o interior, a fabricação subjetiva dos ideais do individualismo, parecem muito questionáveis quando o egoísmo – a exaltação a qualquer preço do individual – torna-se a questão central, da maneira como aparece constantemente em Balzac. Mas, em Balzac, esses problemas objetivos raramente levam à autodissolução do sujeito. O individualismo aqui mostra seus problemas trágicos (ou cômicos) bem cedo; mas o indivíduo em si ainda não tornou-se problemático.

O individualismo aqui [em Balzac] mostra seus problemas trágicos (ou cômicos) bem cedo; mas o indivíduo em si ainda não tornou-se problemático.

                Apenas quando esse individualismo torna-se interior – quando não consegue encontrar um ponto de Arquimedes nem nas metas sociais do momento nem ne ânsia espontânea de uma ambição egoísta – que o problema do experimento de Dostoiévski aparece. Stavrogin, o herói de Os Demônios, sumariza esses problemas na sua carta de despedida à Dasha Shatov imediatamente antes de seu suicídio:

Testei minha força em todo lugar. Tu me aconselhaste a fazê-lo em nome de “conhecer-me”[…] Mas a quê aplicar meu esforço – isso que nunca enxerguei, e não enxergo agora. […] Ainda posso desejar fazer algo de bom, como sempre pude, e isso me dá certo prazer. Ao mesmo tempo, desejo fazer algo de mau, e isso também me dá prazer. […] Meus desejos não são fortes o suficiente, não podem me guiar. É possível cruzar um rio apoiado numa tora, mas não numa lasca.

                Reconhecidamente, o caso de Stavrogin é muito especial, bem diferente do de Raskolnikov e particularmente diferente dos experimentos em que o esforço pelo autoconhecimento apela à alma de outros homens: como, por exemplo, quando o herói de Cadernos do Subterrâneo, que vive praticamente só por esses experimentos, fala com compaixão à prostituta Liza para testar o poder que tem sobre os sentimentos dela; ou quando, em O Idiota, Natasya Filipovna joga os cem mil rublos trazidos por Rogozhin no fogo, para poder conhecer e aproveitar completamente a maldade de Ganya Ivolgin, que ganharia o dinheiro para si se conseguisse tirá-lo do fogo, e assim por diante.

                Todos esses casos, por mais diferenças que tenham, possuem algo importante em comum. Primeiro, são todos, sem exceção, as ações de homens solitários – homens que são completamente dependentes de si mesmos no seu entendimento da vida e seu meio, que vivem tão profunda e intensamente ensimesmados que a alma do próximo permanece para eles eternamente como um país desconhecido. O próximo é para eles apenas um poder diferente e ameaçador, que ou subjuga-os ou torna-se sujeito a eles. Quando um jovem Dolgoruky em O Adolescente expõe sua “ideia” de se tornar um Rothschild e descreve os experimentos para realizar sua “ideia”, que são psicologicamente muito parecidos aos de Raskolnikov, ele define sua natureza como “solitude” e “poder”. Isolamento, separação, solidão reduzem as relações entre os homens a uma luta por superioridade ou inferioridade. O experimento é uma forma espiritual sublimada, uma virada psicológica para o interior da crua luta por poder.

                Por essa solidão, porém, por essa imersão do sujeito em si mesmo, o eu torna-se um abismo infinito. Aí surge tanto a anarquia de Stavrogin, a perda de direção em todos instintos, ou a obsessão de um Raskolnikov por uma “ideia”. Um sentimento, um objetivo, um ideal adquirem soberania absoluta sobre a alma de um homem: eu, tu, todos homens desaparecem, tornados em sombras, existem apenas subsumidos sob uma “ideia”. Essa monomania aparece de forma mais baixa em Piotr Verkhovenski (Os Demônios), que toma todos os homens como sendo o que ele deseja que sejam; e, em forma mais alta, nas mulheres feridas pela vida. Katerina Ivanovna (Irmãos Karamázov) ama apenas sua virtude, Nastásia Filipovna (O Idiota), sua própria humilhação: ambas imaginam que encontrarão apoio e satisfação nesse amor. Encontramos o nível mais alto dessa organização psicológica no homem de ideias, como Raskolnikov e Ivan Karamázov. Um contraste horrendo a esses é Smerdyakov (Irmãos Karamázov), o efeito ideológico e moral da doutrina do “tudo é permitido”.

