Por que “Quincas Borba” é um dos romances mais atuais de Machado de Assis?

Redação do CLC

“Ao vencedor, as batatas.”1

Esta frase estranha, cômica, quase absurda, é uma das mais famosas de toda a literatura brasileira. Mas ela não pertence a um filósofo, nem a um político. Ela é o lema de um sistema filosófico fictício, criado por um personagem que também dá nome ao romance: Quincas Borba.

Mais do que um bordão engraçado, essa frase revela a alma de uma obra provocadora, escrita por Machado de Assis no auge de sua maturidade literária. Publicado originalmente em 1891, Quincas Borba é, talvez, o romance mais perverso de seu autor — e um dos mais geniais.

Um testamento, um cão e o Humanitismo

A premissa de Quincas Borba é tão insólita quanto fascinante: Rubião, um modesto professor do interior, herda a fortuna e o cachorro de um velho amigo — o excêntrico filósofo Quincas Borba. Mas com o cachorro e a herança, vem também a doutrina criada pelo falecido: o Humanitismo, filosofia que afirma que o mundo pertence aos vencedores e que o sofrimento dos outros é apenas um efeito colateral natural.

Essa é a lógica que sustenta a escalada e queda de Rubião. Armado de fortuna, boa-fé e ambição, ele parte de Barbacena para o Rio de Janeiro, onde tentará se estabelecer como um novo homem. Mas o que encontra na Corte não é exatamente o lugar das virtudes. Ele entra num mundo de aparência, dinheiro, manipulação e vaidade, e acaba sendo alvo de um casal refinado e ambicioso: Cristiano Palha e sua esposa, Sofia. Ambos veem em Rubião uma fonte de vantagens. Sofia, em especial, torna-se objeto de um amor obsessivo, que leva à ruína emocional do protagonista.

Machado constrói a tragédia de Rubião como quem monta um quebra-cabeça cruel. Não há um único momento de quebra, mas um acúmulo de frustrações, decepções, ilusões e equívocos. Rubião se imagina grande, mas é tratado como um tolo útil. Se imagina amado, mas é manipulado. Deseja pertencer, mas é expulso lentamente, com elegância.

A loucura se insinua aos poucos, mascarada como esperança, depois como orgulho, até se instalar de vez. O mundo que parecia sorrir para Rubião torna-se cada vez mais ambíguo e indiferente.

No final, resta-lhe apenas o cão Quincas Borba. O animal, que parece sobreviver a todos os desastres humanos, torna-se símbolo do cinismo que move as relações sociais da obra. Como se dissesse: quem não participa do jogo, não se fere.

O que torna Quincas Borba atual não é apenas sua história de amor frustrado e loucura. É a forma como retrata a estrutura social brasileira: uma elite hipócrita, uma intelectualidade de fachada, e um jogo de interesses onde todos tentam parecer algo que não são.

Rubião não enlouquece à toa — ele enlouquece porque acreditou nas promessas da civilização. No fim, até o cão Quincas Borba parece sorrir, símbolo silencioso de uma filosofia que, absurda como é, talvez diga mais sobre o mundo do que gostaríamos de admitir.

Um romance da maturidade

Quincas Borba foi publicado em 1891, logo após o aclamado Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e antes de Dom Casmurro (1899). Esses três romances formam o núcleo mais complexo e celebrado da produção de Machado de Assis.

Nesse período, Machado já havia se afastado do romantismo sentimental de sua juventude. Ele começa a construir um novo tipo de narrativa: mais introspectiva, irônica, voltada à análise dos jogos de poder e autoengano que regem a vida em sociedade.

Em Quincas Borba, temos um elo essencial dessa transição: é o romance em que a loucura individual se mistura à loucura coletiva. É também a obra em que Machado aprofunda o universo apresentado em Brás Cubas, reutilizando o personagem Quincas Borba e sua filosofia delirante, agora com mais densidade.

Embora Dom Casmurro seja mais lembrado no meio escolar, e Brás Cubas mais ousado em forma, Quincas Borba é, talvez, o mais cruelmente psicológico dos três. A derrocada de Rubião não é apenas um evento pessoal, mas um reflexo de um Brasil que pune a ingenuidade e premia a dissimulação.

A filosofia do Humanitismo, em tom de farsa, se tornou um retrato assustadoramente duradouro do comportamento social brasileiro. Até hoje, “ao vencedor, as batatas” é usada como expressão de cinismo e realismo cru. A influência de Quincas Borba ecoa em autores posteriores como Lima Barreto, Graciliano Ramos e Clarice Lispector, que também exploraram a loucura e o desajuste como sintomas da sociedade.

