Machado de Assis: a história por trás das letras

Redação do CLC

Você já parou para pensar como um garoto órfão, gago e de saúde frágil, criado nos fundos de uma casa no Morro do Livramento, chegou a ser considerado o maior escritor brasileiro? Essa é a história real de Machado de Assis, um autor que dominou com maestria o jogo das palavras, construiu personagens eternos e mergulhou fundo na alma humana. Sua vida é um enredo digno de romance — e, como todo bom enredo machadiano, repleto de ironia, reviravoltas e silêncios.

Neste artigo, fazemos uma viagem pelos principais fatos da vida de Machado, desde sua infância humilde até o topo da cena literária brasileira. Vamos cruzar a ponte entre sua biografia e sua obra, destacando curiosidades, momentos marcantes e os bastidores de seus romances mais célebres. A cada fase da vida, um reflexo em sua literatura. Prepare-se para conhecer — ou redescobrir — o gênio por trás de Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e tantas outras joias da literatura brasileira.

Os primeiros passos de um gênio improvável

Nascido em 21 de junho de 1839 no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis era filho de um pintor de paredes mulato e de uma lavadeira portuguesa. Criado em um ambiente humilde, frequentava a casa da madrinha, D. Maria José, onde teve acesso a livros e à educação informal — o que plantaria as sementes de seu futuro literário.

Machado de Assis aos 25 anos. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

A infância de Machado foi marcada por dificuldades materiais e por uma saúde frágil, agravada pela epilepsia, doença que o acompanharia por toda a vida. Ainda assim, ele mostrou desde cedo interesse por letras. Começou como tipógrafo e revisor na Imprensa Nacional e, em seguida, como colaborador de jornais, onde publicava poemas e crônicas. Foi nesse meio jornalístico que Machado consolidou sua formação autodidata e criou uma rede de contatos com figuras intelectuais importantes da época, como José de Alencar e Joaquim Nabuco.

Em 1869, casou-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, portuguesa culta e refinada, que viria a ser sua parceira intelectual e suporte afetivo por mais de 35 anos. Carolina o ajudava nas revisões dos textos, lia os mesmos autores europeus que ele, e exerceu papel central em sua trajetória, ainda que de forma discreta.

Retrato de Carolina, esposa de Machado de Assis.

Seu primeiro romance, Ressurreição (1872), já sinalizava sua habilidade para construir personagens ambíguos e diálogos psicológicos. No entanto, foi com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) que Machado rompeu definitivamente com o romantismo e inaugurou o realismo psicológico no Brasil. O livro marca também uma inflexão biográfica: é quando ele consolida seu lugar entre os grandes da literatura nacional.

A literatura madura de Machado de Assis

Após Brás Cubas, Machado embarcou em uma sequência de romances que escancaravam, com sutileza e engenho, as contradições da sociedade brasileira da época. Em Quincas Borba (1891), aprofundou sua visão crítica do comportamento humano e lançou mão do conceito filosófico irônico do “Humanitismo”, uma espécie de paródia de teorias positivistas e darwinistas que circulavam nas elites intelectuais.

Sua obra é repleta de personagens ambíguos, duplos, muitas vezes dominados por vaidades e inseguranças. O narrador machadiano frequentemente joga com o leitor, quebra a quarta parede e deixa dúvidas que transformam a leitura em um jogo de espelhos. Em Dom Casmurro (1899), essa estratégia atinge o ápice: o personagem Bento Santiago tenta convencer o leitor da infidelidade de Capitu, mas sua própria obsessão e insegurança lançam sombras sobre sua versão dos fatos.

Para estudiosos como Alfredo Bosi, essa ambiguidade é parte central da estética machadiana: ele nunca entrega respostas prontas, mas deixa o leitor diante de dilemas morais e subjetivos, fazendo da literatura um exercício de introspecção e desconfiança.

Apesar de viver à sombra de um sistema político ainda com muitos problemas, Machado escrevia com coragem disfarçada. Sua pena era sua arma. Crônicas, contos e romances dialogavam com os acontecimentos de seu tempo — não como panfleto, mas como análise sutil e profunda. O Brasil do século XIX é retratado não por seus grandes eventos, mas pelos pequenos gestos, pelas máscaras sociais e pelas hesitações dos personagens.

A fundação da Academia Brasileira de Letras e o ápice da carreira

Machado de Assis aos 57 anos. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

O reconhecimento oficial de sua grandeza veio com a fundação da Academia Brasileira de Letras em 1897, da qual Machado foi o primeiro presidente. Era a consagração de uma trajetória que, embora discreta, havia se tornado incontornável. Ele ocupou a Cadeira nº 23 e foi reeleito para a presidência até sua morte. A Academia representava, para ele, o sonho da consolidação de uma literatura nacional forte e respeitada.