O eu que submerge-se a si em si mesmo não encontra terra firme; o que parecia ser firme em um primeiro momento acaba se mostrando superficial; tudo que apareceu a um tempo como se desse alguma direção torna-se em seu oposto. O ideal se torna completamente subjetivo, uma atraente, e no entanto sempre ardilosa, fata morgana.

                Precisamente, no entanto, no nível mais alto é que a subjetividade mais sobrecarregada torna-se no seu oposto: a rígida monomania da “ideia” torna-se um total vazio. A “crua juventude”, Dolgoruky, descreve muito vivamente as consequências psicológicas da sua obsesão pela “ideia” de tornar-se um Rothschild:

…ter algo fixo, permanente e avassalador na mente, onde se é terrivelmente absorvido, o homem é, de certa maneira, removido do mundo inteiro por essa coisa, e tudo que acontece (à exceção da grande coisa) escorrega por ele. Até as impressões dificilmente formam-se corretamente… Ah, eu tenho minha “ideia”, nada mais importa, é o que eu dizia a mim mesmo… a “ideia” confortava-me na desgraça e insignificância. Mas toda sordidez que cometi tomou refúgio sob a “ideia”. De certa maneira, suavizou tudo, mas também pôs uma névoa sobre meus olhos.

                Daí vem a completa incongruência entre a ação e a alma nessas pessoas. Daí vem seu terror de serem ridículos, pois estão constantemente cônscios dessa incongruência. Mais extremo esse individualismo vem a ser, mais o eu volta-se para dentro, até torna-se mais forte exteriormente, e mais fecha-se e separa-se da realidade objetiva com uma muralha da China, e mais se perde em um vazio interior. O eu que submerge-se a si em si mesmo não encontra terra firme; o que parecia ser firme em um primeiro momento acaba se mostrando superficial; tudo que apareceu a um tempo como se desse alguma direção torna-se em seu oposto. O ideal se torna completamente subjetivo, uma atraente, e no entanto sempre ardilosa, fata morgana.

                Assim, o experimento é a tentativa desesperada de achar terra firme dentro de si, de saber quem se é – uma tentativa desesperada de derrubar a muralha da China entre o “eu” e o “tu”, entre o eu e o mundo – uma tentativa desesperada, uma tentativa sempre fútil. A tragédia – ou tragicomédia – do solitário encontra sua mais pura expressão no experimento.

4.

                Uma figura menor em Dostoiévski descreve a atmosfera desses romances com brevidade e agudeza. Ela diz de suas personagens: “eles são todos como se estivessem na estação de trem”. E este é o ponto essencial.

                Primeiro de tudo, para estas pessoas, tudo é provisório. Um homem encontra-se na estação, aguardando a partida do trem. A estação de trem, naturalmente, não é o lar, o trem é necessariamente uma transição. Essa imagem expressa um sentimento penetrante sobre a vida no mundo dostoievskiano. No Memorial da Casa dos Mortos, Dostoiévski observa que até mesmo prisioneiros condenados a vinte anos de servidão penal veem sua vida na prisão como algo transitório e até mesmo provisório. Em uma carta ao crítico literário Strakhov, Dostoiévski compara seu livro Um Jogador, que à época planejava, com o Memorial da Casa dos Mortos. Ele tinha intenção de alcançar um efeito similar ao que alcançou com o Memorial. A vida de um apostador (também uma figura simbólica para Dostoiévski e seu mundo) nunca é propriamente uma vida, mas uma preparação para uma vida que há de vir, para a vida real. Viciados em jogos de azar não vivem realmente no presente, só em uma constante e tensa expectativa da virada decisiva na sua sorte. Mas até quando essa virada acontece – usualmente como resultado do experimento – nada de essencial muda na organização do seu mundo interior.

