Rubião, herdeiro universal: uma análise do protagonista de “Quincas Borba”

Por Ana Júlia Galvan 1

"Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco meses, perto de seis. Era real o desvelo de Rubião, paciente, risonho, múltiplo, ouvindo as ordens do médico, dando os remédios às horas marcadas, saindo a passeio com o doente, sem esquecer nada, nem o serviço da casa, nem a leitura dos jornais, logo que chegava a mala da Corte ou a de Ouro Preto.

— Tu és bom, Rubião, suspirava Quincas Borba."

(Quincas Borba, Cap. IV)

Ainda me falta ler muito da obra de Machado de Assis. Do autor, só tinha lido Memórias Póstumas de Brás Cubas, que adoro; Dom Casmurro, que li só depois de adulta e também adorei; e Papéis Avulsos, que também me agradou (embora menos que os romances). Sendo Quincas Borba o livro de junho no CLC, decidi lê-lo e, quem sabe, escrever sobre ele. 

Pois bem: concluí a sua leitura com um misto de satisfação — ler Machado é sempre uma alegria — e de pesar — foi alegria de fundo amargo. A obra me tocou muito e resolvi escrever, de fato, sobre ela. Falarei aqui de algumas impressões pessoais desta leitura. Esteja avisado desde já o leitor que comentarei partes importantes da história, pois escrevo pensando em quem já leu o livro — mas, se ainda não o leu, espero que o leitor deste artigo encontre aqui estímulo para fazê-lo o quanto antes. Nada substitui o prazer de ler Machado, e eu mesma saí da leitura de Quincas determinada a ler todo o resto de sua obra sem demora.

Ex-professor primário, herdeiro universal e capitalista

Demorei a entender Rubião; de início, visto “com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo”, pensei ser um canalha. Mais adiante, quando o narrador nos conta dos meses em que cuidou do amigo ensandecido, tive-lhe simpatia. Mais tarde ainda, tive-lhe compaixão.

Rubião é um personagem solitário e triste, embora não o pareça notar — e aí está um indício do seu problema. Sendo o único a permanecer ao lado do amigo Quincas Borba, o filósofo, até os últimos momentos da vida deste, herda-lhe a fortuna, o cachorro…e o destino. E, antes de mais nada, é por essas duas vidas paralelas que gostaria de passear com o leitor por um instante.

Vidas Paralelas

Quincas Borba e Rubião têm, em linhas gerais, a mesma trajetória: os dois são herdeiros de uma fortuna inesperada — Quincas Borba herda a fortuna de um tio; Rubião herda a fortuna de Quincas Borba; e, em ambos os casos, não são lá bem eles quem verdadeiramente desfruta da sua riqueza. Os dois apaixonam-se por mulheres que não os aceitam: Quincas pela irmã viúva de Rubião, Maria da Piedade — que, sendo muito acanhada, não deu chance a ele, veio uma doença e a levou; e Rubião pela esposa do amigo Cristiano Palha, a bela Sofia — que, embora lhe desse esperanças, nunca esteve interessada nele, mas sim em seus presentes e galanteios. Por fim, Quincas e Rubião enlouquecem, são afastados do convívio em sociedade — um por conta própria, o outro pelo ostracismo — e morrem sós, na mesma Barbacena, com o mesmo cão amigo ao seu lado.

Será também similar a sua loucura? De certa forma, sim, em seu princípio causador — mas creio que os dois personagens tocam a mesma questão por vieses diferentes. Quincas Borba parece ter um quê de sanidade em seus delírios — a sua filosofia é cínica, mas muito aguda, dado o ambiente que o filósofo pôde observar. Ele percebe que as pessoas naquela sociedade vêem-se como participantes de um jogo do qual todas querem sair vencedoras — e o entende não como uma escolha, mas sim como um ímpeto natural e independente da vontade do sujeito, como um instinto de sobrevivência. É a isto que dá o nome do princípio da Humanitas.

Rubião, por sua vez, é compassivo e faz amigos com um coração de criança: não vê o mal que faz em comentar com alguém que, até então, era-lhe desconhecido, da grande fortuna que acabara de herdar; quer ajudar aqueles por quem tem estima — e mesmo os que não conhece, como Deolindo, o menino que Rubião salva da morte por atropelamento, num ato puramente desinteressado — ao menos de início.