Nesse período, Machado publicou contos e romances que confirmaram sua maturidade estilística. Papéis Avulsos (1882) e Várias Histórias (1896) reúnem algumas de suas melhores narrativas curtas. Em contos como O Alienista, A Cartomante e O Espelho, ele revela sua habilidade de condensar em poucas páginas toda a complexidade humana — sempre com humor refinado, crítica implícita e uma inteligência rarefeita.

Machado de Assis aos 67 anos. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Com a morte de Carolina em 1904, Machado mergulhou em um luto silencioso. Sua última obra, Memorial de Aires (1908), é um livro marcado por uma melancolia delicada e por uma narrativa menos corrosiva. É quase um testamento literário — mais sereno, mais resignado, mas ainda assim elegante e preciso.

Mesmo no fim da vida, continuava sendo uma figura respeitada, cercada por admiradores e jovens escritores que viam nele um farol. Sua biblioteca, seus hábitos discretos e sua rotina contida contrastavam com a vastidão e o impacto de sua obra. Em 1908, aos 69 anos, Machado morreu em casa, no bairro do Cosme Velho. A notícia de sua morte correu o país como a despedida de um rei das letras.

Casa em que Machado viveu, no bairro Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Acervo digital da Biblioteca Nacional.

O legado imortal de Machado

Machado de Assis não foi apenas um romancista brilhante: foi também cronista, poeta, contista e ensaísta. Criou uma linguagem própria, construiu narradores complexos e inaugurou uma nova forma de fazer literatura no Brasil — uma literatura que não precisava mais copiar modelos estrangeiros, mas que olhava para si mesma com maturidade.

Seu estilo, elegante e preciso, inspirou gerações. Intelectuais como João Ribeiro, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade reconheceram nele um mestre absoluto. E mesmo leitores leigos, ao se depararem com suas páginas, são tomados por uma mistura de encantamento e inquietação: Machado sabia olhar para dentro das pessoas como poucos escritores no mundo.

Obras como Dom Casmurro continuam a ser debatidas com paixão. Capitu traiu ou não traiu? Essa dúvida já não importa tanto quanto a genialidade com que ela foi criada. O que importa é o que Bento Santiago revela sobre nós mesmos — nossas certezas frágeis, nossos julgamentos precipitados, nossos medos disfarçados de moral.

Ler Machado é uma experiência que muda com o tempo. A cada releitura, novos sentidos emergem, como se ele tivesse previsto todas as nossas perguntas — e também as respostas que evitamos. Machado não é só o maior escritor brasileiro: é um dos maiores escritores de todos os tempos. E sua obra é um espelho — às vezes deformado, às vezes cruel, mas sempre verdadeiro.

Quincas Borba e O Alienista são os nossos clássicos de junho aqui no CLC. Saiba mais!

Linha do Tempo – Machado de Assis (1839–1908)

  • 1839 – Nasce em 21 de junho no Morro do Livramento, Rio de Janeiro.
  • 1855 – Publica seu primeiro poema, Ela, no periódico Marmota Fluminense.
  • 1864 – Estreia como dramaturgo com a peça Hoje Avental, Amanhã Luva.
  • 1869 – Casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais.
  • 1872 – Publica seu primeiro romance, Ressurreição.
  • 1878 – Publica o romance Iaiá Garcia.
  • 1880 – Publica a coletânea de contos Papéis Avulsos.
  • 1881 – Publica o marco do realismo brasileiro: Memórias Póstumas de Brás Cubas.
  • 1884 – Publica o romance Quincas Borba (primeira versão serializada; livro completo em 1891).
  • 1891 – Lança a versão definitiva de Quincas Borba.
  • 1896 – Ajuda a fundar a Academia Brasileira de Letras.
  • 1897 – Torna-se o primeiro presidente da ABL.
  • 1899 – Publica o romance Dom Casmurro.
  • 1904 – Morre sua esposa, Carolina Augusta.
  • 1908 – Publica Memorial de Aires e falece em 29 de setembro, no Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

Piza, D. (2006). Machado de Assis: Um Gênio Brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial.

Bosi, A. (1999). Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo: Ática.

Guimarães, H. S. (2011). Machado de Assis: A Construção do Escritor. São Paulo: Edusp.

Chalhoub, S. (2003). Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras.

Gledson, J. (1991). Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Companhia das Letras.

Pereira, L. M. (1936). A vida de Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio.

Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anterior
5 livros para começar a ler os clássicos

5 livros para começar a ler os clássicos

Ler os clássicos da literatura pode parecer intimidador, por isso começar pelos

Você também pode gostar
Total
0
Share