A vida de um apostador (também uma figura simbólica para Dostoiévski e seu mundo) nunca é propriamente uma vida, mas uma preparação para uma vida que há de vir, para a vida real. Viciados em jogos de azar não vivem realmente no presente, só em uma constante e tensa expectativa da virada decisiva na sua sorte.

                Um sonho é alfinetado por um toque de realidade: ele desmorona – e então surge um novo sonho, de uma nova curva na estrada. Um trem parte da estação, outro aguarda pelo próximo – mas a estação ferroviária permanece uma estação ferroviária, um local de trânsito.

                Dostoiévski tem plena consciência de que uma expressão adequada de tal mundo coloca-o em completa oposição à arte do passado e do presente. Ao final de O Adolesente ele expressa essa convicção na forma de uma carta crítica às memórias do herói. Ele vê claramente que tal mundo não poderia ser povoado pela beleza de Anna Karênina. Mas então ele justifica sua própria forma, ele o faz não só levantando uma questão de pura estética; ao contrário, ele crê que a beleza dos romances de Tolstói (Dostoiévski não o nomeia, mas a alusão é inconfundível) pertence ao passado e não ao presente, e que essas obras já são, em sua essência, obras históricas. A crítica social por debaixo do conflito estético é tornada concreta pela descrição da família cujo destino é relatado nas memórias de Dolgoruki não como uma família normal, mas como uma “família acidental”. De acordo com o autor da carta, o contraste entre beleza e o neorealismo deve-se à uma mudança na estrutura da sociedade. De um lado, a “arbitrariedade”, a anormalidade da família, aparece nas mentes dos indivíduos – as melhores pessoas do presente já são quase completamente doentes mentais, diz alguém desse romance; e, por outro lado, todas distorções dentro da família são somente a expressão mais conspícua de uma profunda crise em toda sociedade.

                Vendo e apresentando isso, Dostoiévski torna-se o primeiro e grande poeta da metrópole capitalista moderna. Houve, evidentemente, elaboração poética da vida urbana bem antes de Dostoiévski. Logo ao começo do século XVIII, a Moll Flanders de Defoe emergiu como uma obra-prima da vida urbana. Dickens, em particular, deu expressão poética à peculiar solidão da cidade grande – e Dostoiévski ama e louva Dickens com entusiasmo por isso -, e Balzac traçou o círculo dantesco de um novo e contemporâneo inferno na sua descrição de Paris.

                Tudo isso é verdade, e poderia se dizer muito mais. Dostoiévski, porém, foi o primeiro – e ainda não superado – em traçar as deformações mentais que surgem como uma necessidade social na vida de uma cidade moderna. O gênio de Dostoiévski consiste precisamente em sua capacidade de reconhecer e representar a dinâmica de uma futura evolução social, moral e psicológica a partir de germes de algo que mal começou.

Dostoiévski, porém, foi o primeiro – e ainda não superado – em traçar as deformações mentais que surgem como uma necessidade social na vida de uma cidade moderna.

                Devemos ainda dizer que Dostoiévski não se prende à descrição e análise – à mera “morfologia”, para usar um termo em moda no agnosticismo atual – mas oferece também uma gênese, uma dialética e uma perspectiva.

                O problema da gênese é decisivo. Dostoiévski vê o ponto de partida da natureza específica da organização psicológica de sua personagem na forma particular da desgraça urbana. Vejam os grandes romances e contos do período maduro de Dostoiévski: Cadernos do Subterrâneo, Humilhados e Ofendidos, Crime e Castigo; em cada um deles nos é mostrado o problema que discutimos desde o ponto de vista das suas consequências psíquicas, como é a ordem psicológica das personagens de Dostoiévski, como as deformações de seus ideais morais nascem da consternação social da metrópole moderna. O insulto e agressão aos homens na cidade é a base do seu individualismo mórbido, do seu mórbido desejo por poder sobre si mesmos e seu próximo.