É interessante notar que ambos queriam relacionar-se com mulheres que não lhes dão bola: Quincas com Maria da Piedade, Rubião com Sofia. É como se Machado quisesse comentar que, ao primeiro, faltava-lhe a piedade, a misericórdia; ao segundo, a sabedoria, a ciência.

“Tu és bom, Rubião” 

Rubião acaba perdendo tudo ao confiar demais nos “amigos” — ou antes, ao ter por amigos figuras que dele se aproximam meramente por conveniência social, com o intuito de usá-lo como “degrau” sobre o qual se alçam à alta e fina sociedade da Corte. Rubião é um instrumento nas mãos hábeis dos que estão em busca de riqueza e poder.

Antes de nos debruçarmos às consequências dessas relações, convém falar brevemente de alguns dos principais personagens com quem Rubião trava algum tipo de relação. Fique o leitor advertido de que, tal como o narrador da história de que falamos, não me furtarei a dar a minha opinião sobre as figuras e os eventos; esteja à vontade o leitor para discordar.

A sociedade que o cerca

Pois bem. Cristiano Palha e Sofia são dois aproveitadores de marca maior, cada qual à sua maneira. Os dois desejam posses, mas de modos diferentes: Cristiano é comerciante, quer ser rico, conhecido e renomado em toda a sociedade. O seu ímpeto parece ser o puro e simples acúmulo de riquezas e o ganho de influência. Sofia também quer ser rica e renomada, mas a sua vontade mais profunda é, sem dúvida, a de ser admirada. Admira-se ela própria de sua beleza, e quer ser encantadora para todos, homens e mulheres — para ser cortejada pelos primeiros e benquista pelas segundas. O marido usa da vontade da mulher e de sua beleza desconcertante em favor próprio, transformando-a numa atração, em bailes e recepções, para as figuras de quem quer se aproximar. Assim, vai galgando esferas sociais cada vez mais altas. 

Carlos Maria é semelhante a Sofia em vaidade, pois sua força motivadora também é ser admirado. Rubião o toma por oponente, coisa que ele não é — suas demonstrações de afeição por Sofia não são sinceras, mas sim uma maneira de granjear a admiração e os suspiros da bela moça, numa postura de leve fastio de tudo, como que apenas para passar o tempo. Carlos Maria é autocentrado; não se preocupa com a política e nem bem com o dinheiro, a não ser no caso de esses dois lhe renderem loas de qualquer sorte. Por fim, casa-se com Maria Benedita, que o tem num altar e que só falta beijar-lhe os pés.

Dona Fernanda (prima de Carlos Maria) e seu marido Teófilo parecem-me os dois únicos personagens razoáveis. Teófilo sonha com um ministério, mas conquista outro cargo alto por meio do trabalho e do prestígio que conquistou por seu esforço e mérito reais. Dona Fernanda, por sua vez, é a única personagem verdadeiramente compassiva e caridosa, que faz as coisas por querer ver os outros bem, e não por interesse próprio. O trágico é que, precisamente por seu desprendimento, surgem suspeitas à boca pequena quanto ao seu caráter e as suas motivações — alguns acham que ocupa-se de Rubião ao fim da vida deste não por compaixão pelo seu estado lastimável, e sim por ter tido um caso com ele.

Os demais personagens seguem a mesma toada: são interesseiros e um tanto maliciosos, cobertos, porém, de um verniz de amabilidade e de cortesia, por meio do qual caem nas graças do nosso protagonista. Rubião, entretanto, não se dá conta disso, e segue distribuindo dinheiro, favores e presentes, mesmo quando fica evidente que as pessoas estão se aproveitando dele — como quando os amigos da sociedade tomam por normal banquetearem-se em sua casa diariamente, mesmo quando ausente o dono da casa.

A longa queda de Rubião

Mas disse, ao início do texto, que primeiro achei que Rubião era um canalha. Isso porque ele mesmo não é totalmente desprovido de ambições. Ao saber-se herdeiro do amigo, tem um longo monólogo interno que faz transparecer os primeiros sinais de cobiça e ganância — as quais, logo mais, ficarão evidentes em sua maneira de se portar e de atuar em sociedade:

(…) Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.” 