Do romance à cultura: o legado de Quincas Borba

Machado não apenas ampliou as fronteiras do romance brasileiro. Ele transformou o gênero ao inserir uma camada de sofisticação psicológica que, até então, era inédita na literatura nacional. Em Quincas Borba, os personagens não se movem por motivações simplificadas, mas por desejos contraditórios, ilusões e autoenganos que espelham a complexidade do sujeito moderno. A prosa de Machado rompe com os modelos europeus românticos sem os abandonar completamente — ela os reinterpreta com ironia e introspecção.

Além disso, sua construção estilística depurada, precisa e carregada de subentendidos elevou o patamar técnico da literatura brasileira. Ele usou o riso, o silêncio e a sugestão para dizer o que outros autores diziam por meio de discursos grandiloquentes. E, ao fazer isso, lançou as bases de uma tradição literária mais crítica, mais ambígua, mais exigente.

O impacto cultural de Quincas Borba também é notável. A expressão “ao vencedor, as batatas” entrou para o vocabulário popular como uma forma amarga e irônica de comentar o mundo. A figura do Rubião tornou-se símbolo do sujeito ingênuo tragado pelas engrenagens sociais, enquanto o Humanitismo virou uma sátira permanente das ideologias utilitaristas e competitivas. Machado, com esse romance, ultrapassou a literatura: ofereceu um diagnóstico duradouro da sociedade brasileira que continua sendo referenciado em estudos acadêmicos, peças teatrais, adaptações audiovisuais e debates políticos até hoje.

Como Machado manipula o leitor (sem que ele perceba)

Machado de Assis é mestre da sugestão. Em Quincas Borba, ele opta por um narrador que se apresenta como discreto e objetivo, mas que constantemente insere comentários irônicos, pausas maliciosas e observações carregadas de duplo sentido. Esse narrador atua como um espelho distorcido da realidade: às vezes condescendente, outras vezes cúmplice da hipocrisia que critica, nunca inteiramente confiável. Assim, cria-se um jogo entre o que é dito e o que é insinuado, desafiando o leitor a reconstruir a verdade por trás das aparências.

O romance também é marcado pelo uso do discurso indireto livre, técnica que mistura a voz do narrador com os pensamentos das personagens sem indicação explícita. Essa fusão confunde as fronteiras entre quem fala e quem pensa, evidenciando a instabilidade das identidades e a fragilidade dos julgamentos. Rubião, por exemplo, é ao mesmo tempo narrado, ridicularizado e sentido, gerando uma ambiguidade afetiva rara na literatura brasileira do século XIX.

A estrutura da obra reforça essa complexidade. Dividido em capítulos curtos, quase sempre autônomos, o livro avança não por grandes reviravoltas, mas por um lento acúmulo de situações que revelam, pouco a pouco, a degradação psicológica do protagonista. Cenas se repetem com variações sutis, como se Rubião estivesse preso num ciclo de falsas esperanças e frustrações inevitáveis. A narrativa é fragmentada, não no sentido modernista, mas como forma de sugerir o esfacelamento interno do personagem diante de um mundo que ele não compreende.

Machado de Assis domina as entrelinhas como poucos. O que não é dito tem tanto peso quanto o que é dito — e é nesse intervalo, nesse silêncio cheio de intenções, que o veneno da obra se instala e permanece, fazendo de Quincas Borba uma leitura desconcertante, desconfiada e incrivelmente atual.

A herança de Quincas Borba: um país às avessas

Quincas Borba é mais do que um romance sobre um homem que enlouquece. É um experimento literário sobre a lógica do mundo moderno. Um espelho desconcertante do Brasil do século XIX  e, por que não, do século XXI.

Ao narrar a queda de Rubião com tamanha sofisticação, Machado de Assis transforma um drama pessoal em uma crítica social feroz. Mostra como o amor pode ser manipulado, como a filosofia pode virar instrumento de opressão e como a boa-fé é um recurso escasso em sociedades fundadas na aparência e no privilégio.

O cão Quincas Borba, que sobrevive ao amigo e herdeiro, permanece como única testemunha da catástrofe. Um símbolo perfeito para o Humanitismo: inútil, absurdo, mas inexplicavelmente real.

Em tempos em que a racionalidade parece cada vez mais frágil, e a verdade cada vez mais manipulável, Quincas Borba continua sendo um lembrete incômodo: a linha entre civilização e loucura pode ser mais fina do que pensamos.

Quincas Borba é o livro do mês de junho aqui no CLC. Garanta o seu!

Referências

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Dois Irmãos/RS: Clube de Literatura Clássica, 2025.

BERNARDO, Gustavo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Edunesp, 2007.

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970.

FERREIRA, Maria Helena. O Humanitismo de Quincas Borba: filosofia, loucura e ironia. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 40, 2012.

SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos Inícios do Romance Brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

  1. Assis, Machado de. Quincas Borba. Dois Irmãos/RS: Clube de Literatura Clássica, 2025. ↩︎

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