                Em geral, Dostoiévski não gosta de descrições de realidades externas, ele não é um paisagista, como Turguêniev e Tolstói são, cada um à sua maneira. Porém, porque ele compreende, com o poder visionário de um poeta, a unidade da organização interna e externa – a social e a psíquica – aqui na miséria da cidade, surgem imagens insuperáveis ​​de Petersburgo, particularmente em Crime e Castigo, imagens da nova metrópole – desde o quarto do herói mobiliado em forma de caixão, passando pela estreiteza sufocante da delegacia de polícia até o centro da favela, o Haymarket, e as ruas e pontes sombrias.

                No entanto, Dostoiévski nunca é um especialista da ambientação. Seu trabalho abrange o todo social, do mais “alto” ao mais “baixo”, de Petersburgo até o remoto vilarejo provinciano. O “fenômeno primário”, porém, – e esse traço artístico joga fortes luzes na gênese social dos livros – permanece sempre a mesma: a desgraça de Petersburgo. O que é experimentado em Petersburgo é generalizado por Dostoiévski como válido para toda sociedade. Como nas tragédias provinciais, Os Demônios e Irmão Karamázov, as personagens petersburguenses (Stavrogin e Iván) dão o tom, assim é na representação de toda sociedade, o padrão é dado pelo que cresceu “lá de baixo” na desgraça.

                Balzac reconheceu e representou o profundo paralelismo psicológico entre o “mais alto” e o “mais baixo” e viu claramente que as formas de expressão dos “mais de baixo” socialmente viriam a ter grandes vantagens sobre aquelas do extrato “mais alto”.

                Dostoiévski, no entanto, preocupa-se com muito mais do que um problema de expressão artística. A desgraça petersburguense, em particular daquela juventude de intelectuais, é para ele o clássico sintoma, em sua maneira mais pura, de seu “fenômeno primário”: a alienação do indivíduo da maior parte do fluxo da vida das pessoas, o que Dostoiévski vê como a última e decisiva razão social para toda deformidade mental e moral que esboçamos acima. Pode-se observar a mesma deformação também nas camadas mais altas. Nelas, porém, mostram-se os resultados psicológicos, enquanto na camada anterior vê-se o processo social e psicológico de sua gênese de maneira muito mais clara. No “mais alto”, a conexão histórica dessa ordenação psicológica com o passado é discernível. Górki, com agudeza, vê em Iván Karamázov um descendente psicológico do nobre e passivo Oblomov. “Mais baixo”, porém, o elemento de rebeldia ganha uma visão privilegiada e aponta para o futuro.

Dostoiévski, no entanto, preocupa-se com muito mais do que um problema de expressão artística. A desgraça petersburguense, em particular daquela juventude de intelectuais, é para ele o clássico sintoma, em sua maneira mais pura, de seu “fenômeno primário”: a alienação do indivíduo da maior parte do fluxo da vida das pessoas, o que Dostoiévski vê como a última e decisiva razão social para toda deformidade mental e moral que esboçamos acima

                O divórcio entre o indivíduo solitário e a vida das pessoas é o tema que prevalece na literatura burguesa na segunda metade do século XIX. Esse tipo domina a literatura burguesa do Ocidente durante este período – seja ele aceitdo ou rejeitado, liricamente idealizado ou satiricamente caricaturizado. Mas mesmo dentre grandes escritores, em Flaubert e Ibsen, as consequências psicológicas e morais aparecem ainda com mais proeminência do que suas bases sociais. Apenas na Rússia, em Tolstói e Dostoiévski, é que o problema é levantado em toda sua extensão e profundidade.

                Tolstói contrasta seus heróis que perderam o contato com o povo – e com isso perderam a objetividade de seus ideais, de seus padrões morais e seu suporte psicológico – com a classe campesina, que aparentava à época ser bem estável, mas na verade passava por um proceso de completa tranformação. A sua lenta e frequentemente contraditória transição à ação social tornou-se importante para o destino de renovação democrática da Rússia apenas muito depois.