(Cap. I)

A fortuna lhe revela mundos que ele nem sequer julgava possíveis para si. É então que o nosso protagonista se vê instigado a expandir o seu raio de ação cada vez mais — e nada mais natural; no entanto, esse movimento nunca é baseado nos seus méritos e esforços, senão em interesses — próprios e alheios. Além disso, entende-se dos primeiros capítulos que Rubião não era um homem de vasta cultura, nem grande conhecedor dos costumes da Corte; sentindo-se abaixo do nível social que a fortuna ora lhe abria, conta com figuras mais experimentadas na realidade da alta sociedade como seus guias, enquanto lhes dispensa grandes somas e preciosos contatos. Figuras como o Palha e o Doutor Camacho o instigarão a cobiçar a abertura de novas portas — e, no fim das contas, pouco importa a eles o que o amigo quer ou não quer.

Não é de se admirar que, tendo atiçada a ambição pelos ditos amigos e enleando-se mais e mais neste emaranhado de laços interesseiros, Rubião tenha levado a ambição ao seu grau último: a dominação imperial de um Napoleão.

A coroação da história

Os delírios napoleônicos de Rubião são a consequência triste do tempo vivido em meio à alta sociedade da capital da Corte, onde chegou com a expectativa de grandeza — financeira, social, intelectual, moral — e deparou-se com a mesma baixeza da qual quis se remover (vide o modo com que ele fala de seus inimigos de Barbacena, sempre prontos a atacá-lo), ou talvez pior, porque velada, sutil, coberta pelas mesmas camadas de amabilidade e de cortesia postiças pelas quais ele primeiro se encantara. Isto, aliás, encontra-se ilustrado na passagem, já ao final do livro, em que ele percorre as ruas da capital da Corte falando só, gesticulando e argumentando consigo mesmo, e o povo o segue, ridicularizando a sua figura sem qualquer pudor e bradando “ó gira!” — incluindo Deolindo, o menino cuja vida fora salva por ele, e a mãe, que supostamente lhe seria grata para sempre. O pai do menino o reconhece, quer acudi-lo, tirá-lo do meio do povo, mas se constrange por causa da multidão e, podendo retribuir-lhe a boa ação, omite-se, dando mais valor à própria imagem e reputação. O que a situação escancara é o mesmo padrão de tratamento que Rubião recebe da alta sociedade, mas sem a polidez inerente a esta: todos o vêem como louco e gozam de sua cara — desta vez, abertamente.

Ao vencedor…

Há alguns outros paralelos muito hábeis que Machado faz que ilustram muito bem a repetição de acontecimentos que Quincas cristalizou em sua filosofia. Contudo, a história que ele conta sobre a avó parece-me a mais reveladora:

"— (…) O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro ato desta série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo ainda subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto importa, antes de tudo) Humanitas precisa comer."

(Cap. VI)

Pois bem — Rubião salva o menino Deolindo de um atropelamento semelhante. Mais tarde, a própria criança e a sua mãe se juntarão à multidão e chamarão Rubião de louco publicamente. Os seus amigos fazem o mesmo, ainda que por outros meios, aproveitando-se de seu dinheiro, de seus bens, de seus presentes, de suas amizades e contatos, para logo largá-lo e maldizê-lo pelas costas. Como a avó de Quincas Borba, Rubião é, metaforicamente, atropelado por Humanitas — também ele é o obstáculo no meio do caminho da sege da faminta Humanitas.

Quincas Borba é uma obra que ri da condição humana ao colocá-la como a filosofia desenvolvida por um homem louco e que, por mais cínica que fosse, tem lá a sua boa dose de verossimilhança. 

*

Mas como conclui o próprio narrador: no fim das contas, quem fica com Quincas Borba?

Ficamos nós, os leitores — que agora levamos conosco a obra, o nome e o filosofia.

— (…) Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro. Ris-te?

Rubião fez um gesto negativo.

— Pois devias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e…

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  1. Ana Júlia Galvan é escritora, tradutora literária (do inglês e do francês) e estudante das artes. É formada em Cinema e Realização Audiovisual pela Universidade do Sul de Santa Catarina e mestre em Estudos da Tradução pela University of Ottawa. Escreve sobre arte, cultura e coisas da vida no Periódico da Ana (newsletter) e tem “conversas interessantes com pessoas interessadas” sobre obras de arte no Entremeios (canal no YouTube). Natural de Santa Catarina, mora no Canadá desde 2017.  ↩︎

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