                Dostoiévski investiga o mesmo processo de dissolução da velha Rússia e os germes de seu renascimento primeiramente na desgraça das cidades nos “humilhados e ofendido” de Petersburgo. Sua alienação involutária da velha forma de vida das pessoas – que só posteriormente tornou-se uma idelogia, uma vontade e uma atividade, sua (provisória) inabilidade em “conectarem-se” com o movimento popular que ainda tateava por um objetivo e direção, era o “fenômeno social primário” de Dostoiévski.

                Apenas esse ponto de vista joga luz no fenômeno da alienação das classes superiores do povo em Dostoiévski. Com uma ênfase diferente, mas essencialmente como em Tolstói, é a ociosidade, a vida sem trabalho – o completo isolamento da alma que vem da ociosidade – que torna-se trágica ou grotesca, ou, mais frequentemente, tragicômica – mas sempre deformante. Seja Svidrigailov, Stavrogin, Versilov, Lisa Khokhlakov, Aglaya Yepanchin ou Nastasyia Filipovna: para Dostoiévski, suas vidas totalmente desocupadas, ou no máximo ativas e sem sentido, são sempre o fundamento da sua irremediável solidão.

5.

                Esse traço plebeico claramente distingue Dostoiévski do movimento literário ocidental paralelo, que, em parte, emergiu simultaneamente com ele e, de outra parte, emergiu posteriormente – sob sua influência – das diversas tendências do psicologismo literário.

                No Ocidente essa corrente literária – que na França Edmond de Goncourt ajudou a preparar e Bourget, Huysmans e outros ajudaram a concretizar – foi primariamente uma reação contra as tendências plebeicas do naturalismo, que não eram particularmente fortes, de qualquer maneira. Goncourt considerava a mudança uma conquista artística das classes mais altas da sociedade, enquanto o naturalismo preocupou-se grandemente com as classes mais baixas. Nos últimos representantes dessa tendência – até Proust – o traço aristocrático e moundain do psicologismo literário apareceu com ainda mais força.

                O culto à vida interior aparece como um privilégio das classes sociais mais altas, em contraste com os brutais conflitos mundanos das classes inferiores que o naturalismo tentou compreender artisticamente por meio da hereditariedade e do meio. O culto, então, toma um aspecto duplo: de um lado, é janota, vão, altamente autocentrado – mesmo nos casos em que leva individualmente a destinos trágicos. De outro lado, é decididamente conservador, pois a maioria dos autores ocidentais não pôde opor-se à instabilidade mental e moral dos individualistas solitários urbanos aqui descritos com nada mais do que apenas as velhas forças espirituais – primeiramente a autoridade da Igreja Católica Romana – como algo que poderia oferecer refúgio às almas errantes.

                As respostas de Dostoiévski em seus escritos jornalísticos – e também em seus romances – são paralelas a essas tendências da literatura burguesa em seu apelo à Igreja Ortodoxa Russa. Porém, a assertividade e profundidade de seus questionamentos poéticos levam-no muito mais adiante do que o seu estreito horizonte e empurram-no a uma plena oposição ao fenômeno paralelo do Ocidente.

                Particularmente, o mundo de Dostoiévski não possui nenhum traço de afetação ceticista mundana, de autoconsciência vã, ou de brincadeira e jocosidade com sua própria solidão e desespero. “Nós sempre brincamos, e é sábio quem entende isso”, diz Arthur Schnitzel, assim expressando o mais extremo contraste com o mundo das personagens de Dostoiévski. Seu desespero não é o tempero da vida, que na verdade é vazia e tediosa, mas sim desespero no sentido mais genuíno e mais literal. Seu desespero é verdadeiramente bater em portas fechadas, uma luta amarga e fútil pelo sentido da vida que foi perdido ou está em risco de se perder.

                Esse desespero, pois, é genuíno, é um princípio de excesso, novamente em franco contraste com a forma mundana e polida da maioria dos céticos ocidentais. Dostoiévski quebra todas as formas – beleza e feiúra, genuíno e falso – porque o homem desesperado não consegue mais vê-las adequadas para expressar o que busca para sua alma. Todas as barreiras erguidas pelas convenções sociais entre os homens são postas abaixo de maneira que nada senão a sinceridade espontânea, até que os limites mais extremos, até à absoluta falta de vergonha, venham a prevalecer sobre os homens. O horror à solidão dos homens irrompe aqui com um poder irresistível precisamente porque toda esta impiedosa ruína segue sem conseguir acabar com a solidão.

Dostoiévski quebra todas as formas – beleza e feiúra, genuíno e falso – porque o homem desesperado não consegue mais vê-las adequadas para expressar o que busca para sua alma.

                O jornalista Dostoiévski poderia falar de maneira consoladora do ponto de vista conservador, mas o conteúdo humano, o andamento poético e o ritmo poético de seu discurso, tem um tom de rebeldia e assim encontra-se em constante oposição às suas mais altas intenções políticas e sociais.

                A luta entre essas duas tendências na mente de Dostoiévski produz resultados muito diversos. Por vezes, ou frequentemente, o jornalista político vence o poeta: a dinâmica natural de suas personagens, ditadas por sua visão – independentemente da consciência de seus objetivos – e não por sua vontade são violados e distorcidos para serem encaixe de suas opiniões políticas. A dura crítica de Gorki, de que Dostoiévski calunia suas próprias personagens, aplica-se nesses casos.

                Só que, com bastante frequência, o resultado é bem outro. As personagens emancipam-se e levam suas próprias vidas até o fim, às mais extremas consequências de sua natureza inata. A dialética da sua evolução, seus conflitos ideológicos, tomam uma direção completamente diversa da que foi conscientemente almejada pelo jornalista Dostoiévski. A questão poética, colocada corretamente, triunfa sobre as intenções políticas, às respostas sociais do escritor.

                É apenas aí que a profundidade e assertividade do questionamento de Dostoiévski afirmam-se com completude. É uma revolta contra a deformação moral e psicológica do homem que é causada pela evolução do capitalismo. As personagens de Dostoiévski vão destemidamente até o fim da necessária autodistorção, e sua autodissolução, sua autoexecução, é o mais violento protesto que poderia haver contra a organização da vida naquele tempo. A experimentação das personagens de Dostoiévski é então posta sob uma nova luz: é uma tentativa desesperada de quebrar as barreiras que deformam e aleijam a alma, distorcem e desmembram a vida. O criador Dostoiévski não sabe a direção correta da descoberta, e não poderia sabê-lo. O jornalista e filósofo apontou na direção errada. Mas esse problema da descoberta ocorre com toda ascensão genuína da mente, aponta para o futuro e demonstra o inquebrantável poder da humanidade que jamais será satisfeita com meias medidas e soluções falsas.

As personagens de Dostoiévski vão destemidamente até o fim da necessária autodistorção, e sua autodissolução, sua autoexecução, é o mais violento protesto que poderia haver contra a organização da vida naquele tempo. A experimentação das personagens de Dostoiévski é então posta sob uma nova luz: é uma tentativa desesperada de quebrar as barreiras que deformam e aleijam a alma, distorcem e desmembram a vida.

                Cada homem genuíno em Dostoiévski ultrapassa essa barreira, mesmo que ele pereça na tentativa. A atração fatal entre Raskolnikov e Sonia é apenas superficialmente de extremos opostos. Com boa razão, Raskolnikov diz a Sonia que por seu ilimitado espírito de autossacrifício, pela abnegada bondade que fez dela uma prostituta em virtude de salvar a própria família, ela própria quebrou a barreira e transcendeu os limites – tal como ele o fez matando a penhorista. Para Dostoiévski, esta transcendência era em Sonia mais genuína, mais humana, mais imediata e mais plebeia que em Raskolnikov.

                Aqui a luz brilha nas trevas, e não onde o jornalista Dostoiévski imaginava ter visto. A solidão moderna é esta treva. “Eles dizem”, anuncia uma personagem desesperada em Dostoiévski, “que os bem-alimentados não podem entender a fome, mas eu acrescentaria que os famintos nem sempre entendem a fome”[1]. Aparentemente, não há nenhum raio de luz nessa treva. O que Dostoiévski pensva ser um raio de luz não passava de uma miragem de fogo fátuo.

                Os caminhos que Dostoiévski aponta para suas personagens são intransitáveis. Como criador, ele mesmo sente profundamente estes problemas. Ele prega fé, mas na realidade – como criador de homens – ele mesmo não crê que os homens de seu tempo possam ter fé nesse sentido. São seus ateus que possuem genuína profundidade de pensamento, um fervor genuíno pela busca.

                Ele prega o caminho do sacrifício cristão, mas seu primeiro herói positivo, o príncipe Michkin em O Idiota, é fundamentalmente atípico e patológico, posto que ele é, muito em virtude da sua doença, incapaz de superar internamente seu egoísmo – mesmo no amor. O problema da vitória sobre o egoísmo, sobre a qual o príncipe Michkin deveria encontrar criativamente uma resposta, não pode ser posta concretamente, criativamente, justamente por sua estrutura patológica. Pode-se dizer de passagem que a infinita compaixão do príncipe Michkin causa ao menos tanto sofrimento quanto o o negro pathos individualista de Raskolnikov.

                Quando, no fim de sua vida, Dostoiévski quis criar uma figura positiva sã em Aliosha Karamázov, ele vacilou constantemente entre dois extremos. No decorrer do livro, Aliosha de fato parece ser a contrapartida sã do príncipe Michkin, um santo dostoievskiano. Mas o romance tal como o conhecemos – do ponto de vista do herói principal – é apenas um começo, apenas a história da sua juventude. Também sabemos algo dos planos de Dostoiévski para a continuação. Em uma carta ao poeta Maikov ele escreve: “O herói no curso de sua vida é por um tempo ateu, então novamente um fiel, e novamente um zelota e sectário, e então ao fim torna-se um ateu”. Esta carta confirma totalmente o que Suvorin relata de uma conversa com Dostoiévski, que pode soar chocante à primeira vista. Suvorin conta-nos que “o herói cometerá um crime político em um momento propício e será executado; ele é um homem sedento pela verdade, que, em sua busca, naturalmente torna-se um revolucionário”. Não conseguimos saber, evidentemente, se e quão longe Dostoiévski teria levado a personagem de Aliosha nessa direção. Ainda assim, é mais do que característico que a dinâmica interna de seu herói favorito teria de tomar essa direção.

                Assim, o mundo das personagens de Dostoiévski dissolvem os ideais políticos do autor no caos. Esse caos, porém, é grandioso em si mesmo em Dostoiévski: seu poderoso protesto contra tudo que é falso e distorcido na sociedade burguesa moderna. Não é por acaso que a lembrança de um quadro de Claude Lorrain, Acis e Galathea, se repete diversas vezes em seus romances. É sempre chamada de “A Era de Ouro” por seus heróis e é descrita como o símbolo mais poderoso de seus anseios mais profundos.

[…] o mundo das personagens de Dostoiévski dissolvem os ideais políticos do autor no caos. Esse caos, porém, é grandioso em si mesmo em Dostoiévski: seu poderoso protesto contra tudo que é falso e distorcido na sociedade burguesa moderna.

                A era de ouro: relações genuínas e harmoniosas entre homens genuínos e harmoniosos. As personagens de Dostoiévski sabem que isso é um sonho no tempo presente, mas eles não podem e nem vão abandonar o sonho. Eles não podem abandonar o sonho mesmo quando a maioria de seus sentimentos frontalmente o contraditam. Esse sonho é o centro verdadeiramente genuíno, o verdadeiro ouro das Utopias Dostoievskianas; o mundo em um estado cujo homens possam conhecer e amar uns aos outros, no qual a cultura e a civilização não serão um obstáculo para o desenvolvimento dos homens.

                A espontânea, selvagem e cega revolta das personagens de Dostoiévski acontece em nome da era de ouro, seja qual for o conteúdo do experimento mental. Essa revolta é poeticamente grandiosa e historicamente progressista em Dostoiévski: aqui de fato a luz brilha sobre as trevas da desgraça de Petersburgo, uma luz que ilumina a estrada para o futuro de toda humanidade.


[1] O velho Ichmeneyev em Humilhados e Ofendidos.

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